quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Como posso votar num partido que legaliza a morte?

Vivo, de há muito tempo para cá, uma espécie de orfandade política. Venho perdendo a ingenuidade de que a política fosse a nobre arte de conduzir a coisa pública na senda da construção do bem comum. Descubro-a como um mero campo de batalha onde, quando se detém o poder, ele é exercido com despotismo, cuidando-se de se dar a aparência de que o povo subscreve as decisões. Mas esquecem os que a vêm conduzindo nesse sentido que a vontade do povo se refletiu, primeiramente, na carta magna em que se plasmaram os valores que devem nortear as decisões avulsas. Nela, refere-se, de forma indubitável, no artigo 24º, que «a vida humana é inviolável». Não há qualquer margem para dúvidas. Os Constituintes de 1976 não escreveram que «todo o cidadão tem direito à vida». Isso teria significado que, primeiro, estava a condição de cidadão e, depois, a vida como direito. Não é assim que está na Constituição. O texto é muito claro e repitamo-lo: «a vida humana é inviolável». Diante disto, como poderá admitir o Parlamento que possa ser uma decisão constitucionalmente suportada, no contexto da III República, a defesa da legalização da eutanásia? A eutanásia, sejamos claros nos termos, é um ato do qual resulta a morte de alguém realizado por terceiro sobre o primeiro que o pede ou cujo pedido se presume (assim acontece, neste momento, nos poucos países que a legalizaram). Os pretextos são, aqui, secundários, pois, como vemos no caso da Holanda e da Bélgica, da autonomia passou-se, com o avançar do tempo, para outros motivos como, por exemplo, a situação de alcoolismo crónico ou casos de depressão profunda.
O que está, por isso, aqui, em causa, é se é legítimo fazer de conta que a Constituição da III República Portuguesa nada diz sobre o dever de se proteger a vida humana. E isso é uma resposta do Parlamento que, como eleitor e cidadão atento, irei observar com cuidado. Irei, muito atentamente, acompanhar as decisões de cada partido e de cada deputado. É esse o meu poder, como eleitor e como cidadão esclarecido. E estou seguro de que tomarei, em coerência, decisão sobre quem poderá continuar a merecer o meu voto de eleitor que se sente representado ou desrespeitado pelo Parlamento.
Mas assusta verificar a sensação de impunidade e indiferença para com o sentir genuíno dos cidadãos, evidenciada pelo Parlamento na forma como vem conduzindo esta questão. Certos de que os media se encarregarão de legitimar, mesmo que a posteriori, a sua decisão, os deputados vêm orientando, de forma sobranceira, a discussão sobre esta matéria que deveria ser clara para quem se norteia pelo que preconiza a Constituição - a morte de alguém, seja a seu pedido (abandona-se quem chegou ao serviço nacional de saúde, após realizar uma tentativa de suicídio?), seja imposta por alguém, é traição aos valores constitucionais que não colocam, de modo algum, em primeiro lugar, a autonomia, mas a submetem ao respeito pela vida e pelo bem da comunidade e de cada um. Se a autonomia for o valor absoluto, o que sobrará de vida em sociedade? Quem poderá continuar a exigir de cada um que, desrespeitando a sua autonomia, se imponha pagar impostos quando é rico e não precisa de serviços públicos? Ou quem poderá continuar a impor às famílias que limitem a autonomia dos seus filhos, obrigando-os a frequentar uma escolaridade a que, despudoradamente, se designa como «obrigatória»? Não estarão em ambos estes casos outros valores em causa que reconhecemos superiores à autonomia e aos quais a autonomia deve atender?
E, então, não deve a autonomia submeter-se ao cuidado para com a vida, sede de todos os direitos, para mais, sendo claro que é exercida por um terceiro a quem se pede que deixe de cuidar para matar?
Para quem possa estar a ler o que está em causa atribuindo um ar romântico à eutanásia, pensando que  é um modo digno de morrer, vale a pena que ouça o testemunho de uma enfermeira de nome Verónica, que, em 11 de abril de 2016, contou, na TSF, que participou, em Bruxelas, na eutanásia de uma mulher de 70 anos, saudável que, simplesmente, quis acabar com a vida. Como testemunha esta enfermeira que, percebe-se pelo testemunho, nem teve tempo de refletir no que ia fazer, a eutanásia "é simplesmente uma forma de desistência [da vida]". Quem ouve este testemunho, que pode ser encontrado aqui: https://www.tsf.pt/sociedade/saude/interior/veronica-decide-nao-repetir-eutanasia-5121126.html percebe que a eutanásia é um modo limpo, asséptico, de se acabar com a vida, gerando uma indiferença para com a dor, o sofrimento e a fragilidade. A legalização da eutanásia desumaniza a sociedade, pois cria uma falsa saída para as dúvidas que a debilidade nos coloca: em vez de gerar solidariedade, a eutanásia gera resignação e desistência. Como dizíamos, há tempos, «a eutanásia legalizada matar-nos-á a todos». Depois de legalizada, a eutanásia faz recair sobre a cabeça de cada doente e de cada débil (de cada um de nós que venha, um dia, a encontrar-se nessa situação) a pressão para que peça a sua eliminação, quando a vida se tornar mais difícil e mais exigente, seja em termos de vida social, seja em termos económicos. A morte não pode ser proposta como uma hipótese entre outras. Ela não pode ser alternativa, numa sociedade que se quer humanizada. Se ela for alternativa, ganhará, sempre!
Como pode a sociedade estar tão seduzida pela morte? Como pudemos deixar-nos cativar pela desistência, pelo individualismo, pela insolidariedade? Como pudemos deixar-nos tomar pelo solipsismo que deixa cada um sozinho com o seu sofrimento e a sua debilidade?
Não estou convencido de que este seja o sentir da sociedade portuguesa. Acho, antes, que uma certa classe política nos quis e quer convencer disso. Quer deixar-nos mais e mais isolados para assim poder governar-nos a seu bel-prazer. E isso, como cidadão, não posso deixar que aconteça e não poderei consentir.

