quinta-feira, dezembro 21, 2017

Natal: e a Transcendência transfigura a opacidade em Transparência


 A realidade é opaca. Parece incontornavelmente opaca e insuscetível de leitura. Demonstra-o a dificuldade em descortinar-lhe um sentido. Se assim não fosse, seria, porém e de modo paradoxal, difícil que se pudesse assegurar espaço para a liberdade. A obviedade do sentido não deixaria margem para a decisão. Mas, de facto, a realidade é, na aparência, opaca.
Caberá à decisão conferir-lhe um sentido e proporcionar-lhe transparência.
É este o quadro para o âmbito do que celebramos, no Natal. Nada é determinado, nada é óbvio. Tudo é resultante da decisão da liberdade. Primeiro, da liberdade de Deus; depois, da liberdade humana.
E isto é que torna tão brilhante e luminoso o que celebramos, em cada Natal. Não o determinismo e a inevitabilidade, mas a perene e surpreendente novidade da liberdade.
A opacidade da realidade pode ser a responsável por, naquilo que não diz respeito ao que é humano, termos a ilusão de que podemos determinar, com toda a precisão, as causas e prever, sem margem para erro, as consequências. Essa é uma ilusão que se vai apropriando de todos nós, numa sociedade tão incomodada com a novidade e a imprevisibilidade. Queremos tudo determinar; estamos seguros de que somos determinados (pelo sangue, pelos genes, pelas circunstâncias, etc…). Mas o Natal é a afirmação de que o humano transcende os determinismos. Vive numa realidade que o condiciona, mas é-lhe transcendente. Esta é uma das afirmações nucleares do mistério natalício. Sim, porque mistério não é, para a teologia, sinónimo de um enigma indecifrável que alguém acabará por reduzir a banalidade; mistério é, para a teologia, a condição densa da realidade que faz dela algo que podemos descortinar, mas que sempre nos escapa e que captamos, pouco a pouco, mas sempre indeterminável.
Ao encarnar na realidade mundana, Deus afirma, não só que não é Deus à maneira grega (impassível, distante e não confundível com o concreto), mas, pelo contrário, que é amor como, aliás, o é, de forma finita, o próprio ser humano. Se, como afirma Romano Guardini, «quem sabe de Deus conhece o homem», então, partindo dessa premissa, teremos de perceber que Deus não pode ser tão distinto da realidade que nada tenha a ver com ela. A natureza da realidade, enquanto criada por um Deus que concede à humanidade a condição de criatura à Sua «imagem e semelhança», faz com que algo do que o homem é tenha de provir de Deus. E esse algo é a sua condição de amor e liberdade, duas condições que se exigem, mutuamente: sem liberdade, não há amor verdadeiro; sem amor, não há liberdade, mas puro arbítrio.

