Quando era adolescente, eram frequentes os filmes de
cowboys e índios. E recordo-me de, nestes filmes, com alguma frequência, após
longas perseguições, preenchidas de tiros e balas que pareciam cravar-se nas
paredes da minha sala, assistir a cenas em que, algumas personagens, após serem
cravejadas de balas e a esvaírem-se em sangue, quando apanhadas, pediam que
lhes fosse dado o ‘golpe de misericórdia’. Eu gostava dos filmes de índios e
cowboys, mas sempre me gerou perplexidade que o agressor pudesse ver o seu
derradeiro ato de crueldade limpo por uma designação que lhe conferia o
estatuto de ‘misericordioso’. Sempre achei isto injusto…
Veio-me à memória este acumular de cenas de índios e
cowboys, nestes tempos em que se pretende reconhecer ao Estado o estatuto de
misericordioso quando, após ‘cravejar’ de balas de solidão, abandono e tristeza
os mais frágeis de entre nós (e nós mesmos, quando mais frágeis!), restar à
vítima da cavalgada do impiedoso pedir-lhe que lhe dê o ‘golpe de
misericórdia’.
É disso que se está a falar quando se pretende
legalizar a eutanásia. Poder dar o golpe de misericórdia e pretender-se ficar com a
consciência de se ter feito um ato nobre quando se foi, afinal, responsável por tudo o
que a isso conduziu.
Evoco, ainda, uma outra cena que também recolho do
cinema. Neste caso, uma cena com sinal de sentido contrário.
Passa-se no filme ‘favores em cadeia’, um filme
belíssimo, onde, contrariando os diretórios do cinema americano, o protagonista
morre, numa cena que confere um caráter quase redentor a esta morte.
A cena que pretendo trazer para aqui ocorre com uma
das personagens a quem Trevor (o protagonista do filme) fizera um favor,
obrigando-o, por isso, a fazer um favor a mais três pessoas, gerando, assim,
uma cadeia de favores em que a gratidão por se ser favorecido passa por
realizar a outros uma tríada de favores.
A referida personagem favorecida por Trevor é um
toxicodependente que encontra uma mulher que está prestes a atirar-se de uma
ponte. O toxicodependente aborda-a, tenta mostrar-lhe que estará enganada
quanto aos motivos para se suicidar e acaba por pedir-lhe que desista,
fazendo-lhe, assim, um favor a ele próprio. Salvar a vida daquela mulher era um
favor que fazia a si mesmo…
A cena é de uma densidade incrível e contraria todo
o individualismo tipicamente americano: a salvação daquela mulher é o maior
favor que ela pode fazer… aos outros.
A eutanásia está nos antípodas disto. A eutanásia
abandona cada um na solidão da sua vida e convence-o de que a sua morte só a si
diz respeito, contrariando tudo o que somos e toda a lógica de se viver em
sociedade e num Estado de direito. Apetece dizer que, felizmente, os defensores
da legalização da eutanásia não são suficientemente coerentes e lógicos para
levar o seu raciocínio até ao fim: perante tamanho individualismo, nada
sobreviveria. Se podemos dispor da vida, então, porque não haveremos de dispor de
todo o dinheiro que recebemos com o suor do nosso trabalho recusando pagar
impostos? Porque não haveremos de fazer acordos uns com os outros sem nos
importarmos com o que abstratos legisladores possam pensar sobre o que fazemos?
Etc., etc….
Recuperemos a afirmação de que ‘se podemos dispor da
vida, então…’ De facto, não podemos dispor da vida. Nem da nossa!
Não o dizemos com motivações religiosas (podemos
tê-las e temo-las, de facto, mas não precisamos de as invocar para se perceber
esta indisponibilidade da vida); basta-nos constatar o que afirma a declaração
universal dos direitos humanos que afirma: ‘Considerando que o reconhecimento
da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos
iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo.’
Repare-se que a Declaração faz depender a liberdade,
a justiça e a paz do reconhecimento de que os direitos são «inalienáveis» e não
o contrário. Não é a liberdade, a justiça e a paz que os tornam inalienáveis.
E, mais! Por serem inalienáveis, os direitos humanos constituem-se como um
dever para os que deles beneficiam. Eu tenho o dever de cuidar do direito à
vida de que sou detentor. Sou detentor desse, não porque o estabeleço, mas sim
enquanto participante da comum dignidade humana. Quando atento contra a
dignidade da vida humana que há em mim, atento contra toda a dignidade. Como
bem recorda o Papa Francisco, na encíclica ‘Fratelli Tutti’, «qualquer um que
mate uma pessoa é como se tivesse matado toda a humanidade’ (FT 285)
A reflexão que desenvolvemos, até este passo,
permite-nos constatar que a compaixão deve ser concretizada num respeito
estrito pela vida. Não contra ela. Uma compaixão que abandona a verdade da vida
torna-se um sentimentalismo, como referia Bento XVI, na encíclica ‘Caritas in
Veritate’ (3). Esta afirmação não é uma mera proposição abstrata e teórica.