Estarei atento, certo de que não votarei em partido que legaliza a morte.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

A intolerância do laicismo - Quem está, afinal, do lado da democracia?

A laicidade, entendida como a distinção entre o âmbito da política e o âmbito da religião, é, em si mesma, positiva e a salvaguarda da liberdade dos dois âmbitos.
Outra coisa bem distinta é o laicismo: a afirmação de que a religião deve confinar-se ao âmbito privado, sem direitos de presença no âmbito público, cabendo ao Estado assegurar que ela permaneça no âmbito estritamente individual.
Esta última perspetiva, -importa recordar uma e outra vez -, não foi, de modo algum, a que se verteu para a Constituição da III República Portuguesa, aprovada em 1976. Não o esqueçamos! Esta é uma afirmação que devemos vincar e sublinhar, contra os frequentes tiques de laicismo a que assistimos, invocando-se uma hipotética afirmação explícita da condição laica do Estado Português. Em momento algum se utilizam palavras como «laico», «laica» ou «laicidade» para definir a condição da III República Portuguesa. Tal acontece, porém e de modo bem distinto, na Constituição da República francesa e talvez esse facto inspire alguns que pretendem transferir para a realidade nacional portuguesa aquilo que ocorre em território francês. Na verdade, sem que nos devamos imiscuir em matérias de outras pátrias, há, em França, um problema religioso que, efetivamente, hoje, em Portugal, não existe. Existiu, no contexto da I República, e também, enquanto dificuldade de efetiva liberdade, durante a II República. Mas, efetivamente, a III República soube evitar os erros anteriormente cometidos.
Diga-se, ainda, que a laicidade, como afirmação da distinção entre o âmbito religioso e o âmbito político encontra, contrariamente ao que pretendem muitos discursos persecutórios e pouco honestos, a sua mais vincada afirmação e fundamento na obrigação cristã, cunhada em Mateus 22, 21, de «dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus». Uma distinção que não legitima, porém, qualquer indiferença ou perseguição generalizada. A laicidade tem um berço cristão!
Mas, perguntarão muitos, onde deverá procurar-se, então, a origem de uma tão notória deturpação de um princípio, por si mesmo positivo?
Teremos de recuar àquela que é a mãe de todas as revoluções modernas: a revolução francesa. Preconizadora de princípios que ela mesmo acabou por negar – igualdade (num primeiro momento, pouco mais do que os jacobinos podiam concorrer a eleições), fraternidade (depois de matar o Pai comum, a Revolução francesa gerou, efetivamente, uma orfandade e muito pouco de fraternidade) e liberdade (a que o terror instaurou?) – a revolução francesa forjou-se sobre um combate antirreligioso que marcou, de forma indelével a realidade francesa e criou uma matriz de que muitos ainda não se libertaram, volvidos mais de duzentos anos.
Invocando o que bem recorda Alexis Tocqueville, que compara a matriz americana e a francesa, é possível constatar que estando ambas as democracias assentes sobre a ideia de que o Estado é separado da Religião, tal conduziu, em ambas as revoluções, a soluções bem distintas. Na América, o Estado convive, de forma cooperante e dialogante, com as religiões e encontra nelas parceiros importantes, respeitando, inclusive, as sensibilidades religiosas mais expressivas sem de tal decorrer desrespeito pelas minorias. Já de outro modo, o Estado francês, sempre que o hipotético parceiro é uma religião, encontra dificuldades e problemas. E é fácil encontrar a causa, se recuarmos ao que preconizou a referida revolução (mãe, como dizíamos, das revoluções modernas: nela se inspiram a revolução russa, a chinesa, a coreana, a cubana, a albanesa, etc…).
