A emergência dos movimentos populistas (os que deixam de seguir valores superiores para se ‘submeterem’ à vontade do povo) deve deixar-nos a todos em estado de alerta. Não pela sua novidade, mas porque sempre estiveram entre nós.
Na verdade, uma análise mais fina do que está a acontecer poderá mostrar-nos a verdade da afirmação anterior. Para tal análise, socorramo-nos de um recurso que nos faculta a filosofia. Esta não se basta em observar o que se diz (análise material); procura saber como se chegou ao que se diz e que vias se percorrem para dizer o que se diz (análise formal).
À luz desta metodologia, podemos achar que o que nos dizem é novo, mas a análise formal permitirá levar-nos a concluir que já outros fizeram o mesmo que se está a fazer.
De que falamos?
Os ‘novos’ movimentos populistas alimentam-se da mesma estratégia seguida pelos que se dizem no lado oposto do espectro político e ideológico.
O método é o de sempre: insensibilizar para ‘naturalizar’ (tornar natural), ridicularizando os que assumem o que deveria, de facto, ser ‘natural’ e válido, insistindo, até à exaustão, na necessidade de mudar, como se houvesse um problema a urgir resposta.
Tomarmos consciência disto deve aguçar-nos o olhar e levar-nos a dizer que esse é um caminho que não queremos continuar a percorrer.
Também ‘outrora’ nos asseguraram que jamais Portugal haveria de aceitar que fosse legítimo uma mãe rejeitar o seu filho. (Mas Portugal veio a legalizar o aborto e, hoje, os números deveriam envergonhar-nos.) Também outrora nos parecia ser impossível que, nas decisões respeitantes à criança, não se tivesse como prioritário o seu ‘superior interesse’ e que, à luz dessa certeza, jamais a privaríamos do seu legítimo direito a ter pai e mãe, como referência prioritária nas decisões. (Mas Portugal e o mundo deixaram que a criança se tornasse um ‘bem’ de que dispõem os que a pretendem, mesmo sem lhe assegurar ter pai e mãe, como se o amor fosse, apenas, um vago afeto.) Também outrora se nos afigurou impossível que se entendesse ser legítimo gerar uma criança para a orfandade, aceitando, por exemplo, inseminar uma mulher com sémen do seu companheiro morto (como está a discutir-se, neste momento, em França). Também outrora se considerou impossível que se legitimasse que o filho matasse o seu pai ou a sua mãe, a pretexto de estar doente ou já sem rumo e que, por isso, jamais Portugal haveria de aceitar a eutanásia ou qualquer outra prática semelhante.
Também outrora reconhecíamos que a importância da família a tornava merecedora de toda a proteção, dada a sua relevância como estrutura-célula de todas as demais relações, e não privada de tal relevância pela via do alargamento do conceito a modelos e ‘organizações’ que pouco têm da referência familiar, conduzindo ao esvaziamento do significado da consideração de que a família seja a base da sociedade.
Em todas estas ‘impossibilidades’ passadas há um ponto em comum. Alguém se encarregou de insensibilizar a sociedade, conduzindo-a à aceitação da ‘naturalidade’ das opções que a todos se afiguravam ilegítimas. E essa insensibilização utiliza a estratégia de sempre: massacra com a repetição do assunto; cria casos e insiste na matéria; ridiculariza os que assumem a legitimidade do modelo que a sociedade sempre seguira (veja-se como, em França, neste momento, se está em vias de aceitar o aborto até ao final da gravidez; os que pretendem fazer passar a medida, consideram os seus opositores ‘ultraconservadores’. Deveria apetecer-lhes somar mais ‘atributos’ a esta qualificação, designando-os, eventualmente, como ‘ultra-super-extra-conservadores’. O exagero ridicularizaria a opção. Basta ‘ultraconservador’ que a mensagem já passa. Ninguém quer ficar desse lado!) e multiplicam-se as notícias de que a mudança em curso é uma inevitabilidade.
A mesma estratégia está, agora, em curso.
Aos imigrantes são atribuídas as culpas do que ocorre. Criam-se ‘casos’ e mais ‘casos’. Ridiculariza-se como ‘radical’ de esquerda quem assume que, também nós fomos emigrantes e, por isso, temos um dever acrescido de acolher. E, por fim, insiste-se na ideia de que também outros estão a seguir por este caminho de exclusão como se fosse uma inevitabilidade.
A memória do que já nos fizeram, manipulando-nos, deveria acordar-nos para o que estão a fazer-nos, agora.
São, afinal, novos cenários e novos protagonistas com o mesmo guião.
Já o vimos e não gostámos… Não queremos ir por aí!
A história demonstra-nos que o combate contra todos os populismos só se faz com a firmeza nos valores estruturantes. Nunca daí deveríamos ter saído. Nós próprios o fomos dizendo: a desvinculação em relação a valores fundamentais, em relação à realidade natural e à condição própria do ser humano, enquanto portador de dignidade que o estatui como inviolável, torna a política e o direito terreno para a decisão meramente arbitrária. E essa é a melhor massa de que se fazem os ditadores.
Ouçamos a lição da história. E não a apaguemos da memória.