A
eutanásia é um erro. É um erro porque é errado matar, seja qual for o pretexto,
seja qual for o motivo ou contexto, seja quem for a pedir a morte: mesmo que o
próprio.
É,
aliás, esse o pressuposto do nosso código penal que condena, por exemplo, o
incentivo ao suicídio.
Todo
o edifício jurídico em que assentam os Estados de Direito se baseia na ideia da
proteção do que não é certo, que é a vida, e não do que temos como certo, que é
a morte. Porque é insegura, frágil e desprotegida é que a vida merece ser
cuidada e protegida pela lei. E é pela sua fragilidade e pela sua condição de
dependência da vontade que a vida tem de merecer toda a proteção. Porque, de
outro modo, podemos atentar contra ela porque muitas circunstâncias podem
apagar da nossa visão o dever de a proteger. E isso pode acontecer até a alguém
que, por motivos de momentânea perda de clarividência, se queira fazer mal a si
mesmo. Esse dever de cuidar de si mesmo é expresso em sinais que o Estado nos
dá, através de leis, como sejam o caso da obrigação de utilizar cinto de
segurança ou o princípio de que, mesmo tendo alguém procurado provocar um
acidente de viação para fazer mal a si mesmo, tem o direito a ser socorrido. E,
se é certo que isto se aplica ao dever de cuidar da vida, é ainda mais curioso
verificar que a indisponibilidade da vida humana não pode ser menor do que, por
exemplo, a indisponibilidade de bens ou de tempos. Na verdade, mesmo que eu
queira, não posso prescindir do direito/dever a ter férias quando estou
empregado ou, por exemplo, não posso mudar um testamento se não estiver na
posse de todas as minhas faculdades. Como poderei, então, dispor da vida quando
não posso dispor de bens menos importantes como os anteriormente enunciados?
Seria contraditório.
Pois
bem, é de contradições deste género que falamos, quando discutimos a
possibilidade de legalizar a eutanásia.
Para
mais, há que ter em conta que a eutanásia não é, afinal, um suicídio. Na
verdade, há intervenção ativa de outros – cuidadores ou técnicos de saúde, o
que agudiza a discussão.
Mas
– dizem alguns – e a autonomia individual?
Mostra
bem o limite da tentativa de absolutizar a autonomia individual o que ocorreu
em 2001, na Alemanha.
Um
homem anunciou, na internet, que pretendia ser morto e devorado por alguém. O
seu apelo obteve resposta de um indivíduo que consumou, após aprovação
explícita do primeiro, o que estava acordado. Em nome da autonomia, o que se
poderia ter feito, neste caso? Aceitar e legalizar, pois tratava-se de uma
decisão entre adultos, em plena posse das suas faculdades volitivas e
intelectuais?
Não
foi isso que entenderam os tribunais alemães. O designado «canibal de
Rotemburgo» foi mesmo condenado por homicídio e canibalismo.
Então,
e a autonomia?
A
autonomia é, claramente, uma possibilidade humana de realização não de
destruição. A autonomia deve realizar-se, sempre, em relação a outro e nunca
atentando contra a dignidade humana, que confere condição de inviolabilidade à
pessoa humana.
Mas,
dizem outros, a eutanásia seria só para os que a quisessem e não afetaria mais
ninguém.
Dois
erros se vislumbram nesta convicção.
Em
primeiro lugar, após a legalização da eutanásia, todos somos afetados. Na
verdade, se alguém estiver em situação de fragilidade mais acentuada, sentirá a
obrigação de pedir a eutanásia para não ser um peso para os demais, sendo que,
inclusive, perceberá sobre si o peso da sociedade que lhe dirá, implicitamente:
se outros pediram a eutanásia, na tua situação, porque teimas em não a pedir?
Em
segundo lugar, os números dos países que a legalizaram (é importante que se
diga que, dos 193 países que a ONU reconhece, só legalizaram a eutanásia 5
países, a saber, Holanda, Bélgica – que a permite em crianças -, Luxemburgo,
Canadá e Colômbia, sendo que admitem o suicídio assistido a Suíça, a Alemanha e
5 Estados Norte-Americanos) demonstram que, se no início, esta é praticada
sobre os casos ditos excecionais, o tempo vem a criar o efeito de plano
inclinado ou rampa deslizante que alarga os critérios. E é bom que se constate
que o efeito de rampa deslizante (ou de plano inclinado) não é meramente
circunstancial, como se se pudesse evitar se a lei for bem feita. Na verdade,
este efeito nasce das próprias motivações da lei e dos efeitos que a lei tem
sobre todo o edifício jurídico do Estado.
