quarta-feira, fevereiro 12, 2020

Eutanásia | Sim, do catolicismo espera-se muito!


Num momento em que se dava como certo nada haver a fazer perante a reunião de condições contabilísticas parlamentares para legalizar a eutanásia, a Igreja Católica, através da Conferência Episcopal Portuguesa, veio manifestar o seu apoio aos que promovem uma iniciativa popular de referendo, após a coincidente manifestação pontifícia de oposição à legalização da eutanásia, expressa na mensagem para o dia do doente, celebrado neste mesmo dia 11 de fevereiro.
Já anteriormente alguns bispos, entre os quais D. António Moiteiro, Bispo de Aveiro, tinham assumido, no espaço público, posição de defesa inabalável do dever de cuidar sempre da vida humana.
Adivinhando-se este somar de posições católicas promotoras da inviolabilidade da vida, foram-se ouvindo vozes com o estafado (não) argumento da ilegitimidade da Igreja para se pronunciar sobre tal matéria.
Não nos deteremos na contra-argumentação teórica, dado que vamos vendo que os ouvidos, nestas horas, parecem ensurdecidos.
Propomo-nos, antes, evidenciar como esta posição inabalável de defesa da dignidade de toda a vida humana foi fundamental, numa outra fase da história em que se assistiu a semelhante vertigem avassaladora que foi tomando conta dos países ocidentais.
Também nessa hora, a voz católica se distinguiu pela sua segurança e foi garantia de defesa da vida humana perante aquilo que, pouco mais tarde, a história veio a demonstrar ter sido um erro em que se enredaram os países ditos desenvolvidos, em nome do argumento do progresso e do caminho legitimado por uma certa forma de ler a ciência e um humanismo que servia de disfarce a totalitarismos.
Referimo-nos à vertigem eugenística que tomou grande parte dos países do mundo, em particular, no contexto ocidental, período que descrevemos no livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’.
De finais do século XIX até à II Guerra Mundial, o mundo assistiu ao engrandecer da ‘onda eugenística’. Sob o pretexto de que a ciência nos concedia instrumentos para identificarmos os mais débeis de entre os humanos e de que havia que replicar, no âmbito social, aquilo que a mesma ciência nos evidenciava que acontecia na natureza, isto é, a seleção natural que ‘protegia’ os mais fortes e ‘abandonava’ os mais débeis, era preciso replicar, no âmbito jurídico, o mesmo raciocínio. Importa recordar, a título ilustrativo, que o criador da palavra ‘eugenismo’, Francis Galton, era primo de Darwin, propondo-se transpor para o âmbito social o que este identificara no âmbito natural. Afirmava, no seu livro ‘Inquiries into the human faculty’, que a ‘eugenia era «bom nascimento», entendendo-a como «a ciência para melhorar a espécie humana, dando às raças e estirpes de melhor sangue uma maior probabilidade de dominar rapidamente os menos dotados». (Segundo Leone|Privitera|Cunha - Dicionário de Bioética)
A ideia estava criada. Havia que dar tempo. E o tempo e a ideia avassaladora de que isso era progresso fizeram o seu caminho!
Como recorda Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).
Uma nota curiosa, porém, é a que registam os dois autores citados.
Ambos recordam que, nos países católicos, estas legislações não foram aceites (ver Pichot, p. 47; Ridley, p. 301), chegando Ridley a afirmar, com clareza que, ‘em países onde a influência da Igreja Católica era forte não existiram leis eugénicas’. (p. 301)
A história, a grande História, veio a demonstrar, com a II Guerra Mundial, que o eugenismo tinha sido um erro. Havia que recuperar o princípio da intocabilidade da vida humana.
A Igreja, como bem recorda D. António Moiteiro, na sua nota pastoral sobre a eutanásia, publicada em 2 de fevereiro de 2020, continuará a ser o ‘porto seguro’ para toda a vida humana.
Esta inviolabilidade que, em alguns momentos da sua História, a própria Igreja nem sempre honrou, soube a mesma Igreja aprender a proteger com os seus próprios erros. E porque soube aprender, pede aos demais que aprendam com ela.
Uma humildade que alguns teimam em não querer adotar.
Mas muito se espera da Igreja Católica. Isso se espera, hoje, em Portugal, quando se discute a possibilidade de legalizar a morte a pedido, ao arrepio do respeito pela inalienabilidade do direito à vida.
Como bem é recordado pelos honestos de entre nós, esta não é matéria de natureza religiosa, sendo, porém, que dos crentes se espera que sejam particularmente atentos. Conscientes, ainda assim, do que afirmava Norberto Bobbio, um descrente mas honesto pensador e político, quando se discutia, em Itália, a possibilidade da legalização do aborto: ‘não se pode deixar aos crentes o monopólio da vida humana’. Mas se o quiserem fazer, garantimos que honraremos essa confiança.
Porque muito se espera dos católicos quando se trata de respeito pelos mais frágeis de entre os humanos!

domingo, fevereiro 02, 2020

A EUTANÁSIA NÃO RESPEITA OS DIREITOS HUMANOS | É TÃO FRIA A MORTE!


