As grandes ideias são concebidas por alguns e,
depois, assimiladas, progressivamente, pelos restantes. Não será por acaso,
aliás, que falamos de ‘conceber’ para nos referirmos ao processo pelo qual se
‘gera’ uma ideia. Ela é, de facto, ‘gerada’ e, depois, dada à luz. Quando vê a
luz, passa a ser recebida por todos e, de algum modo, partilhada entre todos.
É importante termos consciência disto, pois, na
medida em que somos seres racionais, a nossa vivência da realidade é altamente
condicionada pelo modo como a concebemos, como a geramos, no nosso interior, a
partir daquilo que recebemos dos outros.
Se estivermos conscientes disto, perceberemos que o
modo como pensarmos, como concebermos, como ‘gerarmos’ em nós determinada
realidade, far-nos-á vivê-la de um modo diferente daquela que seria a nossa
vivência dessa mesma realidade com outra ‘conceção’ da mesma.
Um dos maiores filósofos da história, Kant, deu-se
conta disso e provocou uma revolução tão importante que foi equiparada à que
Copérnico provocou no nosso modo de ver o sistema solar.
A sua descoberta serviu, porém, não para que
fôssemos mais prudentes, ao ‘gerar’ ideias e partilhá-las, mas antes tem
servido para que se agudize a manipulação dos que sabem isto em relação aos
demais.
Há, por isso, um dever ético de tomar consciência e
partilhar essa consciência de que somos vulneráveis à manipulação dos que sabem
como pensamos e como somos condicionados pelo modo como pensamos.
Feito este preâmbulo, avancemos para o assunto a
que conferimos estatuto de título deste artigo.
O conceito de liberdade é, provavelmente, o mais
importante para a compreensão da nossa sociedade moderna. Ele é, aliás,
entendido como a grande marca das sociedades modernas e coloca-o em contraste
com outras sociedades ditas ‘não modernas’. Há, porém, que consciencializar a
transformação que se tem operado neste conceito e como esta transformação nos
pode estar a encaminhar para o fim da sociedade.
A liberdade tem sido definida como a possibilidade
de se ‘fazer o que se quer’.
Há, nesta formulação, dois traços a
consciencializar. A liberdade é reduzida à dimensão de ‘ação’ (fazer!) e
confinada ao âmbito da vontade (‘querer’).
Mas, curiosamente, se tal conceito fosse
verdadeiro, seria difícil não considerar que também os animais podem ser
livres, o que tem algo de contraditório, pois a liberdade é, por definição, um
atributo humano (e divino, na perspetiva cristã), mas não pode considerar-se em
relação aos animais e demais entes naturais. Sem mais delongas, é fácil
constatar que tal se deve à condição racional do ser humano, o que obriga a
deslocar o conceito de liberdade do âmbito da vontade, como se supõe na
definição aqui recordada, para o âmbito da inteligência. É por isso que muitos
recordam (há uns anos, ouvi-o ao professor Guilherme D’Oliveira Martins) que a
liberdade é uma palavra que deriva de ‘libra’, uma espécie de balança, na
cultura e língua latina, dela derivando, portanto, a ideia de escolha e de
discernimento. Ser livre não é, a esta luz, a simples adesão ao que a vontade
‘quer’, mas a possibilidade de discernir, de escolher o melhor, em cada
situação.
Acrescentemos que esta sobrevalorização da vontade
tem ‘pais’, foi gerada na mente de alguns. Não é preciso muito esforço para
reconhecer, nesta ‘gestação’, o papel de Nietzsche e Schopenhauer, autores que
foram consequentes com as suas visões e deram conta de que o processo nos
levaria ao ‘nihilismo’, ao nada.
E é esse horizonte que pretendemos?
Não será de concluir que um tal horizonte denuncia
que temos um erro ‘genético’ nesta conceção que será urgente submeter a uma
terapia? Aparentemente, é, apenas, um pequeno erro de conceção, mas é oportuno
recordar que a geometria evidencia que um pequenino erro no início de um ângulo
pode significar um erro de quilómetros quando se prolonga uma semirreta. E
qualquer análise atenta do conceito de liberdade tantas vezes invocado só pode
concluir que ele está errado.
É que este conceito ainda redunda num outro
problema…
Arbitrariedade não é liberdade
A vontade isola-nos. A vontade é algo intrinsecamente
individualista. A vontade é aleatória e arbitrária. Não sabemos porque é que a
vontade quer o que quer. Quer, simplesmente, porque quer.
Já a inteligência escolhe, tendo como horizonte a
busca da verdade.
Colocar a liberdade no âmbito da inteligência
significa estar num caminho que une os demais humanos que estão em busca e
permite a compreensão, com base na argumentação e no discernimento.
A liberdade, entendida como ‘possibilidade de fazer
o que se quer’ é individualista. Some o sentido de dever, tudo colocando ao
serviço do indivíduo, da sua vontade que é completamente imprevisível e insuscetível
de satisfação.
Só por imposição arbitrária é que, após a
interiorização de um conceito de liberdade tão marcadamente individualista e
solipsista (cada um fechado sobre si mesmo) é que se valoriza a importância do
outro que, de algum modo, aparece sempre como um estorvo. A esta luz, de facto,
como concluiu Sartre, ‘o inferno são os outros’.
Mas, de facto, os outros não só não são o inferno
como são a nossa condição de possibilidade, como demonstra a psicologia dos
últimos 100 anos. O estudo dos meninos-selvagens, assunto envolvido em alguma
polémica, permite concluir que, sem a presença e participação dos outros
humanos, se fôssemos abandonados na selva, nos primeiros anos de vida, talvez
sobrevivêssemos, biologicamente falando, mas nunca teríamos consciência de nós
mesmos. Esta consciência é uma possibilidade que precisa dos outros para
despertar. Seguindo a linha do grande pensador Alasdair Macintyre, figura
destacada do chamado ‘comunitarismo’, a base da vida humana não é o indivíduo,
fechado sobre si mesmo, mas sim a relação entre os humanos. É fácil perceber o
alcance desta constatação e, com essa perceção, submeter a profunda crítica o
tipo de opções que temos vindo a adotar, em sociedade.
A educação não deveria, à luz desta reflexão que
aqui partilhámos, vincar a ideia de liberdade associada à vontade, mas sim,
fazê-la decorrer da busca da verdade, colocando-nos num caminho em que os
outros são parceiros de percurso e não o seu impedimento.
Insistir em educar à luz de um conceito de
liberdade voluntarista e solipsista só pode redundar numa dificuldade cada vez
maior e mais visível de gerar ‘cidadãos’. Só se pode ser cidadão se se sentir a
pertença à cidade (‘pólis’), aqui entendida como sinónimo de ‘sociedade’
(palavra que, através da língua grega, está na raiz de ‘política’). De outro
modo, a sociedade não passará de um termo sem conteúdo, referindo-se à mera
soma de indivíduos sobre um território, mas sem identidade nem relação. A única
preocupação de cada um dos seus membros será que os outros não estorvem. Não
será isso muito pouco como sonho de sociedade?