A laicidade, entendida como a
distinção entre o âmbito da política e o âmbito da religião, é, em si mesma,
positiva e a salvaguarda da liberdade dos dois âmbitos.
Outra coisa bem distinta é o laicismo: a afirmação de que
a religião deve confinar-se ao âmbito privado, sem direitos de presença no
âmbito público, cabendo ao Estado assegurar que ela permaneça no âmbito
estritamente individual.
Esta última perspetiva, -importa recordar uma e
outra vez -, não foi, de modo algum, a que se verteu para a Constituição da III
República Portuguesa, aprovada em 1976. Não o esqueçamos! Esta é uma afirmação
que devemos vincar e sublinhar, contra os frequentes tiques de laicismo a que
assistimos, invocando-se uma hipotética afirmação explícita da condição laica
do Estado Português. Em momento algum se utilizam palavras como «laico»,
«laica» ou «laicidade» para definir a condição da III República Portuguesa. Tal
acontece, porém e de modo bem distinto, na Constituição da República francesa e
talvez esse facto inspire alguns que pretendem transferir para a realidade
nacional portuguesa aquilo que ocorre em território francês. Na verdade, sem
que nos devamos imiscuir em matérias de outras pátrias, há, em França, um
problema religioso que, efetivamente, hoje, em Portugal, não existe. Existiu,
no contexto da I República, e também, enquanto dificuldade de efetiva
liberdade, durante a II República. Mas, efetivamente, a III República soube evitar
os erros anteriormente cometidos.
Diga-se, ainda, que a laicidade, como afirmação da
distinção entre o âmbito religioso e o âmbito político encontra, contrariamente
ao que pretendem muitos discursos persecutórios e pouco honestos, a sua mais
vincada afirmação e fundamento na obrigação cristã, cunhada em Mateus 22, 21,
de «dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus». Uma distinção que
não legitima, porém, qualquer indiferença ou perseguição generalizada. A
laicidade tem um berço cristão!
Mas, perguntarão muitos, onde deverá procurar-se,
então, a origem de uma tão notória deturpação de um princípio, por si mesmo
positivo?
Teremos de recuar àquela que é a mãe de todas as
revoluções modernas: a revolução francesa. Preconizadora de princípios que ela
mesmo acabou por negar – igualdade (num primeiro momento, pouco mais do que os
jacobinos podiam concorrer a eleições), fraternidade (depois de matar o Pai
comum, a Revolução francesa gerou, efetivamente, uma orfandade e muito pouco de
fraternidade) e liberdade (a que o terror instaurou?) – a revolução francesa
forjou-se sobre um combate antirreligioso que marcou, de forma indelével a
realidade francesa e criou uma matriz de que muitos ainda não se libertaram,
volvidos mais de duzentos anos.
Invocando o que bem recorda Alexis Tocqueville, que
compara a matriz americana e a francesa, é possível constatar que estando ambas
as democracias assentes sobre a ideia de que o Estado é separado da Religião,
tal conduziu, em ambas as revoluções, a soluções bem distintas. Na América, o
Estado convive, de forma cooperante e dialogante, com as religiões e encontra
nelas parceiros importantes, respeitando, inclusive, as sensibilidades
religiosas mais expressivas sem de tal decorrer desrespeito pelas minorias. Já
de outro modo, o Estado francês, sempre que o hipotético parceiro é uma
religião, encontra dificuldades e problemas. E é fácil encontrar a causa, se
recuarmos ao que preconizou a referida revolução (mãe, como dizíamos, das
revoluções modernas: nela se inspiram a revolução russa, a chinesa, a coreana,
a cubana, a albanesa, etc…).
O que preconizavam os revolucionários? Ouçamo-los,
recuperando os seus próprios discursos…
Num discurso proferido na Convenção, após a
aprovação da constituição de 1793 (em plena época do terror), afirma um dos
membros desta Convenção que dirigia os destinos da nação francesa, identificado
como Lequinio. Este membro da Convenção sustenta um princípio cujas
consequências ele nega integralmente, no seu argumentário. Muito parecido,
aliás, com o que é usual continuar a ouvir:
«Todos os cultos são livres. O primeiro dos
direitos do homem é o de pensar livremente tratando de prestar homenagem ao
deus que a sua imaginação lhe representa. Não é livre aquele cujo espírito está
atormentado pelo discurso de um outro. Ninguém tem o direito de pregar absurdos
e aquele que o faz torna-se refratário à lei que consagra a liberdade dos
cultos uma vez que el quer, pela magia da sua eloquência, forçar os outros a
praticar o seu. Todo o homem que se decida a pregar alguma máxima religiosa,
qualquer que ela seja, viola a Constituição republicana. A fim de que a
liberdade de cultos exista em toda a sua plenitude, é proibido a quem quer que
seja pregar ou escrever para favorecer um culto ou uma opinião religiosa, qualquer
que ela seja, sob pena de prisão imediata como inimigo da constituição
republicana e de ser entregue ao tribunal revolucionário.» (Renaud Escande – O livro negro da revolução francesa, Editora Alêtheia, p.713).
Uma tal interpretação de liberdade de culto
denuncia um preconceito e uma presunção próprios dos intolerantes, sendo que se
faz, ainda para agudizar o paradoxo, em nome da tolerância e da liberdade.
É a intolerância própria dos presunçosos que se
consideram detentores da verdade e, por isso, legitimados para a imporem. Há,
aliás, um discurso de Robespierre, um dos principais mentores da revolução, que
é, a este propósito, muito eloquente. Foi proferido em 1794 e defende «que o
déspota governe pelo terror os seus súbditos embrutecidos; ele tem razão, como
déspota: domai pelo terror os inimigos da liberdade; e tereis razão como
fundadores da República. O governo da revolução é o despotismo da liberdade
contra a tirania.» (Escande, p.682).
O despotismo, no contexto da revolução francesa, atingiu índices singulares de
presunção, visíveis, aliás, na criação de um novo calendário, com novas
designações e terminologias e início definido para 22 de setembro de 1793, data
a partir da qual passava a contar-se o tempo.
Tal presunção é, eventualmente, ainda mais notória quando
se trata de educação.
Diz, a este propósito, o mesmo Robespierre, no
mesmo ano de 1794, renumerado como ano II: «a pátria tem o direito de educar os
seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem
aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de
um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, p.724). Já anteriormente, mas
no mesmo ano, defendera Danton, outro dos dirigentes revolucionários, que «as
crianças pertencem à República antes de pertencerem a seus pais […]. Quem me
garantirá que estas crianças, trabalhadas pelo egoísmo dos pais, não se
tornarão perigosas para a República? (…) E por que motivo a razão de um
indivíduo nos deve importar diante da razão nacional? […] É nas escolas
nacionais que a criança deve sugar o leite republicano.» (Escande, p. 790, nota 8).
É comum a todos estes discursos um pressuposto:
quem governa é que sabe o que é bom para o povo.
Não é, porém, a democracia o reconhecimento de que
o poder está no povo («demos»+«cratia»)? E se o povo é religioso,
intrinsecamente marcado pelo seu sentido de abertura ao transcendente, pode
fazer-se a política de um outro modo que não passe por respeitar a
sensibilidade do povo?
Quem é, afinal, verdadeiramente democrata?