Num momento em que se dava como certo nada haver a
fazer perante a reunião de condições contabilísticas parlamentares para
legalizar a eutanásia, a Igreja Católica, através da Conferência Episcopal Portuguesa,
veio manifestar o seu apoio aos que promovem uma iniciativa popular de
referendo, após a coincidente manifestação pontifícia de oposição à legalização
da eutanásia, expressa na mensagem para o dia do doente, celebrado neste mesmo
dia 11 de fevereiro.
Já anteriormente alguns bispos, entre os quais D.
António Moiteiro, Bispo de Aveiro, tinham assumido, no espaço público, posição
de defesa inabalável do dever de cuidar sempre da vida humana.
Adivinhando-se este somar de posições católicas
promotoras da inviolabilidade da vida, foram-se ouvindo vozes com o estafado
(não) argumento da ilegitimidade da Igreja para se pronunciar sobre tal
matéria.
Não nos deteremos na contra-argumentação teórica,
dado que vamos vendo que os ouvidos, nestas horas, parecem ensurdecidos.
Propomo-nos, antes, evidenciar como esta posição
inabalável de defesa da dignidade de toda a vida humana foi fundamental, numa
outra fase da história em que se assistiu a semelhante vertigem avassaladora
que foi tomando conta dos países ocidentais.
Também nessa hora, a voz católica se distinguiu
pela sua segurança e foi garantia de defesa da vida humana perante aquilo que,
pouco mais tarde, a história veio a demonstrar ter sido um erro em que se
enredaram os países ditos desenvolvidos, em nome do argumento do progresso e do
caminho legitimado por uma certa forma de ler a ciência e um humanismo que
servia de disfarce a totalitarismos.
Referimo-nos à vertigem eugenística que tomou
grande parte dos países do mundo, em particular, no contexto ocidental, período
que descrevemos no livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’.
De finais do século XIX até à II Guerra Mundial, o
mundo assistiu ao engrandecer da ‘onda eugenística’. Sob o pretexto de que a
ciência nos concedia instrumentos para identificarmos os mais débeis de entre
os humanos e de que havia que replicar, no âmbito social, aquilo que a mesma
ciência nos evidenciava que acontecia na natureza, isto é, a seleção natural
que ‘protegia’ os mais fortes e ‘abandonava’ os mais débeis, era preciso replicar,
no âmbito jurídico, o mesmo raciocínio. Importa recordar, a título ilustrativo,
que o criador da palavra ‘eugenismo’, Francis Galton, era primo de Darwin,
propondo-se transpor para o âmbito social o que este identificara no âmbito
natural. Afirmava, no seu livro ‘Inquiries into the human faculty’, que a
‘eugenia era «bom nascimento», entendendo-a como «a ciência para melhorar a
espécie humana, dando às raças e estirpes de melhor sangue uma maior
probabilidade de dominar rapidamente os menos dotados». (Segundo
Leone|Privitera|Cunha - Dicionário de Bioética)
A ideia estava criada. Havia que dar tempo. E o
tempo e a ideia avassaladora de que isso era progresso fizeram o seu caminho!
Como recorda Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre
1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a
esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por
serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na
Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador
que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’.
Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram
esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca
esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945
(p. 51).
Uma nota curiosa, porém, é a que registam os dois
autores citados.
Ambos recordam que, nos países católicos, estas
legislações não foram aceites (ver Pichot, p. 47; Ridley, p. 301), chegando
Ridley a afirmar, com clareza que, ‘em países onde a influência da Igreja
Católica era forte não existiram leis eugénicas’. (p. 301)
A história, a grande História, veio a demonstrar,
com a II Guerra Mundial, que o eugenismo tinha sido um erro. Havia que
recuperar o princípio da intocabilidade da vida humana.
A Igreja, como bem recorda D. António Moiteiro, na
sua nota pastoral sobre a eutanásia, publicada em 2 de fevereiro de 2020,
continuará a ser o ‘porto seguro’ para toda a vida humana.
Esta inviolabilidade que, em alguns momentos da sua
História, a própria Igreja nem sempre honrou, soube a mesma Igreja aprender a
proteger com os seus próprios erros. E porque soube aprender, pede aos demais
que aprendam com ela.
Uma humildade que alguns teimam em não querer
adotar.
Mas muito se espera da Igreja Católica. Isso se
espera, hoje, em Portugal, quando se discute a possibilidade de legalizar a
morte a pedido, ao arrepio do respeito pela inalienabilidade do direito à vida.
Como bem é recordado pelos honestos de entre nós,
esta não é matéria de natureza religiosa, sendo, porém, que dos crentes se
espera que sejam particularmente atentos. Conscientes, ainda assim, do que
afirmava Norberto Bobbio, um descrente mas honesto pensador e político, quando
se discutia, em Itália, a possibilidade da legalização do aborto: ‘não se pode
deixar aos crentes o monopólio da vida humana’. Mas se o quiserem fazer,
garantimos que honraremos essa confiança.
Porque muito se espera dos católicos quando se
trata de respeito pelos mais frágeis de entre os humanos!