A Assembleia Nacional francesa aprovou, em segunda votação, um conjunto de decisões que reveem a ‘lei da bioética’ o que, para além de estar envolvido num processo merecedor de particular estranheza (segundo jornal ‘Gazeta do povo’, de 577 deputados franceses, só 101 votaram esta lei, sendo que 60 foram a favor, 37 votaram contra e 4 abstiveram-se), se for aprovado pelo Senado francês, permitirá a realização do abortamento voluntário, a pretexto de serem casos de ‘sofrimento psicossocial da gestante’, até aos nove meses de gravidez. A estas medidas acrescentam-se, ainda, a possibilidade de reprodução assistida para mulheres solteiras ou uniões homossexuais femininas, a flexibilização da doação de gâmetas, etc.
A simples descrição desta possibilidade deveria suscitar em quem a lê um imediato repúdio, mas a insensibilidade coletiva agudiza a necessidade de se descrever o que está, verdadeiramente, em causa.
Antes de mais, a mera abertura desta possibilidade (que já não o é, apenas; está na iminência de vir a ser lei!) demonstra a pouca honestidade que tem acompanhado a discussão destas matérias, desde o seu início. Estas propostas são sempre, inicialmente, (veja-se o que tem sido dito para aprovar, em Portugal, a eutanásia) descritas como sendo para exceções. A bitola vai-se alargando, porém, e a exceção acaba por ser, ao fim de algum tempo, a proteção inicialmente desblindada. Esta mera enunciação de possibilidade (já não o é, como vimos!) demonstra que o que está em causa não é, afinal, uma qualquer compaixão, mas a efetiva afirmação de um direito que, pela dificuldade em demonstrá-lo, juridicamente, se faz valer pela via da prática. O tribunal europeu dos direitos humanos deliberou, contudo, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano sendo, por isso, legítimo que os Estados o penalizem. Mas a matéria, não só não é revertida no sentido do reconhecimento de que somos incoerentes ao desproteger os filhos humanos, como, a confirmar-se esta decisão francesa, se continua a alargar o quadro de ‘direitos’.
É bom sublinhar que, a aprovar-se, esta matéria mostra como está doente a democracia. Como bem recordava, em 1991, o grande filósofo francês, Paul Ricoeur, a democracia que não respeita valores ético-morais corre o risco de ‘não ter outro critério a apresentar além dos seus próprios procedimentos’ (Revista Esprit, janeiro de 1991), ficando vulnerável a todo o tipo de manipulação. Se o único valor é o que decidir a maioria, sobrará o espaço para a ditadura dos que gritarem mais alto e melhor manipularem as hordas (caminho para o populismo?).
Onde está a dúvida sobre a qualidade 'humana' de uma vida 'humana' (!) em gestação? Onde está a dúvida sobre o que significa a afirmação registada, por exemplo, na constituição da República Portuguesa, de que ‘a vida humana é inviolável’? Se o argumento é o de que caberá a cada um decidir sobre o que lhe diz respeito (como se a vida de um filho só à mãe dissesse respeito!), porquê parar, então, aqui? Porque não aplicar o princípio a tantas outras coisas: porquê obrigar alguém a ter escolaridade obrigatória? Porquê obrigar alguém a pagar impostos? Porquê obrigar alguém a adotar comportamentos que não quer (uso de máscaras, por exemplo, neste contexto de pandemia, uso de cinto de segurança, etc.)?
Eu sei por que razão é legítimo continuar a fazer isto que nos é imposto. Tenho dúvidas sobre a coerência de quem defende o aborto até ao fim dos nove meses na resposta a estas perguntas. Ficará, no limite, com a resposta de que se deve fazer porque alguém assim determinou…
É muito pouco para uma vida em sociedade.
Há valores que são anteriores à decisão da maioria e o da existência de alguém (sim, um filho em gestação é alguém!) deve ser um desses indubitavelmente merecedor de proteção perante o exercício da livre decisão. Não existimos porque somos livres; antes, sim, somos livres porque existimos.
A inversão desta constatação é mais do que isso: perverte a vida em sociedade, na medida em que isola cada um sobre e em si mesmo. Não temos, deste modo, uma sociedade, mas uma mera soma de indivíduos sobre um território comum.
Sociedade que legitima a violência dos pais (da mãe, neste caso) sobre os filhos não pode esperar que a resposta seja a paz e o respeito não violento.
Haja um Senado que nos valha, já que de Deus andam bem longe estas decisões!