A afirmação é dita e repetida até à saciedade, mas
importa ser muito claro. A resposta à pergunta é, apenas, uma: não! De facto,
em nenhum momento a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de
abril de 1976, afirma «o Estado é laico» ou «a República Portuguesa é laica».
Hoje, com os meios tecnológicos de que dispomos, não precisamos de mais de dois
minutos para o confirmar. Qualquer busca, no documento fundamental da III
República, permitirá verificar que as palavras «laico», «laica» ou «laicidade»
estão ausentes deste diploma estruturante.
A repetição da frase gerou, porém, a convicção de
que esta ali se encontrasse. Tal afirmação, porém, terá de se procurar em
outros documentos que não do quadro jurídico português. É o caso da
Constituição da República Francesa que, logo no seu artigo 1º afirma que «A
França é uma República indivisível, laica, democrática e social.». Contudo, a
história da França não é a história portuguesa e vice-versa. Portugal viveu,
com efeito, revoluções que tiveram tiques laicistas como aquele que tomou o
espírito dos constituintes franceses. Assim aconteceu, concretamente, no
contexto da nossa I República. Contudo, a história veio a mostrar que essa
vertigem laicista desrespeitava a sensibilidade do povo, tendo-se conseguido,
após uma experiência também ela pouco positiva da segunda república, uma
posição de equilíbrio que se configurou na Constituição da III República
Portuguesa.
Desde há muito que venho afirmando que houve a
sabedoria, por parte dos constituintes de 1976, de ler o que a história recente
demonstrava. Havia que respeitar, por um lado, a liberdade religiosa (como
muito bem o faz o artigo 41º da Constituição), mas sem entrar numa vertigem
persecutória à maneira do que ocorrera na revolução francesa, que deixou marcas
profundas na sociedade gaulesa. Ainda hoje, a relação do Estado com as
religiões é, em França, de enorme dificuldade e pode ser considerada como um
dos fatores que mais tem contribuído para a dificuldade de permitir o
enraizamento dos que, por marcada cultura religiosa, se sentem segregados por
um Estado que faz de conta que não sabe das suas origens e matrizes culturais e
religiosas.
Portugal não tem, hoje, uma questão religiosa.
Muitos, porém, insistem em criar um fantasma onde ele não existe. Esse fantasma
é, muitas vezes, suscitado no âmbito da educação, alegando-se que a presença de
uma disciplina de Educação Moral e Religiosa atentasse contra a laicidade do
Estado.
Esclarecido que o Estado teve o cuidado de não se
descrever como laico, importa analisar os artigos da constituição que
interessam a este assunto.
Teremos de o procurar nos artigos 41º e 43º da
Constituição. Não os analisaremos com detenção, mas importa reter duas constatações
resultantes dessa procura.
Em primeiro lugar que, segundo o artigo 41º, fica
claro que o objetivo dos constituintes de 1976 foi salvaguardar a liberdade
religiosa e não impedi-la. De algum modo, podemos, em síntese, afirmar que o
Estado se autolimitou, impondo a si mesmo que não se reconheceria o direito de
impor a alguém uma determinada opção religiosa. Isso, no que respeita à
legislação sobre educação, está acautelado pelo princípio de que a matrícula na
disciplina de Educação Moral e Religiosa não é suposta, mas, sim, deve ser
explícita por quem a deseja. A ninguém ela é imposta.
Em segundo lugar, a liberdade que o Estado
reconhece não se confina ao âmbito religioso. De facto, quem ler o artigo 43º
não poderá deixar de se surpreender ao ver que o Estado se autolimita outros
âmbitos, ao afirmar que «O Estado não pode programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas.»
Se o espírito laicista com que alguns abordam a
questão religiosa fosse aplicada a outros âmbitos, seria curioso constatar como
o Estado (na perspetiva desses…) não poderia senão processar quem, ao lecionar
economia em escolas ou universidades públicas, revelasse alguma predileção por
um determinado modelo económico, ou quem, ao lecionar educação visual ou outra
disciplina de artes, preconizasse um maior interesse por determinada corrente
estética, ou, ainda, quem, no âmbito da disciplina de história, revelasse
predileção, por exemplo, pelos portugueses em detrimento dos ‘inimigos’ (os
castelhanos, por exemplo), etc… E, noutros âmbitos, poderia sempre perguntar-se
se estaria um governo legitimado para comprar a coleção de arte de um só autor
ou se seria obrigatório comprar sempre obras de todas as correntes, ou, então, se poderia apoiar um determinado autor literário e não, obrigatoriamente, todos ao mesmo tempo para evitar 'discriminações'; ou, enfim,
se seria legítimo assegurar, nas escolas, refeições vegetarianas, em nome do
respeito pela conceção filosófica correspondente, ou…, ou… É fácil concluir que
esta leitura peca por literalismo e por não compreender o espírito da
Constituição que visa integrar e não segregar ou rejeitar. Podemos considerar
que estamos perante um diploma que percebeu que, no que se refere ao âmbito
religioso, a relação entre o Estado e as religiões já não pode ser de
indiferença ou, mesmo, perseguição, mas de diferença respeitosa, de respeito
cooperante em prol do bem da sociedade e dos cidadãos. E esse é o registo em
que se situa a disciplina de Educação Moral e Religiosa, contra a qual tantas
vezes se insurgem os fundamentalistas do laicismo. Sim, porque, como outros
fundamentalismos, também este tem os seus agentes. E quanto sangue corre das
suas mãos! Que o digam os mais de 110 mil mortos às mãos dos laicistas, por
ocasião do rescaldo da revolução francesa, em pleno período do terror, em 1793.
(veja-se a descrição exaustiva deste período que é apresentada em «o livro
negro da revolução francesa», editado pela Alêtheia, em 2010).
A hora é, em Portugal, de partilha e de encontro e
não de conflitualidade desnecessária, estéril e falsa. Vale a pena recuperar as
oportunas palavras do saudoso ex-presidente da República, Dr. Mário Soares, reconhecidamente
descrente, para quem «A I República, em parte caiu, pelo conflito entre a
República e a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril quando regressei do meu
exílio em França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado
Laico e a Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Católica sabe
bem – e o Vaticano – desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril,
apesar de não ser religioso, como se sabe.» (Amadeu Gomes de Araújo, Um erro de
Afonso Costa: As Missões Laicas Republicanas (1913-1926), editado pela Alêtheia
Editores, em 2015.)
A razão para não retomar esse conflito não deverá
ser, apenas, nem fundamentalmente, de ordem estratégica (porque dará mau
resultado!), mas genuína: os mais sensatos de entre os pensadores atuais
(recordemos Peter Berger, Alain de Botton, etc.), mesmo descrentes, reconhecem
o caráter insubstituível da religião. Impedi-la de estar presente, no espaço
público, é romper a ligação da árvore à raiz. Não poderá, seguramente, dar bons
frutos uma tal decisão.