Ao encarnar, afirmando-se como um Deus que não é, meramente, pura necessidade, Deus transfigura a realidade, respeitando a sua aparência de opacidade, mas concedendo ao Homem que a olha a capacidade de nela descortinar o que ela parece ocultar. Como bem recorda Leonardo Boff, no seu livro sobre «os sacramentos da vida; a vida dos sacramentos», a realidade, depois da encarnação de Deus, já não se satisfaz em respeitar a transcendência de Deus; ela própria transparece o dinamismo divino. E talvez essa seja a maior exigência do Natal para estes tempos: superar a convicção de que a liberdade esteja ausente da realidade. Quando novos gnosticismos parecem querer reduzir o homem a pura alma e esquecer a corporeidade, como se esta fosse a origem do mal; quando os transumanismos se propõem afundar a humanidade num esvaziamento de si, prescrevendo que a história real não faz parte da identidade, o nascimento de Deus na singeleza de um lugar concreto, com nome e história reais desafia a reconquistar a densidade da realidade e a respeitar a sua condição de identidade. Não somos seres abstratos; somos e realizamo-nos na concretude de cada agora. Nascemos num aqui e agora que nos concretizam. E isto faz da realidade uma transparência: na história dos homens transparece a história do encontro entre Deus e as suas criaturas. A realidade não é vítima de umas quaisquer forças ocultas e deterministas: é uma história de encontros de liberdades. O Natal é a boia de salvação da humanidade face a toda a tentativa de desumanizar o mundo e de o tornar opaco. O opaco da realidade já não é uma efetiva condição insuperável, mas a condição da liberdade e do respeito pela decisão. Mas há quem queira que ela permaneça opaca e devedora de ocultos determinismos. Celebrar o Natal é celebrar a certeza de que o mundo transparece o Amor e, com ele, a Liberdade. Celebrar o Natal é proteger o Homem concreto, realizado no aqui e agora da história, de todas as utopias vagas e vãs que esmagam em nome de um Abstrato humano, ainda não realizado. Como bem recordava Gabriel Marcel, o que somos é «homo Viator», homem em caminho, peregrino, ainda e sempre incompleto. Destruir o homem concreto em virtude de um idealizado Homem abstrato é desrespeitar a condição peregrinante da humanidade. Queríamos ser sem termos de ainda não ser. Mas o que somos realiza-se como um realizar-se em caminho. Porque a encarnação deu-se no concreto de uma criança, acolhida numa família e nela realizada em respeito pelo caminho próprio de cada humano. O fazer-se é já parte da realização. Não há, por isso, Páscoa sem Natal. Não há ressurreição sem o acolhimento da condição (quase) opaca do mundo; porque é na opacidade do mundo que transparece a densidade da realidade para os olhos que a olhem como quem se sabe peregrino e a caminho.

