quinta-feira, julho 11, 2019

Convencemo-nos de que ‘liberdade é fazer o que se quer’ e, depois, queremos cidadãos!


As grandes ideias são concebidas por alguns e, depois, assimiladas, progressivamente, pelos restantes. Não será por acaso, aliás, que falamos de ‘conceber’ para nos referirmos ao processo pelo qual se ‘gera’ uma ideia. Ela é, de facto, ‘gerada’ e, depois, dada à luz. Quando vê a luz, passa a ser recebida por todos e, de algum modo, partilhada entre todos.
É importante termos consciência disto, pois, na medida em que somos seres racionais, a nossa vivência da realidade é altamente condicionada pelo modo como a concebemos, como a geramos, no nosso interior, a partir daquilo que recebemos dos outros.
Se estivermos conscientes disto, perceberemos que o modo como pensarmos, como concebermos, como ‘gerarmos’ em nós determinada realidade, far-nos-á vivê-la de um modo diferente daquela que seria a nossa vivência dessa mesma realidade com outra ‘conceção’ da mesma.
Um dos maiores filósofos da história, Kant, deu-se conta disso e provocou uma revolução tão importante que foi equiparada à que Copérnico provocou no nosso modo de ver o sistema solar.
A sua descoberta serviu, porém, não para que fôssemos mais prudentes, ao ‘gerar’ ideias e partilhá-las, mas antes tem servido para que se agudize a manipulação dos que sabem isto em relação aos demais.
Há, por isso, um dever ético de tomar consciência e partilhar essa consciência de que somos vulneráveis à manipulação dos que sabem como pensamos e como somos condicionados pelo modo como pensamos.
Feito este preâmbulo, avancemos para o assunto a que conferimos estatuto de título deste artigo.
O conceito de liberdade é, provavelmente, o mais importante para a compreensão da nossa sociedade moderna. Ele é, aliás, entendido como a grande marca das sociedades modernas e coloca-o em contraste com outras sociedades ditas ‘não modernas’. Há, porém, que consciencializar a transformação que se tem operado neste conceito e como esta transformação nos pode estar a encaminhar para o fim da sociedade.
A liberdade tem sido definida como a possibilidade de se ‘fazer o que se quer’.
Há, nesta formulação, dois traços a consciencializar. A liberdade é reduzida à dimensão de ‘ação’ (fazer!) e confinada ao âmbito da vontade (‘querer’).
Mas, curiosamente, se tal conceito fosse verdadeiro, seria difícil não considerar que também os animais podem ser livres, o que tem algo de contraditório, pois a liberdade é, por definição, um atributo humano (e divino, na perspetiva cristã), mas não pode considerar-se em relação aos animais e demais entes naturais. Sem mais delongas, é fácil constatar que tal se deve à condição racional do ser humano, o que obriga a deslocar o conceito de liberdade do âmbito da vontade, como se supõe na definição aqui recordada, para o âmbito da inteligência. É por isso que muitos recordam (há uns anos, ouvi-o ao professor Guilherme D’Oliveira Martins) que a liberdade é uma palavra que deriva de ‘libra’, uma espécie de balança, na cultura e língua latina, dela derivando, portanto, a ideia de escolha e de discernimento. Ser livre não é, a esta luz, a simples adesão ao que a vontade ‘quer’, mas a possibilidade de discernir, de escolher o melhor, em cada situação.
Acrescentemos que esta sobrevalorização da vontade tem ‘pais’, foi gerada na mente de alguns. Não é preciso muito esforço para reconhecer, nesta ‘gestação’, o papel de Nietzsche e Schopenhauer, autores que foram consequentes com as suas visões e deram conta de que o processo nos levaria ao ‘nihilismo’, ao nada.
E é esse horizonte que pretendemos?
Não será de concluir que um tal horizonte denuncia que temos um erro ‘genético’ nesta conceção que será urgente submeter a uma terapia? Aparentemente, é, apenas, um pequeno erro de conceção, mas é oportuno recordar que a geometria evidencia que um pequenino erro no início de um ângulo pode significar um erro de quilómetros quando se prolonga uma semirreta. E qualquer análise atenta do conceito de liberdade tantas vezes invocado só pode concluir que ele está errado.
É que este conceito ainda redunda num outro problema…

