Ecos de um debate «decidir sobre o final da vida»
Declaração de
interesses de um adversário da eutanásia
No dia 18 de julho, realizou-se,
na sala dos Atos da Universidade de Aveiro, um dos debates sobre «decidir sobre
o final da vida», com que o Conselho Nacional de Ética para as ciências da Vida
tem percorrido o país. Na mesa, moderada pelo professor Júlio Pedrosa, estavam
Maria do Rosário Reis (jurista), Carlos Braz Saraiva (psiquiatra), Duarte
Soares (médico especialista em cuidados paliativos) e Nuno Saraiva (médico).
Começo este conjunto de
apontamentos comprometidos congratulando-me com o CNECV por, contra ventos e
marés, ousar corresponder ao desiderato expresso pelo sr. Presidente da
República, promovendo por todo o país debates para que estavam convidados todos
os cidadãos. Dignos de elogio a vontade presidencial, a iniciativa do CNECV e a
qualidade dos debates. Aveiro correspondeu ao desafio, comparecendo em número
pouco superior à meia centena. Uma oportunidade para a partilha aberta e para a
verificação de que, na sua maioria, os presentes consideram um risco (desnecessário,
sublinho eu) legalizar a eutanásia, quando, por um lado, são mais as dúvidas do
que as certezas (ideia repetida por Nuno Miranda) ou, por outro lado, é
evidente que a experiência na investigação sobre o suicídio demonstra a impermanência
do suicida na sua decisão, como evidenciou Carlos Saraiva, primeiro presidente
da Sociedade Portuguesa de Suicidologia. Com frequência, perante novos
cenários, o suicida muda a sua decisão de terminar com a vida. Cenário que,
feitas as devidas adequações, se poderá adaptar às manifestações de vontade de
pôr termo à vida por parte de quem se encontra em situação de fase terminal de
doença ou em condição de perda de sentido. Ficou claro, neste debate, que, na
grande maioria das situações, estas expressões de vontade não pretendem
exprimir um efetivo desejo de pôr termo à vida, mas antes de acabar com a dor
ou o sofrimento sentidos, o que, no entender de Duarte Soares, poderá passar
por uma mais efetiva aposta nos cuidados paliativos, que deveriam considerar-se
um direito e não um privilégio de alguns.
Como ali mesmo expressei, em
intervenção para que me foi concedido tempo, há, nesta matéria, que distinguir
entre motivos e pretextos. O pretexto invocado para justificar a legalização da
eutanásia é o suposto sofrimento intolerável de alguns. Mas o motivo é, na
minha perspetiva, de outra ordem. Pretende-se mudar o paradigma das relações em
sociedade. Com efeito, como ali mesmo referi, se a eutanásia for legalizada,
todos seremos afetados, na medida em que se passará de um paradigma em que a
minha vida e a minha morte não me dizem só respeito a mim para um outro em que
a vida e a morte de cada um só a si mesmo respeita. Numa sociedade que se pretende
solidária, este salto não pode dar-se. Recordei, ainda, que demonstram esta
alteração de paradigma o conhecido efeito de «plano inclinado» ou «rampa
deslizante», notório nos poucos países que a legalizaram. Hoje, já é praticada
eutanásia, em alguns desses países, sobre pessoas com alcoolismo crónico ou em
situação depressiva, chegando a perpetrar-se sobre pessoas cuja família só tem
conhecimento após a consumação do ato.
Não deixo de notar que se
verifica, nos que assumiram, neste debate, a posição favorável à legalização da
eutanásia o tipo de discurso que já ouvimos, em outros momentos, em outros
debates sobre matérias que tinham a ver com a inviolabilidade da vida. Nesta
fase, em que ainda não se legalizou o que pretendem, dizem ter dúvidas e que admiram
(com ironia) os que se afirmam com certezas. Mas, quando a lei muda, as dúvidas
dissipam-se e passam a ter certezas. É o efeito insensibilizador da lei. A lei
jurídica que legaliza o atentado contra a inviolabilidade da vida humana
insensibiliza para o problema ético que ela deveria acautelar.
