sábado, agosto 22, 2020

Manual de fraturação da sociedade | Novos cenários, o mesmo guião…

A emergência dos movimentos populistas (os que deixam de seguir valores superiores para se ‘submeterem’ à vontade do povo) deve deixar-nos a todos em estado de alerta. Não pela sua novidade, mas porque sempre estiveram entre nós.

Na verdade, uma análise mais fina do que está a acontecer poderá mostrar-nos a verdade da afirmação anterior. Para tal análise, socorramo-nos de um recurso que nos faculta a filosofia. Esta não se basta em observar o que se diz (análise material); procura saber como se chegou ao que se diz e que vias se percorrem para dizer o que se diz (análise formal).

À luz desta metodologia, podemos achar que o que nos dizem é novo, mas a análise formal permitirá levar-nos a concluir que já outros fizeram o mesmo que se está a fazer.

De que falamos?

Os ‘novos’ movimentos populistas alimentam-se da mesma estratégia seguida pelos que se dizem no lado oposto do espectro político e ideológico.

O método é o de sempre: insensibilizar para ‘naturalizar’ (tornar natural), ridicularizando os que assumem o que deveria, de facto, ser ‘natural’ e válido, insistindo, até à exaustão, na necessidade de mudar, como se houvesse um problema a urgir resposta.

Tomarmos consciência disto deve aguçar-nos o olhar e levar-nos a dizer que esse é um caminho que não queremos continuar a percorrer.

Também ‘outrora’ nos asseguraram que jamais Portugal haveria de aceitar que fosse legítimo uma mãe rejeitar o seu filho. (Mas Portugal veio a legalizar o aborto e, hoje, os números deveriam envergonhar-nos.) Também outrora nos parecia ser impossível que, nas decisões respeitantes à criança, não se tivesse como prioritário o seu ‘superior interesse’ e que, à luz dessa certeza, jamais a privaríamos do seu legítimo direito a ter pai e mãe, como referência prioritária nas decisões. (Mas Portugal e o mundo deixaram que a criança se tornasse um ‘bem’ de que dispõem os que a pretendem, mesmo sem lhe assegurar ter pai e mãe, como se o amor fosse, apenas, um vago afeto.) Também outrora se nos afigurou impossível que se entendesse ser legítimo gerar uma criança para a orfandade, aceitando, por exemplo, inseminar uma mulher com sémen do seu companheiro morto (como está a discutir-se, neste momento, em França). Também outrora se considerou impossível que se legitimasse que o filho matasse o seu pai ou a sua mãe, a pretexto de estar doente ou já sem rumo e que, por isso, jamais Portugal haveria de aceitar a eutanásia ou qualquer outra prática semelhante.

Também outrora reconhecíamos que a importância da família a tornava merecedora de toda a proteção, dada a sua relevância como estrutura-célula de todas as demais relações, e não privada de tal relevância pela via do alargamento do conceito a modelos e ‘organizações’ que pouco têm da referência familiar, conduzindo ao esvaziamento do significado da consideração de que a família seja a base da sociedade.

Em todas estas ‘impossibilidades’ passadas há um ponto em comum. Alguém se encarregou de insensibilizar a sociedade, conduzindo-a à aceitação da ‘naturalidade’ das opções que a todos se afiguravam ilegítimas. E essa insensibilização utiliza a estratégia de sempre: massacra com a repetição do assunto; cria casos e insiste na matéria; ridiculariza os que assumem a legitimidade do modelo que a sociedade sempre seguira (veja-se como, em França, neste momento, se está em vias de aceitar o aborto até ao final da gravidez; os que pretendem fazer passar a medida, consideram os seus opositores ‘ultraconservadores’. Deveria apetecer-lhes somar mais ‘atributos’ a esta qualificação, designando-os, eventualmente, como ‘ultra-super-extra-conservadores’. O exagero ridicularizaria a opção. Basta ‘ultraconservador’ que a mensagem já passa. Ninguém quer ficar desse lado!) e multiplicam-se as notícias de que a mudança em curso é uma inevitabilidade.

A mesma estratégia está, agora, em curso.

Aos imigrantes são atribuídas as culpas do que ocorre. Criam-se ‘casos’ e mais ‘casos’. Ridiculariza-se como ‘radical’ de esquerda quem assume que, também nós fomos emigrantes e, por isso, temos um dever acrescido de acolher. E, por fim, insiste-se na ideia de que também outros estão a seguir por este caminho de exclusão como se fosse uma inevitabilidade.

A memória do que já nos fizeram, manipulando-nos, deveria acordar-nos para o que estão a fazer-nos, agora.

São, afinal, novos cenários e novos protagonistas com o mesmo guião.

Já o vimos e não gostámos… Não queremos ir por aí!