Arbitrariedade não é liberdade
A vontade isola-nos. A vontade é algo intrinsecamente individualista. A vontade é aleatória e arbitrária. Não sabemos porque é que a vontade quer o que quer. Quer, simplesmente, porque quer.
Já a inteligência escolhe, tendo como horizonte a busca da verdade.
Colocar a liberdade no âmbito da inteligência significa estar num caminho que une os demais humanos que estão em busca e permite a compreensão, com base na argumentação e no discernimento.
A liberdade, entendida como ‘possibilidade de fazer o que se quer’ é individualista. Some o sentido de dever, tudo colocando ao serviço do indivíduo, da sua vontade que é completamente imprevisível e insuscetível de satisfação.
Só por imposição arbitrária é que, após a interiorização de um conceito de liberdade tão marcadamente individualista e solipsista (cada um fechado sobre si mesmo) é que se valoriza a importância do outro que, de algum modo, aparece sempre como um estorvo. A esta luz, de facto, como concluiu Sartre, ‘o inferno são os outros’.
Mas, de facto, os outros não só não são o inferno como são a nossa condição de possibilidade, como demonstra a psicologia dos últimos 100 anos. O estudo dos meninos-selvagens, assunto envolvido em alguma polémica, permite concluir que, sem a presença e participação dos outros humanos, se fôssemos abandonados na selva, nos primeiros anos de vida, talvez sobrevivêssemos, biologicamente falando, mas nunca teríamos consciência de nós mesmos. Esta consciência é uma possibilidade que precisa dos outros para despertar. Seguindo a linha do grande pensador Alasdair Macintyre, figura destacada do chamado ‘comunitarismo’, a base da vida humana não é o indivíduo, fechado sobre si mesmo, mas sim a relação entre os humanos. É fácil perceber o alcance desta constatação e, com essa perceção, submeter a profunda crítica o tipo de opções que temos vindo a adotar, em sociedade.
A educação não deveria, à luz desta reflexão que aqui partilhámos, vincar a ideia de liberdade associada à vontade, mas sim, fazê-la decorrer da busca da verdade, colocando-nos num caminho em que os outros são parceiros de percurso e não o seu impedimento.
Insistir em educar à luz de um conceito de liberdade voluntarista e solipsista só pode redundar numa dificuldade cada vez maior e mais visível de gerar ‘cidadãos’. Só se pode ser cidadão se se sentir a pertença à cidade (‘pólis’), aqui entendida como sinónimo de ‘sociedade’ (palavra que, através da língua grega, está na raiz de ‘política’). De outro modo, a sociedade não passará de um termo sem conteúdo, referindo-se à mera soma de indivíduos sobre um território, mas sem identidade nem relação. A única preocupação de cada um dos seus membros será que os outros não estorvem. Não será isso muito pouco como sonho de sociedade?


O estranho caso do inexistente apelo ao voto


Esta reflexão decorre da minha condição de cidadão português e europeu e de cristão de matriz católica. Não vincula, por isso, qualquer das instituições a que pertenço. Entendo, como pressuposto a esta análise, que a catolicidade tem como traço marcante a busca de não deixar ninguém de fora: perante as tentações de confinar a uma leitura particularista, a catolicidade define-se pela universalidade. ‘Nada do que é humano [nos] é estranho’.

Estabelecido este pressuposto, importa orientar a nossa atenção para o assunto que aqui discutiremos.

 

Uma imprensa que serve a verdade e não agendas obscuras

Em meados de maio, um jornal de tiragem nacional publicava que o ‘Patriarcado partilhou apelo ao voto no Basta’.

Quando vi a notícia, e vendo-a no específico jornal em que tal ocorreu, fiz a pergunta que sempre faço quando leio uma manchete: a quem serve esta notícia? [O leitor pode aplicar o critério a este próprio artigo: sirvo a causa dos mais frágeis (desde a conceção à morte natural) e faço-o por entender que nenhum humano vale mais nem menos do que qualquer outro. Ninguém tem legitimidade para matar ninguém! Ninguém! Sou, por isso, contra todo e qualquer atentado contra a vida humana! Aborto, tortura, pena de morte, eutanásia, eugenismo, violência sobre quem é mais frágil, etc., são faces diversas do mesmo desrespeito pela inviolabilidade da vida humana!].

Antes de mais desenvolvimentos, detenho-me no motivo da interrogação acima referida.

Há muito que defendo que os meios de comunicação social deveriam fazer declaração de interesses. Assim é, por exemplo, na imprensa que pertence às dioceses. É conhecida de todos a sua matriz, mas, ainda assim, esta imprensa diocesana é obrigada a explicitar o seu estatuto editorial e as suas conceções estruturantes. O mesmo preconizo para a imprensa nacional.