A declaração de interesses…
Esta é uma de muitas razões pelas
quais sou contra a legalização da eutanásia, posição que evidenciei no debate.
Obriga-me a honestidade intelectual que formule declaração de interesses sobre
esta matéria. Na verdade, sou parte interessada em que não se legalize a
eutanásia.
Sou parte interessada, pois tenho
interesse em que o Estado continue a ser lógico e coerente e não legitime que,
em nome da minha arbitrariedade, alguém (outros, em meu nome) me faça mal. Se o
Estado ficar arbitrário e discricionário, dificilmente saberei com o que
poderei contar. E não é ingénua esta minha dúvida e dificuldade. Em nome da
autonomia que se pretende que fundamente a legalização da eutanásia, muitas
sociedades, em alguns dos países ocidentais, estão a ficar reduzidas ao mínimo
da solidariedade: cada um faça a sua vida e os outros também. Tal princípio
está a ter aplicação a todos os serviços que são pagos e sustentados com
impostos. Porquê impostos? São uma expressão de solidariedade que, em nome da
autonomia, pouca razão de ser continuarão a ter.
Sou parte interessada, pois quero
continuar a acreditar no serviço nacional de saúde e que, se alguém me fizer
mal, estando eu a ser tratado ao seu abrigo, no mínimo, preste contas do mal
feito, sem haver possibilidade de que qualquer expediente burocrático permitirá
que nunca tais contas se prestem.
Sou parte interessada, porque
vivo num Estado que continua a afirmar que o incentivo ao suicídio é punível,
por reconhecer que a autonomia não pode ser exercida ao arrepio do cuidado pela
vida.
Sou parte interessada, porque não
quero, nunca, sentir a pressão da sociedade que, perante a gravidade da minha
doença, me aponte como hipotética solução antecipar a minha morte, em vez de
cuidar de mim e me dizer que devo persistir, mesmo que as minhas palavras
dissessem que a morte era o melhor.
Sou parte interessada, porque a
memória da vida em democracia me demonstra que, sempre que se encontrou uma
solução mais fácil para o problema que não era a verdadeira solução, tarde ou
nunca se veio a optar pela solução que todos sabiam ser a melhor. Se a
eutanásia se legalizar, dificilmente se fará em prol dos cuidados paliativos o
que deve ser feito.
Sou parte interessada, porque os
valores do bem comum, da solidariedade, da justiça são alicerces da vida em
sociedade tal como a temos construído até hoje. A eutanásia é injusta, atenta
contra a solidariedade e utiliza o bem comum para um fim inaceitável. Mas, em
nome de alguns que a pretendem e que, por terem poder mediático, fazem crer que
nada há a fazer para se lhe opor, aceitamos que os valores que nos são comuns
sejam postos em causa, a pretexto de que alguns estão a pretender impor a
outros os seus valores. Os valores não são os de alguns impostos a outros. São
valores de uma sociedade que nos protegem a todos. Os valores comuns são como
um barco de que não podem partir-se partes do casco, para que avancem mais
rápido os de uma parte em relação aos das outras partes. O todo é que leva
todos. Sou, de facto, parte interessada nestes valores comuns. É que os valores
só o são se valerem. De outro modo, tornam-se «inválidos».
Sou parte interessada, porque não
quero ser vítima da tentação de me desinteressar pela vida. Nessa hora, os
outros deverão acordar-me para o dever de cuidar de mim mesmo, porque eles
mesmos cuidarão do meu cuidado, como hoje o fazem, quando alguém expressa, por
exemplo, que pretende suicidar-se, mas foi ineficaz na sua ação. Perante o seu
ato, os outros encetarão esforços para o dissuadir de repetir o ato. Mas o que
se fará, se a eutanásia for lei?
Ninguém pode ficar abandonado a si mesmo... A
esta condição chamamos sociedade. Que outro nome adotaremos se o mundo não mais
for do que o dos que meramente coexistem sobre um território?
Isto interessa-me!