domingo, maio 24, 2020

Três notas a pretexto do quinto aniversário da Laudato Si’



Em 24 de maio de 2015, o Papa Francisco ‘deu’ ao mundo a sua segunda encíclica (e até agora, última, somando-se-lhe cinco exortações apostólicas), depois de Lumen Fidei, feita ainda a quatro mãos, dado que se sabe ter tido intervenção do Papa emérito, Bento XVI. A esta segunda encíclica o Papa dá um título – Laudato Si’ (Louvado Sejas!) - recuperado do Santo de que tomou o nome, S. Francisco de Assis, autor do célebre ‘cântico das criaturas’, que começa os seus versos utilizando, precisamente, esta expressão ‘louvado sejas, meu Senhor’. O pretexto que nos dá este aniversário (5 anos decorridos) serve-me de motivo para traçar três notas ou sublinhados.
1. Em primeiro lugar, registo a minha convicção de que o futuro guardará a data ‘5’ de cada década como momento a recordar. Já eram guardados os anos ‘1’, invocando a recordação da primeira encíclica dedicada a matérias de doutrina social da Igreja, a Rerum Novarum, publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII. Era recordada a data ‘7’, invocando a publicação da Populorum Progressio, saída da pena de Paulo VI e particularmente famosa pela afirmação de que o progresso ‘deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo’ (n.14). A Laudato si’ dá, certamente, o pretexto para que se recordem os anos ‘5’ de cada década, dado que a temática ‘ecologia’ tinha sido, naturalmente, abordada em diversos documentos, mas nunca com o estatuto que a publicação como tema central de uma encíclica lhe confere.
2. Em segundo lugar, penso merecer registo a constatação da ousadia do Papa em publicar esta encíclica numa época em que proliferam as ecologias. E, face às ditas ecologias radicais, o Papa propõe-se afirmar uma ecologia ‘integral’ que, como recorda no número 11, ‘requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.’ O Papa, ao propor uma ecologia integral, visa, na minha perspetiva, fundamentalmente, três objetivos: deslocar a problemática do comportamento perante o mundo do mero âmbito técnico-científico, colocando-o no âmbito da ética e da moral; suplantar os riscos das ecologias ditas radicais que somem o humano no natural e pretendem nivelar a dignidade humana perante a suposta ‘igual dignidade’ dos restantes seres criados e, em terceiro lugar, olhar o ser humano não apenas como sujeito da ecologia (enquanto ator e protagonista da ação ecológica), mas também como seu próprio objeto. Não haverá ecologia sem a humanidade, o que, em tempos que tantos se propõem considerar a economia como um adversário da ecologia, se torna um tremendo desafio.
3. Em terceiro lugar, o Papa apresenta uma proposta ecológica que suplanta os limites notórios de grande parte das propostas ecologistas difundidas. O Papa vai à raiz da razão pela qual se deve ser cuidador (do ambiente, dos ambientes, do ser humano…): é que a vida é um dom e, por isso, uma missão que nos é confiada. De um dom eu cuido; não maltrato, não estrago, não destruo. Esta visão contrapõe-se à que é, habitualmente, proposta. A ecologia é, hoje, e, com ela, muita educação ambiental, sustentada no medo: medo das catástrofes, medo da abertura do buraco do ozono, medo das alterações climáticas. Medo, medo, medo! E o medo, é sabido, é adversário da liberdade e da verdadeira autonomia. O medo é uma estratégia da heteronomia. Só faço porque temo; quando o medo desaparecer, deixo de fazer. E essa é a verdadeira fragilidade das ecologias deste tipo: assentam no medo, pelo que precisam de o alimentar, pois sabem que, quando este terminar, regressam os comportamentos destruidores.
O Papa sai deste círculo… A sua proposta parte do reconhecimento da condição criatural do mundo e do ser humano: as criaturas devem a sua vida ao Criador e d’Ele recebem a missão de cuidar do que lhes é confiado. Num tal registo, a motivação para cuidar não nasce do medo: nasce do Amor. Ao longo da encíclica, o Papa fala 56 vezes do amor. E esta é a novidade radical desta encíclica perante as ecologias vigentes. Quem ousaria falar de amor ao formular uma proposta ecológica?
Só alguém chamado Francisco, embrenhado da mesma ‘loucura’ e ousadia do outro Francisco que não se coibiu de tratar a morte por ‘irmã’...

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