quinta-feira, abril 23, 2020

A covid-19 não nos demonstra, apenas, que somos finitos… mostra que somos e-finitos!



Somos seres finitos, marcados pela finitude. Isso é uma evidência.
Mas convivemos mal com ela… Insistimos em tentar escapar-lhe, fugir dela e fazer de conta que ela não nos atinge.
E porquê? Porque é que insistimos em tentar escapar-lhe, resultando dessa fuga uma tristeza profunda que nos debilita e angustia?
Foi na busca de resposta a esta interrogação que se foi consolidando em mim a convicção profunda de que a nossa real assunção do que somos passa pela forma como reconhecemos o lugar da finitude na nossa própria natureza.
Desta busca de resposta nasceu e tem crescido uma convicção que a circunstância de pandemia em que vivemos me fez recuperar e decidir-me a partilhar.
Essa convicção desloca a visão sobre quem somos do reconhecimento de que, simplesmente, somos finitos para um outro e mais profundo reconhecimento: o de que somos e-finitos.
A convicção de que somos e-finitos acompanha-me desde há muitos anos. Repercuti-a, aliás, aquando da investigação que fiz em bioética e no livro «bem-nascido… mal-nascido… Do ‘filho perfeito” perfeito ao filho humano».
O que a e-finitude diz de nós é que não somos, apenas, seres que vivem na finitude, como se ela fosse um apêndice, um elemento estranho à nossa própria identidade. A e-finitude diz-nos seres que vivem ‘a partir da finitude’.
A palavra que define esta nossa condição – e-finitude – construí-a a partir de um prefixo latino ‘e ou ex’ (preposição que rege um ablativo) e que quer dizer ‘de…, a partir de…, do interior de…’. Sermos e-finitos não é constatar que somos, estamos na finitude. É reconhecer muito mais do que isso. É supor que não nos podemos pensar sem ter em conta que vivemos a partir da finitude.
Este simples prefixo obriga a olhar para tudo o que somos de um outro modo.
Não nos podemos pensar, à maneira dos gnósticos (curiosamente, os primeiros grandes combates do cristianismo, que afirmava a condição ‘encarnada’ de Deus e a condição de ‘espírito encarnado’ que era o homem, foram travados contra as correntes gnósticas!), repito, não nos podemos pensar, como os gnósticos, de uma forma pura, incondicionada, e, depois, constatar que temos a finitude a estorvar. Não! Não nos podemos pensar sem supor a finitude. Tudo o que somos deve pressupor que estamos num contexto próprio, marcados pelo limite, sempre. Como é importante isto, por exemplo, para discutir a liberdade humana! Quantos a pensam como se liberdade não fosse uma condição e um exercício sempre condicionados! E como erram, ao supor uma liberdade humana incondicionada!
Curiosamente, na definição do ser humano como ‘e-finito’ está uma visão sobre a teodiceia que é oportuno partilhar.
Primeiro, importa esclarecer que a teodiceia é um âmbito da reflexão teológica que, particularmente, a partir do século XVII, com Leibniz, discute uma difícil articulação entre a fé em Deus Bom e a existência do mal. Leibniz resolvia este ‘dilema’, afirmando que este é o melhor dos mundos…
As circunstâncias de pandemia em que nos encontramos fizeram reaparecer tentativas de articular os dois lados do problema com soluções que, em termos cristãos, são muito questionáveis.
Há um critério, sobre esta matéria, que o livro de Génesis deixa claro: em caso algum pode ser atribuída a Deus a origem do mal. Haverá que encontrá-la em outro ‘lugar’, pois é contraditório reconhecer a bondade divina e atribuir-lhe essa possibilidade.
Nesta matéria, sou devedor da linha de pensamento de Andres Torres Queiruga, um teólogo espanhol com diversas obras que se debruçam sobre esta tão difícil matéria.
Em síntese, Queiruga sustenta que Deus, ao criar, como que se depara com um dilema em que opta pelo lado da salvação. O ‘dilema de Deus‘ é este: Deus não pode criar seres absolutos, sem limite; isso seria contraditório, pois não há dois absolutos. A criatura, a criação, ‘limitaria’ o outro absoluto, Deus. Então, Deus sabe que criará seres finitos, impossivelmente absolutos.
Perante esta certeza, decorrente da natureza de se ser criatura, Deus tem de decidir: ou criar, sabendo que a criatura será, essencialmente, finita, ou, então, simplesmente, desistir e não criar.
A decisão de Deus é pela salvação: salvar do nada o que, sem a ação criadora, nada seria.
Logo, a finitude é condição sine qua non (sem a qual não se pode ser) da criatura. No desejo de Deus, a criatura é pretendida como infinita, mas tal não pode realizar-se, efetivamente, porque a criatura é, sempre, finita. E por sê-lo, intrinsecamente, - digo eu – tem de pensar-se e agir a partir da finitude, como ‘e-finita’.
Uma leitura fina desta perspetiva compreende, rapidamente, que a aceitação da deficiência, da doença, da fragilidade, não é o reconhecimento de algo que nos é estranho: não! É o reconhecimento da igual condição de todos. Como tenho afirmado, a propósito da reflexão feita no livro ‘bem-nascido… mal-nascido…’, a deficiência é condição de todos nós que, em alguns de entre nós, se torna mais visível; mas é a condição de todos.
Aliás, uma das mais prováveis etimologias para a palavra ‘humano’ (outras podem ser invocadas, seguramente!) fá-la derivar de ‘húmus’, repercutindo, como é notório, o sentido da palavra de Génesis para designar a humanidade, na sua origem, ‘Adão’ – ‘aquele que é tirado da terra’.
A longa reflexão cristã sobre quem é o Homem tem sido firme no reconhecimento de que somos débeis, frágeis e na afirmação de que isso nos define. Teremos de nos pensar a partir daí e não apesar disso. A negação da nossa fragilidade é o principal fator de alienação, de negação da humanidade (agora, compreendida como aquela que é feita do ‘húmus’).
A covid-19 tornou evidente como somos frágeis. Atribuir a Deus essa origem é errar o alvo, cometendo uma dupla injustiça: por atribuir a Quem não é devido e por não atribuir ao que é devido. A Deus não deve atribuir-se a causa do mal, mas a fonte para dele se sair. Essa é a via de resposta do Cristianismo para a problemática do mal. De Deus deve esperar-se a salvação e não procurar n’Ele a origem do mal que, antes, emerge da condição e-finita da criatura.
A pergunta não poderá ser, nunca, ‘que mal fiz eu a Deus?’, mas antes, ‘que salvação posso esperar de Deus para esta situação?’.
A covid-19, sendo evidente que resulta da condição finita em que nos realizamos, interpela a que nos reconheçamos na comum condição para dela nos erguermos juntos, aspirando à libertação que é sempre frágil e condicionada.
Quem dera que, neste período de quarentena forçada, se esteja a gerar, como num silencioso útero, a sabedoria que nos ‘devolva’ o reconhecimento de que todos somos irmãos nesta comum condição e-finita, de modo a emergir daqui um outro modo de nos pensarmos juntos! Porque a e-finitude é, necessariamente, uma condição de humildade (o outro rosto daquele que é feito de ‘húmus’).
Quem sabe?...

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