Na
realidade, se o motivo mais solidamente invocado é o da autonomia, então,
porque é que se haveria de aplicar a eutanásia apenas nos casos de suposta dor
insuportável (que, medicamente, hoje, não pode existir) ou de fase terminal de
uma doença (em que a resposta deveriam ser os cuidados paliativos)? Se só se
aplicar nesses casos, então não será por motivo de autonomia. Mas, então, não
era a suposta autonomia absoluta que se queria respeitar? Se era essa autonomia
absoluta, então, não pode confinar-se a lei a esses casos, pois as motivações
não estão associadas ao respeito por ela, mas a outros motivos. Haveria, por
isso, que ser consequente e assumir que se teria de aceitar a eutanásia em
todos os casos em que ela fosse pedida, ao abrigo do respeito pela tal autonomia
absoluta. Mas, então, haveria que perguntar, de seguida, por que razão se
aceita o exercício da autonomia absoluta em casos de pedido de morte e não se
aceita esse princípio para as decisões mais triviais da vida social. Tudo
deveria, no limite, ficar entregue à decisão absoluta da autonomia individual.
Isso seria ser consequente. Assim seria com impostos, com a frequência da
escolaridade que deixaria de ser obrigatória, ou o que quer que seja que, a bem
de um determinado valor tutelado, o Estado e a sociedade entendem que temos de
aceitar e respeitar. É fácil constatar que a coerência obrigaria a extinguir a
sociedade e o Estado. Ficariam os indivíduos isolados em si mesmos.
E
haveria uma outra consequência visível.
O
mesmo Estado que deixara de respeitar valores prévios e intocáveis e admitira
leis que se sustentavam na discricionariedade e arbitrariedade individual,
rapidamente se reconheceria a si mesmo o direito legítimo a tornar-se
arbitrário e discricionário, o que criaria as condições para uma ditadura das
maiorias em matérias onde nem as maiorias devem ter poder como é o caso da
decisão sobre a vida e a morte dos cidadãos. Disso fala, com propriedade, o
ex-presidente do Tribunal Constitucional de Itália, Gustavo Zagrebelsky, quando
diz que as democracias críticas (as que são verdadeiras democracias não
totalitárias) sabem que não têm legitimidade para decidir sobre tais matérias.
Comprovam,
ainda, esse efeito de rampa deslizante, quer os números, quer os motivos que
são invocados.
Vejamos
os números…
Na
Holanda, passou-se de 1882 casos, em 2002, para 6091, em 2016, sendo que
aumentou mais de três vezes a percentagem de eutanásias no conjunto de mortes
ocorridas. Passou-se de 1,2% para 3,9%
Na
Bélgica, a prática da eutanásia aumentou 5 vezes em 12 anos, passando de 259
casos, em 2003, para 2022, em 2015, tendo sido, também, praticada sobre
crianças.
Junte-se
a estes dados estatísticos, que são disponibilizados pelas fontes dos próprios
governos nacionais, a lista de critérios e a conclusão será fácil de retirar.
Na
Holanda, em 2015, foram praticados 165 atos eutanásicos em doentes com demência
ou doenças psiquiátricas, tendo, mesmo, havido situação de eutanásia forçada
praticada sobre mulher de 70 anos com problemas mentais. No final de 2016, foi
aprovado um ato eutanásico sobre um alcoólico de 41 anos.
Também
na Bélgica estão documentados casos de eutanásia em que não houve informação
aos familiares, que só souberam da sua prática sobre os seus ascendentes, após
a consumação. Estão, ainda, referidos casos de eutanásia por anorexia nervosa
ou depressão crónica.
Esta
vertigem de indiferença perante a vida humana, a sua dignidade, que significa
inviolabilidade e total respeito que exige cuidado e atenção (a resposta, para
os casos em que estamos perante doenças, deve passar pelos cuidados paliativos
ou, nos casos em que está em causa o sentido da vida, uma abordagem que auxilie
a reconfigurar sentido – a logoterapia pode, aqui, ser um recurso ainda tão
pouco explorado!), esta vertigem, como dizíamos, não pode levar-nos na
enxurrada. Portugal sempre foi pioneiro na proteção dos mais frágeis, dos mais
vulneráveis. Foi, aliás, dos primeiros a acabar com a pena de morte e deu
sinais de respeito pela dignidade humana no combate à escravatura. Essa memória
coletiva tem de ser honrada, neste tempo em que se pretende legalizar tão grave
ofensa à dignidade humana.
Não
pode defender-se que a eutanásia seja a garantia de uma morte digna, porque
matar não é, de modo algum, digno. É, aliás, indigno!
E,
ao aceitarmos uma lei que o fizesse, todos estaríamos a ser cúmplices desta indignidade.
Não podemos ficar indiferentes quando alguém nos diz que já não tem lugar nesta
sociedade e que, por isso, o que lhe resta é que o matem. Se deixarmos que a
alguém reste esta solução, teremos baixado os braços e permitido que a
sociedade se desumanize. Comprovam esta desumanização as notícias de idosos e
doentes que abandonam os países onde a eutanásia está legalizada para a
segurança de países onde ela não é admitida, por temerem ser dela vítimas. Como
em tempos escrevi, a «eutanásia legalizada matar-nos-á a todos». Porque não
será só para os que a querem. Será, também, para os que nunca a desejaram ou
quiseram. Basta que se sigam os procedimentos que a lei vier a determinar. E
isso ficará à discricionariedade de cada decisor político de turno. Bastará dar
o tempo para que a insensibilidade coletiva aceite as «evoluções».
Esse
não pode ser o caminho!