Defendo, aliás, que os grandes jornais deveriam explicitar as suas motivações e não, sob a capa de neutralidade, veicularem agendas que um olhar atento facilmente descortina, mas que se teima em pretender ocultar, de forma obscura, acusando, aliás, de obscurantismo aqueles que, afinal, têm as suas matrizes mais explícitas.

Feito este excurso, regressemos ao ponto que justificou a interrogação.

Quando, logo pela manhã, vi a manchete, sabendo da posição oficial da Conferência Episcopal sobre não assumir posição partidária, mas sem se inibir de denunciar o desrespeito por valores que considera estruturantes para a vida em sociedade, facilmente concluí que alguém pretendia matar à nascença um assunto que se presumia ser incómodo.

Não precisei de muito para que tal se tornasse evidente.

A forma como a notícia era dada, para além de ser falsa (o ‘Basta’ não era o único partido que correspondia ao suposto ‘apelo’, sendo que os católicos não votam num certo sentido porque se lhes diz que é neste ou naquele partido que deve votar-se. Muitos querem continuar a cultivar essa ideia de menoridade quando o voto da maioria dos católicos não subscreve as suas opções!), desrespeitava as mais básicas regras do jornalismo, uma vez que não assegurara o contraditório, pois a entidade envolvida no post (não o Patriarcado, mas sim a Federação Portuguesa pela Vida) nunca foi interrogada nem entrevistada por quem fez a notícia.

 

Porquê tanta pressa em denunciar um post de facebook?

Porquê, então, esta prontidão em denunciar um post de facebook?

Porque não havia tempo a perder. Importava matar à nascença (abortar, mais uma vez!) uma criatura que se vislumbrava ser incómoda. Os autores da manchete sabiam que o quadro feito pela Federação Portuguesa pela Vida não era uma fake new (‘falsa notícia’)! Explicitava o que cada partido pensava sobre as matérias que, para a referida Federação, têm sido motivo das suas principais preocupações, desde a sua fundação. E, em tempos como estes, clarificar ajuda o eleitorado a posicionar-se, o que vai ao arrepio do que se pretende em tempo de campanha eleitoral (!).

Constatemos que a mesma imprensa não se insurgiu contra a Igreja quando, supostamente, apelou ao voto, em relação a outras matérias, o que evidencia que a intenção da associação República e Laicidade de acusar o Patriarcado é estratégia de moreia que sai da sua cavidade para lançar o alarme, para, de seguida, recolher ao mesmo lugar.

Vejam-se, a título de exemplo, algumas manchetes, anteriores à data em que rebentou o escândalo da Igreja defender que a política não deve apoiar o aborto, a eutanásia, a legalização da prostituição ou outras matérias do âmbito da defesa da vida humana mais frágil.

Em 12 de maio, ‘o Cardeal D. António Marto critica «ideologias populistas e nacionalistas de intolerância e exclusão’. Em 2 de maio, ‘Papa alerta para «ressurgimento» de nacionalismos que podem comprometer projeto europeu’. Em 27 de abril, ‘D. José Cordeiro pede «políticas geradoras de emprego» para o interior do país.’ Em 21 de abril, na homilia de Domingo de Páscoa, o Bispo do Porto afirmava que ‘a abertura dos supermercados e dos centros comerciais ao Domingo [é] expressão de um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico.’

Sublinhemos, para que não restem dúvidas. A Igreja tem direito, e, para além de tudo, dever de denunciar quando a política não serve a dignidade da pessoa humana. Sempre! Sem medo e sem esquizofrenia.

 

Uma patologia grave da política

O que esteve em causa, neste escândalo do suposto apelo ao voto, foi uma questão que denuncia uma esquizofrenia na política. Os pronunciamentos da Igreja parecem bem-vindos se não se meterem em matéria de família e defesa da vida humana. Mas também em relação a matérias de moral social há assuntos em que não se lhe quer permitir que se intrometa, como veremos, de seguida.

O que parece estar em causa, de facto, é a proteção da vida humana! Sim, parece que não é tanto a matéria de doutrina social da Igreja, pois essa pensa-se que recolhe consensos. Valerá a pena, porém, recordar que a mesma Doutrina Social da Igreja defende o princípio da subsidiariedade, enunciado, pela primeira vez, em 1931, e que afirma que, quando a sociedade é capaz de, de forma justa, encontrar respostas para problemas nela existentes, não devem ser as instâncias superiores a supri-las, sob pena de agirem de forma injusta. É a esta luz que é justo que haja colégios da sociedade e que o ensino público não se reduza às escolas de iniciativa estatal ou que não deva permitir-se a criação de monopólios de qualquer tipo (privado ou estatal) que impeçam que a sociedade continue a procurar as melhores soluções para os problemas. Bem certo que esta página da doutrina social da Igreja é incómoda e deve ser rasgada!

