A Terra e a sociedade a que pertencemos são mais do
que um contexto em que vivemos: são uma tarefa! Tal visão desloca a nossa
atitude de uma passiva reivindicação de direitos, em que o centro sou eu
próprio, para um outro registo, assente no reconhecimento de deveres que
desperta em cada um a sensibilidade ética que inquieta e desafia e coloca o bem
do outro no horizonte da nossa ação.
Sem querer, a nossa própria linguagem manifesta o
registo que aqui denunciamos.
Não é pouco frequente ouvir-se a ideia de que a
liberdade de cada um acaba onde começa a do outro. Aliás, a frase é repetida
como se fosse condição de sobrevivência da sociedade.
Na realidade, ela é, antes, a condição para o seu
fim.
Poucos saberão que tal frase se deve a Herbert
Spencer, um dos maiores representantes do liberalismo clássico, e defensor de
outras ideias como a da «sobrevivência dos mais fracos», que lhe valeu o título
de criador do darwinismo social.
Na sua conceção, a existência do outro é um estorvo
à minha própria realização, pelo que cabe delimitar, com toda a precisão, onde
começa o meu terreno e onde acaba o do outro. O seu pensamento é, aliás,
retomado na perspetiva do existencialismo de Sartre, para quem «o inferno são
os outros».
Pois bem, numa tal visão, teríamos de supor que a
liberdade de cada um precisaria da extinção do outro para aumentar, o que
contraria a ideia original de sociedade. A própria etimologia da palavra
«sociedade» mostra que ela é a reunião de «amigos» (‘socius’, em latim, quer
dizer «amigo»). Se ainda formos mais longe, poderemos socorrer-nos da
psicologia para compreender que o nascimento da consciência de si próprio
depende da existência dos outros. Sem os outros, nenhuma criança viria a ter
consciência de si mesma. São os outros que fazem nascer, nela e em cada um de
nós, a consciência de si mesma. A própria economia ou a pedagogia ou a biologia
demonstram, à saciedade, que nenhum ser nasce de si mesmo, gera riqueza por si
mesmo ou cresce como pessoa sem os outros. Os outros são a condição de possibilidade
do nascimento do eu e não o seu obstáculo.
Não há
liberdade sem os outros
Contrariamente à frase que reproduzíamos, mais
acima, a nossa liberdade é diretamente proporcional à liberdade dos outros: a
nossa só cresce quando faz crescer a dos outros e diminui quando diminui as dos
outros. Não há liberdade de alguém contra a liberdade de outro. Pode haver
arbitrariedade ou discricionariedade, mas não liberdade. Porque ser livre é
poder, em cada momento, escolher, de entre diversas possibilidades, aquela que
mais realiza, seja o próprio, sejam os demais. Liberdade que destrói é
arbitrariedade, é vontade indeterminada, mas não é liberdade.
Ora, o voluntário é alguém que sabe que a Terra é
uma tarefa de todos nós. A Terra, como afirma o Papa Francisco, na sua
belíssima encíclica «Laudato Si’», é casa comum, é casa de todos, invocando a
própria etimologia da palavra «ecologia», que quer dizer «o estudo da casa» (em
grego, «oikos» é a casa, a morada de alguém, a casa e o aido). Sendo casa
comum, casa de todos, constitui-se como uma tarefa, por respeito aos que viveram,
aos que connosco vivem hoje, e aos que viverão.
E, assim como caberá perguntar o que faço pelo bem
da casa de todos, é importante interrogarmo-nos sobre que contributo ativo dou
para que a rede de laços estabelecida nesta casa comum (a sociedade) seja cada
vez mais autêntica (uma relação de «amigos») e não apenas uma coabitação de
indivíduos. É, aliás, a pergunta que se colocam os que refletem sobre o futuro
da nossa sociedade, como bem recordava, recentemente, em Aveiro, o professor
Walter Osswald, um dos mestres da Bioética em Portugal: queremos, realmente,
uma sociedade em que as relações se estabelecem entre pessoas interdependentes,
ou, meramente, um território onde possam coabitar indivíduos isolados e
fechados sobre si?
Que sociedade
pretendemos?
O voluntário faz uma escolha e a sua mera
existência já é uma interpelação: um mundo melhor é possível, um mundo onde
somos pessoas, onde nos sabemos interdependentes em relação aos demais e não
meros indivíduos autossuficientes e sem preocupação com os demais, nem os
demais consigo mesmo. Valerá a pena recordar, aqui, invocando a minha própria
formação teológica, que o conceito de pessoa diz muito mais do que o de
indivíduo. O indivíduo é da ordem da quantificação. Posso ter um indivíduo da
espécie canina ou felina. Mas já não posso dizer que tenho uma pessoa da
espécie «canina» ou da espécie «felina». Na verdade, o termo «pessoa» diz muito
mais do que o termo «indivíduo». Aliás, é no contexto da reflexão teológica
sobre a natureza trinitária de Deus que surge o conceito de pessoa. Não se
podia dizer que Deus era três «indivíduos». Seria um triteísmo e, por isso, um
absurdo. Ora, o termo pessoa dizia o que se pretendia. Um ser individual de natureza
racional e relacional. O conceito de pessoa introduzia a dimensão da
racionalidade e da relacionalidade que faltavam à ideia de indivíduo, que
apenas quantificava. Individualizar é quantificar, é dizer que tenho aqui uma
unidade, mas nada mais me diz. Falta a ideia de relacionalidade que o conceito
de pessoa assegura.
Pois bem… Tendo em conta este pressuposto, convém
ter consciência de que o tipo de mundo que pretendemos e que sonhamos se
constrói nas pequenas decisões que vamos tomando, nos pequenos passos que vamos
dando, nas escolhas que fazemos, nas leis que formulamos, nos modelos que
adotamos.
Como bem recordava Martin Niemöller, um pastor
luterano, após ter sido libertado do campo de concentração nazi, num poema
intitulado «e não sobrou ninguém»: "Quando os nazis levaram os comunistas,
eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os
sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não
era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal,
eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse."
Não é por uma questão de estratégia que devemos
preocupar-nos com os outros: é por respeito pela nossa condição humana – ser
humano é ser frágil, é ser feito de «húmus» (‘humano’ vem de ‘húmus’), é ser
incompleto. A nossa completude só se encontra nos outros. De outro modo, pouco
ou nada somos. Somos uma ilusão. E as ilusões rapidamente redundam em
desilusão.