Somos seres finitos, marcados pela finitude. Isso é
uma evidência.
Mas convivemos mal com ela… Insistimos em tentar
escapar-lhe, fugir dela e fazer de conta que ela não nos atinge.
E porquê? Porque é que insistimos em tentar
escapar-lhe, resultando dessa fuga uma tristeza profunda que nos debilita e
angustia?
Foi na busca de resposta a esta interrogação que se
foi consolidando em mim a convicção profunda de que a nossa real assunção do
que somos passa pela forma como reconhecemos o lugar da finitude na nossa
própria natureza.
Desta busca de resposta nasceu e tem crescido uma
convicção que a circunstância de pandemia em que vivemos me fez recuperar e
decidir-me a partilhar.
Essa convicção desloca a visão sobre quem somos do
reconhecimento de que, simplesmente, somos finitos para um outro e mais
profundo reconhecimento: o de que somos e-finitos.
A convicção de que somos e-finitos acompanha-me
desde há muitos anos. Repercuti-a, aliás, aquando da investigação que fiz em
bioética e no livro «bem-nascido… mal-nascido… Do ‘filho perfeito” perfeito ao
filho humano».
O que a e-finitude diz de nós é que não somos,
apenas, seres que vivem na finitude, como se ela fosse um apêndice, um elemento
estranho à nossa própria identidade. A e-finitude diz-nos seres que vivem ‘a
partir da finitude’.
A palavra que define esta nossa condição –
e-finitude – construí-a a partir de um prefixo latino ‘e ou ex’ (preposição que
rege um ablativo) e que quer dizer ‘de…, a partir de…, do interior de…’. Sermos
e-finitos não é constatar que somos, estamos na finitude. É reconhecer muito
mais do que isso. É supor que não nos podemos pensar sem ter em conta que
vivemos a partir da finitude.
Este simples prefixo obriga a olhar para tudo o que
somos de um outro modo.
Não nos podemos pensar, à maneira dos gnósticos
(curiosamente, os primeiros grandes combates do cristianismo, que afirmava a
condição ‘encarnada’ de Deus e a condição de ‘espírito encarnado’ que era o
homem, foram travados contra as correntes gnósticas!), repito, não nos podemos
pensar, como os gnósticos, de uma forma pura, incondicionada, e, depois,
constatar que temos a finitude a estorvar. Não! Não nos podemos pensar sem
supor a finitude. Tudo o que somos deve pressupor que estamos num contexto
próprio, marcados pelo limite, sempre. Como é importante isto, por exemplo,
para discutir a liberdade humana! Quantos a pensam como se liberdade não fosse
uma condição e um exercício sempre condicionados! E como erram, ao supor uma
liberdade humana incondicionada!
Curiosamente, na definição do ser humano como
‘e-finito’ está uma visão sobre a teodiceia que é oportuno partilhar.
Primeiro, importa esclarecer que a teodiceia é um
âmbito da reflexão teológica que, particularmente, a partir do século XVII,
com Leibniz, discute uma difícil articulação entre a fé em Deus Bom e a
existência do mal. Leibniz resolvia este ‘dilema’, afirmando que este é o melhor
dos mundos…
As circunstâncias de pandemia em que nos encontramos
fizeram reaparecer tentativas de articular os dois lados do problema com
soluções que, em termos cristãos, são muito questionáveis.
Há um critério, sobre esta matéria, que o livro de
Génesis deixa claro: em caso algum pode ser atribuída a Deus a origem do mal.
Haverá que encontrá-la em outro ‘lugar’, pois é contraditório reconhecer a
bondade divina e atribuir-lhe essa possibilidade.
Nesta matéria, sou devedor da linha de pensamento
de Andres Torres Queiruga, um teólogo espanhol com diversas obras que se
debruçam sobre esta tão difícil matéria.
Em síntese, Queiruga sustenta que Deus, ao criar,
como que se depara com um dilema em que opta pelo lado da salvação. O ‘dilema
de Deus‘ é este: Deus não pode criar seres absolutos, sem limite; isso seria
contraditório, pois não há dois absolutos. A criatura, a criação, ‘limitaria’ o
outro absoluto, Deus. Então, Deus sabe que criará seres finitos,
impossivelmente absolutos.
Perante esta certeza, decorrente da natureza de se
ser criatura, Deus tem de decidir: ou criar, sabendo que a criatura será,
essencialmente, finita, ou, então, simplesmente, desistir e não criar.
A decisão de Deus é pela salvação: salvar do nada o
que, sem a ação criadora, nada seria.
Logo, a finitude é condição sine qua non (sem a qual não se pode ser) da criatura. No desejo de
Deus, a criatura é pretendida como infinita, mas tal não pode realizar-se,
efetivamente, porque a criatura é, sempre, finita. E por sê-lo,
intrinsecamente, - digo eu – tem de pensar-se e agir a partir da finitude, como
‘e-finita’.
Uma leitura fina desta perspetiva compreende,
rapidamente, que a aceitação da deficiência, da doença, da fragilidade, não é o
reconhecimento de algo que nos é estranho: não! É o reconhecimento da igual
condição de todos. Como tenho afirmado, a propósito da reflexão feita no livro
‘bem-nascido… mal-nascido…’, a deficiência é condição de todos nós que, em
alguns de entre nós, se torna mais visível; mas é a condição de todos.
Aliás, uma das mais prováveis etimologias para a
palavra ‘humano’ (outras podem ser invocadas, seguramente!) fá-la derivar de
‘húmus’, repercutindo, como é notório, o sentido da palavra de Génesis para
designar a humanidade, na sua origem, ‘Adão’ – ‘aquele que é tirado da terra’.
A longa reflexão cristã sobre quem é o Homem tem
sido firme no reconhecimento de que somos débeis, frágeis e na afirmação de que
isso nos define. Teremos de nos pensar a partir daí e não apesar disso. A
negação da nossa fragilidade é o principal fator de alienação, de negação da
humanidade (agora, compreendida como aquela que é feita do ‘húmus’).
A covid-19 tornou evidente como somos frágeis.
Atribuir a Deus essa origem é errar o alvo, cometendo uma dupla injustiça: por
atribuir a Quem não é devido e por não atribuir ao que é devido. A Deus não
deve atribuir-se a causa do mal, mas a fonte para dele se sair. Essa é a via de
resposta do Cristianismo para a problemática do mal. De Deus deve esperar-se a
salvação e não procurar n’Ele a origem do mal que, antes, emerge da condição
e-finita da criatura.
A pergunta não poderá ser, nunca, ‘que mal fiz eu a
Deus?’, mas antes, ‘que salvação posso esperar de Deus para esta situação?’.
A covid-19, sendo evidente que resulta da
condição finita em que nos realizamos, interpela a que nos reconheçamos na comum
condição para dela nos erguermos juntos, aspirando à libertação que é sempre
frágil e condicionada.
Quem dera que, neste período de quarentena forçada,
se esteja a gerar, como num silencioso útero, a sabedoria que nos ‘devolva’ o
reconhecimento de que todos somos irmãos nesta comum condição e-finita, de modo
a emergir daqui um outro modo de nos pensarmos juntos! Porque a e-finitude é,
necessariamente, uma condição de humildade (o outro rosto daquele que é feito
de ‘húmus’).
Quem sabe?...