Vivo,
de há muito tempo para cá, uma espécie de orfandade política. Venho perdendo a
ingenuidade de que a política fosse a nobre arte de conduzir a coisa pública na
senda da construção do bem comum. Descubro-a como um mero campo de batalha
onde, quando se detém o poder, ele é exercido com despotismo, cuidando-se de se
dar a aparência de que o povo subscreve as decisões. Mas esquecem os que a vêm
conduzindo nesse sentido que a vontade do povo se refletiu, primeiramente, na
carta magna em que se plasmaram os valores que devem nortear as decisões
avulsas. Nela, refere-se, de forma indubitável, no artigo 24º, que «a vida
humana é inviolável». Não há qualquer margem para dúvidas. Os Constituintes de
1976 não escreveram que «todo o cidadão tem direito à vida». Isso teria
significado que, primeiro, estava a condição de cidadão e, depois, a vida como
direito. Não é assim que está na Constituição. O texto é muito claro e
repitamo-lo: «a vida humana é inviolável». Diante disto, como poderá admitir o
Parlamento que possa ser uma decisão constitucionalmente suportada, no contexto
da III República, a defesa da legalização da eutanásia? A eutanásia, sejamos
claros nos termos, é um ato do qual resulta a morte de alguém realizado por
terceiro sobre o primeiro que o pede ou cujo pedido se presume (assim acontece,
neste momento, nos poucos países que a legalizaram). Os pretextos são, aqui,
secundários, pois, como vemos no caso da Holanda e da Bélgica, da autonomia
passou-se, com o avançar do tempo, para outros motivos como, por exemplo, a
situação de alcoolismo crónico ou casos de depressão profunda.
O
que está, por isso, aqui, em causa, é se é legítimo fazer de conta que a
Constituição da III República Portuguesa nada diz sobre o dever de se proteger
a vida humana. E isso é uma resposta do Parlamento que, como eleitor e cidadão
atento, irei observar com cuidado. Irei, muito atentamente, acompanhar as
decisões de cada partido e de cada deputado. É esse o meu poder, como eleitor e
como cidadão esclarecido. E estou seguro de que tomarei, em coerência, decisão
sobre quem poderá continuar a merecer o meu voto de eleitor que se sente
representado ou desrespeitado pelo Parlamento.
Mas
assusta verificar a sensação de impunidade e indiferença para com o sentir
genuíno dos cidadãos, evidenciada pelo Parlamento na forma como vem conduzindo
esta questão. Certos de que os media se encarregarão de legitimar, mesmo que a posteriori, a sua decisão, os
deputados vêm orientando, de forma sobranceira, a discussão sobre esta matéria
que deveria ser clara para quem se norteia pelo que preconiza a Constituição -
a morte de alguém, seja a seu pedido (abandona-se quem chegou ao serviço
nacional de saúde, após realizar uma tentativa de suicídio?), seja imposta por
alguém, é traição aos valores constitucionais que não colocam, de modo algum,
em primeiro lugar, a autonomia, mas a submetem ao respeito pela vida e pelo bem
da comunidade e de cada um. Se a autonomia for o valor absoluto, o que sobrará
de vida em sociedade? Quem poderá continuar a exigir de cada um que,
desrespeitando a sua autonomia, se imponha pagar impostos quando é rico e não
precisa de serviços públicos? Ou quem poderá continuar a impor às famílias que
limitem a autonomia dos seus filhos, obrigando-os a frequentar uma escolaridade
a que, despudoradamente, se designa como «obrigatória»? Não estarão em ambos estes
casos outros valores em causa que reconhecemos superiores à autonomia e aos
quais a autonomia deve atender?
E,
então, não deve a autonomia submeter-se ao cuidado para com a vida, sede de
todos os direitos, para mais, sendo claro que é exercida por um terceiro a quem
se pede que deixe de cuidar para matar?
Para
quem possa estar a ler o que está em causa atribuindo um ar romântico à
eutanásia, pensando que é um modo digno
de morrer, vale a pena que ouça o testemunho de uma enfermeira de nome
Verónica, que, em 11 de abril de 2016, contou, na TSF, que participou, em
Bruxelas, na eutanásia de uma mulher de 70 anos, saudável que, simplesmente,
quis acabar com a vida. Como testemunha esta enfermeira que, percebe-se pelo
testemunho, nem teve tempo de refletir no que ia fazer, a eutanásia "é
simplesmente uma forma de desistência [da vida]". Quem ouve este
testemunho, que pode ser encontrado aqui: https://www.tsf.pt/sociedade/saude/interior/veronica-decide-nao-repetir-eutanasia-5121126.html percebe que a eutanásia é um
modo limpo, asséptico, de se acabar com a vida, gerando uma indiferença para
com a dor, o sofrimento e a fragilidade. A legalização da eutanásia desumaniza
a sociedade, pois cria uma falsa saída para as dúvidas que a debilidade nos
coloca: em vez de gerar solidariedade, a eutanásia gera resignação e
desistência. Como dizíamos, há tempos, «a eutanásia legalizada matar-nos-á a
todos». Depois de legalizada, a eutanásia faz recair sobre a cabeça de cada
doente e de cada débil (de cada um de nós que venha, um dia, a encontrar-se
nessa situação) a pressão para que peça a sua eliminação, quando a vida se
tornar mais difícil e mais exigente, seja em termos de vida social, seja em
termos económicos. A morte não pode ser proposta como uma hipótese entre
outras. Ela não pode ser alternativa, numa sociedade que se quer humanizada. Se
ela for alternativa, ganhará, sempre!
Como
pode a sociedade estar tão seduzida pela morte? Como pudemos deixar-nos cativar
pela desistência, pelo individualismo, pela insolidariedade? Como pudemos
deixar-nos tomar pelo solipsismo que deixa cada um sozinho com o seu sofrimento
e a sua debilidade?
Não
estou convencido de que este seja o sentir da sociedade portuguesa. Acho,
antes, que uma certa classe política nos quis e quer convencer disso. Quer
deixar-nos mais e mais isolados para assim poder governar-nos a seu bel-prazer.
E isso, como cidadão, não posso deixar que aconteça e não poderei consentir.
Estarei
atento, certo de que não votarei em partido que legaliza a morte.