É pelo perigo do sentimentalismo que, por exemplo,
se deve proibir a criação de condições para o nepotismo. Este é, de facto, um
belo exemplo de sentimentalismo: em nome da compaixão de alguém pelos seus,
pela sua família, desrespeita o dever de cuidar do bem comum e exerce as suas
funções em benefício dos seus.
Com estes pressupostos, tenhamos em conta decisão do
Parlamento, tomada no dia 23 de outubro de 2020. Este não autorizou a
realização de um referendo, contrariando a vontade expressa por mais de 95 mil
subscritores que, em cerca de um mês, reuniram as suas assinaturas, solicitando
à casa da democracia que consultasse o povo numa matéria que, dada a sua
importância, deveria ser decidida após a sua auscultação. Os argumentos têm
sido repetidamente referidos, pelo que nos bastará aqui recordar que, dos 193
países reconhecidos pela ONU, apenas 6 (apenas 6: Holanda, Luxemburgo, Bélgica,
Austrália [Só o Estado de Vitória], Colômbia e Uruguai) legalizaram a eutanásia
e outros quatro países autorizam (ou têm Estados federados que o permitem: para
além dos atrás enunciados, também a Suíça, Suécia, Alemanha e 5 Estados dos
EUA) a prática do suicídio assistido, perfazendo 10 países que dão alguma
cobertura legal a estas práticas. Acrescente-se, ainda, que a Holanda, a
Bélgica e a Colômbia legalizaram a prática da eutanásia sobre crianças. Estes
números deveriam fazer-nos pensar. Algo de grave deve estar em causa para
apenas 10 países terem legalizado tais práticas.
A compaixão tem sido um dos argumentos mais vezes
invocado para a sua legalização.
Repare-se, porém, no que, verdadeiramente, está em
causa…
Recuperemos o que referíamos, no início desta
reflexão.
O Estado assume um papel de compassivo, não se
assegurando de que tenha esgotado todas as possibilidades para que se evite o
pedido de morte.
Mais, ainda…
O compassivo legislador compadece-se de dores ainda
não havidas para cidadãos ainda não situados nas dores que o legislador supõe,
e já legitima que, em todo este abstrato circunstancialismo de dor, possa ser
lícito eliminar quem pede a morte. Não há uma compaixão real: há um
enquadramento de uma compaixão específica, excluindo-se desta compaixão todos
os que nela não se enquadrarem. Mas, não deveria ser a compaixão universal? Se
é um ato compassivo, deveria sê-lo sempre. Ou deveremos tomar esta inicial
definição de circunstâncias muito excecionais como um mero pretexto? Um
pretexto para deslocar o ónus de proteção, transferindo-o do dever insofismável
de proteger a vida humana (motivo objetivo) para um outro âmbito (de ordem
subjetiva), o que, a acontecer, permitirá posteriores alargamentos? A resposta
parece supor-se na pergunta.
Tenhamos em conta, porém, que há, aqui, uma
contradição intrínseca (a compaixão não é real; é, apenas, pretexto. Se fosse
real, seria compaixão para com a pessoa que sofre, nunca desistindo dela!) que
faz com que, na nossa perspetiva, a rampa deslizante seja um facto e uma
condição intrínseca a esta mudança, estando em curso antes mesmo de a lei
começar a ser praticada. Efetivamente, há em toda esta argumentação uma
contradição insanável: é que não se é compassivo dando a morte. É-se compassivo
diminuindo o sofrimento de quem sofre, estando e permanecendo com o sofredor,
‘sofrendo com ele’ (cum+passio) e vencendo, assim e com ele, a morte. De outro
modo, a compaixão é o pretexto nobre para apagar da nossa vista, com o sofrimento,
o próprio sofredor. E, sim, a compaixão não será, então, mais do que um
pretexto, emoldurado sob a capa de nobreza, para nos desfazermos da imagem da
nossa dor e do nosso limite, que, a todo custo, queremos afastar de nós. Com a
morte vem o sossego do incómodo da vida que é, sempre, surpreendente.
As duas cenas evocadas, no início deste artigo,
evidenciam o que está em causa: perante o sofrimento, damos o «golpe de
misericórdia» ou reconhecemos, pelo contrário, que o ato de salvar da
morte alguém que pede para morrer é um favor que fazemos à nossa comum condição
humana?
Toda a vida em sociedade está alicerçada na
convicção profunda da solidariedade na dignidade: a eutanásia abala essa
convicção e desvirtua a compaixão e a misericórdia.