A história demonstra-nos que o combate contra todos os populismos só se faz com a firmeza nos valores estruturantes. Nunca daí deveríamos ter saído. Nós próprios o fomos dizendo: a desvinculação em relação a valores fundamentais, em relação à realidade natural e à condição própria do ser humano, enquanto portador de dignidade que o estatui como inviolável, torna a política e o direito terreno para a decisão meramente arbitrária. E essa é a melhor massa de que se fazem os ditadores.

Ouçamos a lição da história. E não a apaguemos da memória.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Inacreditável! A França prepara-se para aprovar o aborto até aos nove meses de gestação…


A Assembleia Nacional francesa aprovou, em segunda votação, um conjunto de decisões que reveem a ‘lei da bioética’ o que, para além de estar envolvido num processo merecedor de particular estranheza (segundo jornal ‘Gazeta do povo’, de 577 deputados franceses, só 101 votaram esta lei, sendo que 60 foram a favor, 37 votaram contra e 4 abstiveram-se), se for aprovado pelo Senado francês, permitirá a realização do abortamento voluntário, a pretexto de serem casos de ‘sofrimento psicossocial da gestante’, até aos nove meses de gravidez. A estas medidas acrescentam-se, ainda, a possibilidade de reprodução assistida para mulheres solteiras ou uniões homossexuais femininas, a flexibilização da doação de gâmetas, etc.

A simples descrição desta possibilidade deveria suscitar em quem a lê um imediato repúdio, mas a insensibilidade coletiva agudiza a necessidade de se descrever o que está, verdadeiramente, em causa.

Antes de mais, a mera abertura desta possibilidade (que já não o é, apenas; está na iminência de vir a ser lei!) demonstra a pouca honestidade que tem acompanhado a discussão destas matérias, desde o seu início. Estas propostas são sempre, inicialmente, (veja-se o que tem sido dito para aprovar, em Portugal, a eutanásia) descritas como sendo para exceções. A bitola vai-se alargando, porém, e a exceção acaba por ser, ao fim de algum tempo, a proteção inicialmente desblindada. Esta mera enunciação de possibilidade (já não o é, como vimos!) demonstra que o que está em causa não é, afinal, uma qualquer compaixão, mas a efetiva afirmação de um direito que, pela dificuldade em demonstrá-lo, juridicamente, se faz valer pela via da prática. O tribunal europeu dos direitos humanos deliberou, contudo, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano sendo, por isso, legítimo que os Estados o penalizem. Mas a matéria, não só não é revertida no sentido do reconhecimento de que somos incoerentes ao desproteger os filhos humanos, como, a confirmar-se esta decisão francesa, se continua a alargar o quadro de ‘direitos’.

É bom sublinhar que, a aprovar-se, esta matéria mostra como está doente a democracia. Como bem recordava, em 1991, o grande filósofo francês, Paul Ricoeur, a democracia que não respeita valores ético-morais corre o risco de ‘não ter outro critério a apresentar além dos seus próprios procedimentos’ (Revista Esprit, janeiro de 1991), ficando vulnerável a todo o tipo de manipulação. Se o único valor é o que decidir a maioria, sobrará o espaço para a ditadura dos que gritarem mais alto e melhor manipularem as hordas (caminho para o populismo?).

Onde está a dúvida sobre a qualidade 'humana' de uma vida 'humana' (!) em gestação? Onde está a dúvida sobre o que significa a afirmação registada, por exemplo, na constituição da República Portuguesa, de que ‘a vida humana é inviolável’? Se o argumento é o de que caberá a cada um decidir sobre o que lhe diz respeito (como se a vida de um filho só à mãe dissesse respeito!), porquê parar, então, aqui? Porque não aplicar o princípio a tantas outras coisas: porquê obrigar alguém a ter escolaridade obrigatória? Porquê obrigar alguém a pagar impostos? Porquê obrigar alguém a adotar comportamentos que não quer (uso de máscaras, por exemplo, neste contexto de pandemia, uso de cinto de segurança, etc.)?

Eu sei por que razão é legítimo continuar a fazer isto que nos é imposto. Tenho dúvidas sobre a coerência de quem defende o aborto até ao fim dos nove meses na resposta a estas perguntas. Ficará, no limite, com a resposta de que se deve fazer porque alguém assim determinou…

É muito pouco para uma vida em sociedade.

Há valores que são anteriores à decisão da maioria e o da existência de alguém (sim, um filho em gestação é alguém!) deve ser um desses indubitavelmente merecedor de proteção perante o exercício da livre decisão. Não existimos porque somos livres; antes, sim, somos livres porque existimos.

A inversão desta constatação é mais do que isso: perverte a vida em sociedade, na medida em que isola cada um sobre e em si mesmo. Não temos, deste modo, uma sociedade, mas uma mera soma de indivíduos sobre um território comum.

Sociedade que legitima a violência dos pais (da mãe, neste caso) sobre os filhos não pode esperar que a resposta seja a paz e o respeito não violento.

Haja um Senado que nos valha, já que de Deus andam bem longe estas decisões!

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