domingo, dezembro 03, 2017

A dignidade do humano contra a ditadura da opinião

Vivemos tempos fascinados com a contestação. Contesta-se pelo puro prazer da adversidade. O que nem seria errado se a atitude ocultasse uma genuína busca da verdade. Infelizmente, porém, a agressividade com que se discute o que quer que seja (da mais significativa interrogação existencial à mais fútil situação mediatizada) permite concluir que esse não é o registo. E, se a verdade deixa de ser o horizonte, instauram-se as condições para aquilo a que Giovanni Sartori designava, no seu livro «homo videns», a ditadura da opinião.
Ora, mas se nos ficássemos pela mera discussão opinativa e tal não redundasse em alterações legislativas que nos afetam a todos, continuávamos disponíveis para ceder e aceder à vigência das opiniões.
Contudo, o depósito de convicção com que, hoje, se aborda cada linha de opinião obriga-nos à prudência e à busca de referências que deveríamos considerar inatacáveis e inabaláveis, a fim de que a instauração da referida «ditadura da opinião» não favoreça o aparecimento de ditadores que nos imponham arbitrariamente a «opinião» a seguir para que se consiga o consenso entretanto perdido.
Pode parecer tratar-se de um cenário utópico e, ainda, por cima, pessimista, mas os sinais não nos deixam sossegados no aconchego destes rótulos.
As conquistas da modernidade tinham-nos, supostamente, levado a concluir que estaríamos a reunir condições para que pudéssemos conviver em sã relação, respeitando aquilo que fomos considerando a nossa dignidade. E tomávamo-la como sinónimo de que éramos invioláveis. Essa conceção e esse pressuposto conduziram-nos à concretização da declaração universal dos direitos humanos. Nela radica cada um dos 30 artigos que a compõem.
Deixámos, porém, que «dignidade» fosse um conceito tomado pela ambiguidade. Do reconhecimento de que corresponderia a «inviolabilidade» passámos a uma vaga consideração de que correspondesse a «direito à autonomia». E se esta, inicialmente, significava reconhecer que podíamos não precisar dos outros para perceber, interiormente, a força da lei moral, com o tempo, passou a valer como sinónimo de que podíamos agir sem constrangimentos. O que renegava a origem da própria ideia de «autonomia» - ter a lei dentro de si próprio!
Hoje, este conceito serve, curiosamente, já não para sustentar a inviolabilidade da vida, mas precisamente, como legitimador da sua violação, se ela for consentida. Como pudemos chegar aqui?
O sinal mais recente de que podemos ainda não ter atingido o grau definitivo da degradação do conceito vem-nos de um designado «ativista» americano que defendeu, recentemente, no Porto, em conferência sobre o futuro (essa ilha onde cabem todas as utopias desencarnadas!), que «a extinção da espécie humana seria benéfica», sendo inclusive o promotor de um movimento que se propõe sensibilizar para a importância de nos extinguirmos.
Bem lida a sua intenção, chegará o momento em que, não só deixará de ser ilegítimo matar um ser humano como será, até, um ato digno fazê-lo.
E seria a contradição final que faltava…
Este percurso intelectual, que se não fosse trágico, poderia servir como caso de estudo na desconstrução de um conceito, denuncia a necessidade de se blindar o que devemos entender por dignidade da vida humana.
É curioso que se invoque, em Portugal, a dignidade entendida já na segunda linha de conceptualização, para legitimar a sua violação, esquecendo que é curioso que os constituintes da III República, ao redigir a Constituição de 1976, tenham optado por formular o artigo 24º, referindo que «a vida humana é inviolável». Não disseram, como pretendiam alguns, que «todos ou todo o cidadão tem direito à vida». Isso faria supor a existência prévia de um cidadão. Não!
Como bem recordava Tiago Duarte, recentemente, no Congresso Nacional de Leigos, ocorrido em Viseu, a opção dos constituintes foi a de colocar a vida humana como condição prévia a todos os direitos, como condição necessária a todos os demais direitos.
É aqui que temos de regressar. Ao reconhecimento da inviolabilidade da vida humana. Não da vida humana abstrata, mas da vida humana concreta em cada um. Pois, porque, como genialmente interroga um outro conferencista dos Congressos Nacionais de Leigos, Fabrice Hadjadj, que palestrou no Porto, em 2015, de onde vem o problema do homem contemporâneo que vive uma «errância tão extrema que já nem sequer sabe que há um destino? Vem do Homem, precisamente. Do Homem com H grande. Deste Homem genérico, que não existe, e do qual se pode fazer seja o que for. Vem da filosofia moderna que, numa espécie de angelismo vergonhoso, considerou o Homem como um ser racional, esqueceu que o homem era em primeiro lugar filho ou filha, homem ou mulher – para se tornar pai ou mãe – numa palavra – que ele era um ser familiar».
É deste tu concreto, deste alguém com história, que falamos ao referirmo-nos à dignidade da vida humana. Não um abstrato qualquer, sem corpo nem condição real.
Neste tempo, que prepara o Natal, esse acontecimento em que Deus encarna numa história concreta, somos recuperados para a realidade, somos redimidos do abstrato e restituídos à verdade do concreto. É no aqui e agora, nesta condição corpórea concreta, que se realiza a nossa dignidade. E sermos dignos é merecermos todo o respeito protetor: dos outros e nosso. Não podem fazer-nos mal; não podemos fazer-nos mal, porque a dignidade que possuímos nos interpela ao respeito pelo que somos. O resto é ditadura de opinião e etapa de rampa deslizante que nos conduz à própria destruição.

Comece, caro leitor, a travar o efeito dessa rampa sedutora, valorizando aqueles que constituem a sua família, a sua história. Deles recebeu a sua condição digna e neles se enraíza a sua transmissão da vida aos que a receberão de si. E isso em nome da dignidade humana que é comum a si e aos seus. Afirme a dignidade de humano e estará a travar uma generosa luta contra a nova ditadura que, de mansinho, se tem imposto com o consentimento de uns quantos que, poderosos e bem-falantes, aparecem como muitos. Ser digno não é, primeiramente, poder escolher: ser digno, ser portador da dignidade humana, é ser, é existir como identidade inviolável, e isso impor-se a si mesmo e aos demais. Daí decorre o dever de cuidar de si e de cuidar dos outros. Se a dignidade fosse a autonomia, no mais recente sentido, daí decorria um puro individualismo, a solidão absoluta. Mas dignidade é o oposto disso: faz de nós seres de relação. Somos dignos porque reconhecidos: reconhecidos pelos demais; e reconhecidos enquanto gratos!

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...