O Parlamento agendou, para 20 de fevereiro, a discussão sobre a eutanásia.
A vertigem com que a Assembleia da República enredou esta matéria, como se se tratasse de uma questão menor, obriga a que todos nos demos conta do que está em causa.
Em primeiro lugar, é necessário que tomemos consciência de que a eutanásia é um ato deliberado de antecipação da morte, realizado por alguém incumbido de cuidar, a pedido daquele sobre quem recai esse mesmo ato.
Propositadamente, não acrescento o motivo, nesta breve definição. A razão para esta omissão prende-se com a constatação que podemos recolher dos países em que, lamentavelmente, esta prática foi legalizada. O motivo inicialmente invocado era o do sofrimento insuportável, mas, neste momento, a eutanásia já é praticada a pretexto de se estar em depressão crónica, por falta de sentido para a vida ou, inclusive, sob a capa do ‘consentimento presumido’.
É inquietante constatar que a história está a repetir o erro de outras fases. Também no início do século XX, se foi instalando a vertigem eugenística que levou dezenas de Estados à introdução de leis que esterilizaram pessoas em massa, que impediram casamentos a cidadãos de certas proveniências ou considerados ‘inferiores’, o que criou a predisposição para o que, de forma hedionda, veio a ocorrer no contexto da II Guerra Mundial.
Mas a memória é curta. E, a pretexto de que seja uma decisão legítima da autonomia pessoal, alguns legisladores pensam corresponder a um desejo humanamente sustentável.
Mas matar nunca poderá enquadrar-se no registo de um comportamento humanamente aceitável.
Mesmo que a pedido do próprio.
A inviolabilidade da vida humana decorre da própria dignidade. É o que afirma, com muita clareza, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no primeiro parágrafo do preâmbulo, quando proclama que os direitos humanos são ‘inalienáveis’. Literalmente, afirma-se: «Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;» (De acordo com o Diário da República Eletrónico, consultado em 2 de fevereiro de 2020). A inalienabilidade dos direitos humanos torna-os insuscetíveis de abdicação pessoal. Nem por decisão minha posso deixar de beneficiar do seu conteúdo. Ora, se, de acordo com o artigo 3º, ‘Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.’, o facto de se tratar de um direito inalienável constitui-o, no mesmo momento, em dever. Tenho o dever de proteger o meu próprio direito à vida.
A eutanásia, na medida em que nem sequer é um ato perpetrado pelo próprio sobre quem o mesmo recai, atenta contra o direito, seja por quem o executa, seja por quem o solicita, dado que é um pedido ilegítimo. Pedir a morte, sendo uma manifestação de um desejo, não pode ser reconhecido como um direito. Deve, antes, ser tomado como um pedido de ajuda. E era isso que deveria ser facultado por um Estado que se pretende de Direito. E não pode bastar ou sossegar a ideia de que outros Estados o fazem ou o acolheram no seu quadro jurídico. Assim acontece, por exemplo, com a pena de morte, aceite por mais de 90 países. O facto de ser aceite por quase metade dos países reconhecidos pela ONU não legitima a sua prática.

A eutanásia é um ato muito pouco moderno
A legalização da eutanásia vai no sentido contrário àquilo que deveria ser o caminho dos países civilizados e modernos. Pressupõe, aliás, uma visão profundamente individualista da vida, pouco consentânea com a cada vez mais óbvia interdependência humana e nasce de pressupostos totalmente errados.
Entre eles, para além do já denunciado preconceito de que o pedido de morte pudesse corresponder a um direito humano (nega-os, em vez de os assegurar!), parte de uma suposta alternativa já sobejamente denunciada por todos os que estão envolvidos nos cuidados dos que se encontram em fases terminais da vida. A alternativa a que aqui me refiro é a que pressupõe que quem não tem a possibilidade da eutanásia não possa senão morrer com enorme dor e sofrimento. De modo algum! A eutanásia é um ato de efetiva antecipação da morte, sabendo-se que há muitas outras alternativas que passam por cuidar da dor com medicamentos cada vez mais eficazes, sendo sabido que, como frequentemente afirmava o saudoso professor Daniel Serrão, se não se está a conseguir controlar a dor, então, há que procurar outra equipa médica que nos faça encontrar formas para que tal ocorra.

Um Parlamento deve proteger o seu povo
A eutanásia «é um método fácil de desistência», como bem recordava Verónica, uma enfermeira portuguesa que, em 2016, testemunhou, numa emissora de rádio, que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia de uma mulher de 70 anos bem de saúde, mas cansada da vida.
Não podemos deixar que o Parlamento decida sobre tão grave matéria, só porque tem uma maioria de deputados. Estarão, deste modo a representar o sentir de um país que sempre se pautou pela solidariedade? Ou teremos de concluir que a matriz de um povo em que mais de 70 % dos cidadãos se reconhecem cristãos não passa, já, de um mero desiderato sem correspondência com a realidade?
Recordo que, como bem observava um dos presidentes do Tribunal Constitucional de Itália, Gustavo Zagrebelsky, as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.»
A nossa democracia, com decisões como a que se propõe assumir o Parlamento, em 20 de fevereiro, corre o risco de redundar numa democracia cética, abrindo portas ao aparecimento de líderes que se considerem detentores do poder de tudo decidir.
Terminemos estas notas doridas com uma constatação. Contrariamente ao que defendem os que pretendem a legalização da eutanásia, esta ‘despenalização’ não afetará só os poucos que se diz que a pretendem pedir. Todos os cidadãos passarão a estar sob o peso desta possibilidade. Todo o cidadão que, em algum momento, sinta que a sua vida já está a ser peso para os demais, sentirá sobre os ombros a exigência velada de que peça, o mais brevemente possível, o seu fim, para que deixe de recair sobre os outros o peso de ter de cuidar de si. É disto que falam os que alertam para a desumanização que tal lei trará às relações para com os mais frágeis. E tudo ocorrerá no silêncio de uma cama de hospital, no segredo de um lar de idosos, nos mais recônditos lugares onde se deveria sentir o acompanhamento cuidadoso. Sobrará o pedido da antecipação da morte, de um após outro, sem que uns saibam dos outros. E tudo não será mais do que estatística.
É tão fria a morte!

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