Também a página que defende o legítimo direito à posse de bens, desde que em articulação com o destino universal dos bens, é incómoda, quando se defende o fim da propriedade privada ou quando, pelo contrário, se pretende defender um direito ilimitado à posse. É um princípio incómodo para todos – direita e esquerda – mas é assim a DSI. Não é coutada de ninguém, mas desafio para todos. Ninguém fica excluído. É isso que importa dizer. Ninguém fica excluído, segundo a DSI: nem os imigrantes, nem os ainda não nascidos; nem os que são marginalizados pelos seus comportamentos, nem os que estão em situação de limite de vida; nem os que cometeram graves crimes ou os mais inocentes de todos. Para a DSI, todos são dignos. E é isso que torna ridícula uma certa forma de fazer política. Só alguns parecem merecer respeito e reconhecimento. Os outros ficam ao abrigo da arbitrariedade ou da vontade de poder.

 

Lições e desafios de uma decisão

A pergunta que muitos fizeram, perante a clareza de que não tinha havido um apelo ao voto (apenas a replicação de um quadro que esclarecia sobre o posicionamento dos partidos que tinham respondido ao questionário da Federação Portuguesa pela Vida) e que, em rigor, se se tratasse de um apelo ao voto, tal não seria num só partido, era: porquê, então, o ‘recuo’ do Patriarcado?

Num tempo tão dado a polémicas gratuitas, o ‘recuo’ do Patriarcado extinguiu a chama que ameaçava distrair do que era importante. Manter um post que a imprensa já tinha obrigado a pensar que constituía um apelo ao voto num partido xenófobo era alimentar uma discussão inútil e que desvirtuava a intenção que assistira à sua publicação: informar.

Mas o recuo também obriga a refletir. A estratégia adotada pelo jornal que se apressou a dizer como devia ser interpretada a intenção do Patriarcado é suficientemente profissional para se perceber que regressará sempre que for possível e necessário. E essa é uma interrogação que deverá colocar-se com honestidade e transparência, nos areópagos onde se problematizam as fake news: devemos continuar a acreditar na imprensa que critica os que criam fake news quando ela mesma se socorre de igual estratégia para chegar aos seus objetivos?

E deverá, em definitivo, considerar-se que a defesa da intrínseca dignidade da vida humana ficará confinada ao âmbito dos partidos populistas ou de extrema?

 

A defesa da vida humana devia ser causa de todos

A memória obriga a reconhecer os riscos que tal comporta. Norberto Bobbio, autor que já recordei diversas vezes, definia-se como descrente e socialista, mas não ocultava que lhe causava estranheza que a defesa da vida humana ficasse entregue apenas aos crentes (e, hoje, poderia acrescentar: ‘e, entre estes, já só alguns!’). Hoje, tal é cada vez mais inquietante: o que está em causa diz respeito a todos; a dignidade humana, mesmo quando escondida, recôndita, é intrínseca a cada ser humano; esteja ele onde estiver, tenha ele a idade que tiver, esteja ele na condição em que estiver. A dignidade de cada um torna uma ofensa a cada um um problema de todos. Não pode deixar de gerar perplexidade, por isso, que não se reconheça o dever de proteção ao ser humano e que ele possa ficar disponível à vontade de alguns, quando, por oposição, se chega ao ponto de fechar um campo de futebol porque uma ave protegida decidiu iniciar a construção do seu ninho. (Nada contra, desde que não se fosse contraditório na abordagem jurídica. Bem sabe o legislador que é preciso proteger desde o início, mas parece esquecê-lo quando se refere aos humanos!). Refiro-me a um caso acontecido nos Estados Unidos (Nova Jérsia) envolvendo o borrelho-de-dupla-coleira.

O que está em causa é a coerência. E sabemos que, quando os regimes se entregam ao discricionário, ao arbitrário, favorecem a emergência de ditadores para quem as leis não devem respeitar princípios comuns a todos e inatacáveis, mas dependentes da vontade de quem tem poder. E, hoje, esse poder está em quem tem as armas para agitar as massas, para as levar a pensar o que quer que pensem. Como o sabe fazer uma certa imprensa em Portugal! Não é isso, afinal, o populismo?


‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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