Vivemos tempos fascinados com a
contestação. Contesta-se pelo puro prazer da adversidade. O que nem seria
errado se a atitude ocultasse uma genuína busca da verdade. Infelizmente,
porém, a agressividade com que se discute o que quer que seja (da mais significativa
interrogação existencial à mais fútil situação mediatizada) permite concluir
que esse não é o registo. E, se a verdade deixa de ser o horizonte,
instauram-se as condições para aquilo a que Giovanni Sartori designava, no seu
livro «homo videns», a ditadura da opinião.
Ora, mas se nos ficássemos pela
mera discussão opinativa e tal não redundasse em alterações legislativas que
nos afetam a todos, continuávamos disponíveis para ceder e aceder à vigência
das opiniões.
Contudo, o depósito de convicção
com que, hoje, se aborda cada linha de opinião obriga-nos à prudência e à busca
de referências que deveríamos considerar inatacáveis e inabaláveis, a fim de
que a instauração da referida «ditadura da opinião» não favoreça o aparecimento
de ditadores que nos imponham arbitrariamente a «opinião» a seguir para que se
consiga o consenso entretanto perdido.
Pode parecer tratar-se de um
cenário utópico e, ainda, por cima, pessimista, mas os sinais não nos deixam
sossegados no aconchego destes rótulos.
As conquistas da modernidade
tinham-nos, supostamente, levado a concluir que estaríamos a reunir condições
para que pudéssemos conviver em sã relação, respeitando aquilo que fomos
considerando a nossa dignidade. E tomávamo-la como sinónimo de que éramos
invioláveis. Essa conceção e esse pressuposto conduziram-nos à concretização da
declaração universal dos direitos humanos. Nela radica cada um dos 30 artigos
que a compõem.
Deixámos, porém, que «dignidade»
fosse um conceito tomado pela ambiguidade. Do reconhecimento de que
corresponderia a «inviolabilidade» passámos a uma vaga consideração de que
correspondesse a «direito à autonomia». E se esta, inicialmente, significava
reconhecer que podíamos não precisar dos outros para perceber, interiormente, a
força da lei moral, com o tempo, passou a valer como sinónimo de que podíamos
agir sem constrangimentos. O que renegava a origem da própria ideia de
«autonomia» - ter a lei dentro de si próprio!
Hoje, este conceito serve,
curiosamente, já não para sustentar a inviolabilidade da vida, mas
precisamente, como legitimador da sua violação, se ela for consentida. Como
pudemos chegar aqui?
O sinal mais recente de que
podemos ainda não ter atingido o grau definitivo da degradação do conceito
vem-nos de um designado «ativista» americano que defendeu, recentemente, no
Porto, em conferência sobre o futuro (essa ilha onde cabem todas as utopias
desencarnadas!), que «a extinção da espécie humana seria benéfica», sendo
inclusive o promotor de um movimento que se propõe sensibilizar para a importância
de nos extinguirmos.
Bem lida a sua intenção, chegará
o momento em que, não só deixará de ser ilegítimo matar um ser humano como
será, até, um ato digno fazê-lo.
E seria a contradição final que
faltava…
Este percurso intelectual, que se
não fosse trágico, poderia servir como caso de estudo na desconstrução de um
conceito, denuncia a necessidade de se blindar o que devemos entender por
dignidade da vida humana.
É curioso que se invoque, em
Portugal, a dignidade entendida já na segunda linha de conceptualização, para
legitimar a sua violação, esquecendo que é curioso que os constituintes da III
República, ao redigir a Constituição de 1976, tenham optado por formular o
artigo 24º, referindo que «a vida humana é inviolável». Não disseram, como pretendiam
alguns, que «todos ou todo o cidadão tem direito à vida». Isso faria supor a
existência prévia de um cidadão. Não!
Como bem recordava Tiago Duarte,
recentemente, no Congresso Nacional de Leigos, ocorrido em Viseu, a opção dos
constituintes foi a de colocar a vida humana como condição prévia a todos os
direitos, como condição necessária a todos os demais direitos.
É aqui que temos de regressar. Ao
reconhecimento da inviolabilidade da vida humana. Não da vida humana abstrata,
mas da vida humana concreta em cada um. Pois, porque, como genialmente
interroga um outro conferencista dos Congressos Nacionais de Leigos, Fabrice
Hadjadj, que palestrou no Porto, em 2015, de onde vem o problema do homem
contemporâneo que vive uma «errância tão extrema que já nem sequer sabe que há
um destino? Vem do Homem, precisamente. Do Homem com H grande. Deste Homem
genérico, que não existe, e do qual se pode fazer seja o que for. Vem da
filosofia moderna que, numa espécie de angelismo vergonhoso, considerou o Homem
como um ser racional, esqueceu que o homem era em primeiro lugar filho ou
filha, homem ou mulher – para se tornar pai ou mãe – numa palavra – que ele era
um ser familiar».
É deste tu concreto, deste alguém
com história, que falamos ao referirmo-nos à dignidade da vida humana. Não um
abstrato qualquer, sem corpo nem condição real.
Neste tempo, que prepara o Natal,
esse acontecimento em que Deus encarna numa história concreta, somos
recuperados para a realidade, somos redimidos do abstrato e restituídos à
verdade do concreto. É no aqui e agora, nesta condição corpórea concreta, que
se realiza a nossa dignidade. E sermos dignos é merecermos todo o respeito
protetor: dos outros e nosso. Não podem fazer-nos mal; não podemos fazer-nos
mal, porque a dignidade que possuímos nos interpela ao respeito pelo que somos.
O resto é ditadura de opinião e etapa de rampa deslizante que nos conduz à
própria destruição.
Comece, caro leitor, a travar o
efeito dessa rampa sedutora, valorizando aqueles que constituem a sua família,
a sua história. Deles recebeu a sua condição digna e neles se enraíza a sua
transmissão da vida aos que a receberão de si. E isso em nome da dignidade
humana que é comum a si e aos seus. Afirme a dignidade de humano e estará a
travar uma generosa luta contra a nova ditadura que, de mansinho, se tem
imposto com o consentimento de uns quantos que, poderosos e bem-falantes,
aparecem como muitos. Ser digno não é, primeiramente, poder escolher: ser
digno, ser portador da dignidade humana, é ser, é existir como identidade
inviolável, e isso impor-se a si mesmo e aos demais. Daí decorre o dever de
cuidar de si e de cuidar dos outros. Se a dignidade fosse a autonomia, no mais
recente sentido, daí decorria um puro individualismo, a solidão absoluta. Mas
dignidade é o oposto disso: faz de nós seres de relação. Somos dignos porque
reconhecidos: reconhecidos pelos demais; e reconhecidos enquanto gratos!