O que preconizavam os revolucionários? Ouçamo-los, recuperando os seus próprios discursos…
Num discurso proferido na Convenção, após a aprovação da constituição de 1793 (em plena época do terror), afirma um dos membros desta Convenção que dirigia os destinos da nação francesa, identificado como Lequinio. Este membro da Convenção sustenta um princípio cujas consequências ele nega integralmente, no seu argumentário. Muito parecido, aliás, com o que é usual continuar a ouvir:
«Todos os cultos são livres. O primeiro dos direitos do homem é o de pensar livremente tratando de prestar homenagem ao deus que a sua imaginação lhe representa. Não é livre aquele cujo espírito está atormentado pelo discurso de um outro. Ninguém tem o direito de pregar absurdos e aquele que o faz torna-se refratário à lei que consagra a liberdade dos cultos uma vez que el quer, pela magia da sua eloquência, forçar os outros a praticar o seu. Todo o homem que se decida a pregar alguma máxima religiosa, qualquer que ela seja, viola a Constituição republicana. A fim de que a liberdade de cultos exista em toda a sua plenitude, é proibido a quem quer que seja pregar ou escrever para favorecer um culto ou uma opinião religiosa, qualquer que ela seja, sob pena de prisão imediata como inimigo da constituição republicana e de ser entregue ao tribunal revolucionário.» (Renaud EscandeO livro negro da revolução francesa, Editora Alêtheia, p.713).
Uma tal interpretação de liberdade de culto denuncia um preconceito e uma presunção próprios dos intolerantes, sendo que se faz, ainda para agudizar o paradoxo, em nome da tolerância e da liberdade.
É a intolerância própria dos presunçosos que se consideram detentores da verdade e, por isso, legitimados para a imporem. Há, aliás, um discurso de Robespierre, um dos principais mentores da revolução, que é, a este propósito, muito eloquente. Foi proferido em 1794 e defende «que o déspota governe pelo terror os seus súbditos embrutecidos; ele tem razão, como déspota: domai pelo terror os inimigos da liberdade; e tereis razão como fundadores da República. O governo da revolução é o despotismo da liberdade contra a tirania.» (Escande, p.682). O despotismo, no contexto da revolução francesa, atingiu índices singulares de presunção, visíveis, aliás, na criação de um novo calendário, com novas designações e terminologias e início definido para 22 de setembro de 1793, data a partir da qual passava a contar-se o tempo.
Tal presunção é, eventualmente, ainda mais notória quando se trata de educação.
Diz, a este propósito, o mesmo Robespierre, no mesmo ano de 1794, renumerado como ano II: «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, p.724). Já anteriormente, mas no mesmo ano, defendera Danton, outro dos dirigentes revolucionários, que «as crianças pertencem à República antes de pertencerem a seus pais […]. Quem me garantirá que estas crianças, trabalhadas pelo egoísmo dos pais, não se tornarão perigosas para a República? (…) E por que motivo a razão de um indivíduo nos deve importar diante da razão nacional? […] É nas escolas nacionais que a criança deve sugar o leite republicano.» (Escande, p. 790, nota 8).
É comum a todos estes discursos um pressuposto: quem governa é que sabe o que é bom para o povo.
Não é, porém, a democracia o reconhecimento de que o poder está no povo («demos»+«cratia»)? E se o povo é religioso, intrinsecamente marcado pelo seu sentido de abertura ao transcendente, pode fazer-se a política de um outro modo que não passe por respeitar a sensibilidade do povo?

Quem é, afinal, verdadeiramente democrata?

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