domingo, outubro 25, 2020

Quando a compaixão não é mais do que um pretexto

Quando era adolescente, eram frequentes os filmes de cowboys e índios. E recordo-me de, nestes filmes, com alguma frequência, após longas perseguições, preenchidas de tiros e balas que pareciam cravar-se nas paredes da minha sala, assistir a cenas em que, algumas personagens, após serem cravejadas de balas e a esvaírem-se em sangue, quando apanhadas, pediam que lhes fosse dado o ‘golpe de misericórdia’. Eu gostava dos filmes de índios e cowboys, mas sempre me gerou perplexidade que o agressor pudesse ver o seu derradeiro ato de crueldade limpo por uma designação que lhe conferia o estatuto de ‘misericordioso’. Sempre achei isto injusto…

Veio-me à memória este acumular de cenas de índios e cowboys, nestes tempos em que se pretende reconhecer ao Estado o estatuto de misericordioso quando, após ‘cravejar’ de balas de solidão, abandono e tristeza os mais frágeis de entre nós (e nós mesmos, quando mais frágeis!), restar à vítima da cavalgada do impiedoso pedir-lhe que lhe dê o ‘golpe de misericórdia’.

É disso que se está a falar quando se pretende legalizar a eutanásia. Poder dar o golpe de misericórdia e pretender-se ficar com a consciência de se ter feito um ato nobre quando se foi, afinal, responsável por tudo o que a isso conduziu.

Evoco, ainda, uma outra cena que também recolho do cinema. Neste caso, uma cena com sinal de sentido contrário.

Passa-se no filme ‘favores em cadeia’, um filme belíssimo, onde, contrariando os diretórios do cinema americano, o protagonista morre, numa cena que confere um caráter quase redentor a esta morte.

A cena que pretendo trazer para aqui ocorre com uma das personagens a quem Trevor (o protagonista do filme) fizera um favor, obrigando-o, por isso, a fazer um favor a mais três pessoas, gerando, assim, uma cadeia de favores em que a gratidão por se ser favorecido passa por realizar a outros uma tríada de favores.

A referida personagem favorecida por Trevor é um toxicodependente que encontra uma mulher que está prestes a atirar-se de uma ponte. O toxicodependente aborda-a, tenta mostrar-lhe que estará enganada quanto aos motivos para se suicidar e acaba por pedir-lhe que desista, fazendo-lhe, assim, um favor a ele próprio. Salvar a vida daquela mulher era um favor que fazia a si mesmo…

A cena é de uma densidade incrível e contraria todo o individualismo tipicamente americano: a salvação daquela mulher é o maior favor que ela pode fazer… aos outros.

A eutanásia está nos antípodas disto. A eutanásia abandona cada um na solidão da sua vida e convence-o de que a sua morte só a si diz respeito, contrariando tudo o que somos e toda a lógica de se viver em sociedade e num Estado de direito. Apetece dizer que, felizmente, os defensores da legalização da eutanásia não são suficientemente coerentes e lógicos para levar o seu raciocínio até ao fim: perante tamanho individualismo, nada sobreviveria. Se podemos dispor da vida, então, porque não haveremos de dispor de todo o dinheiro que recebemos com o suor do nosso trabalho recusando pagar impostos? Porque não haveremos de fazer acordos uns com os outros sem nos importarmos com o que abstratos legisladores possam pensar sobre o que fazemos? Etc., etc….

Recuperemos a afirmação de que ‘se podemos dispor da vida, então…’ De facto, não podemos dispor da vida. Nem da nossa!

Não o dizemos com motivações religiosas (podemos tê-las e temo-las, de facto, mas não precisamos de as invocar para se perceber esta indisponibilidade da vida); basta-nos constatar o que afirma a declaração universal dos direitos humanos que afirma: ‘Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.’

Repare-se que a Declaração faz depender a liberdade, a justiça e a paz do reconhecimento de que os direitos são «inalienáveis» e não o contrário. Não é a liberdade, a justiça e a paz que os tornam inalienáveis. E, mais! Por serem inalienáveis, os direitos humanos constituem-se como um dever para os que deles beneficiam. Eu tenho o dever de cuidar do direito à vida de que sou detentor. Sou detentor desse, não porque o estabeleço, mas sim enquanto participante da comum dignidade humana. Quando atento contra a dignidade da vida humana que há em mim, atento contra toda a dignidade. Como bem recorda o Papa Francisco, na encíclica ‘Fratelli Tutti’, «qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse matado toda a humanidade’ (FT 285)

A reflexão que desenvolvemos, até este passo, permite-nos constatar que a compaixão deve ser concretizada num respeito estrito pela vida. Não contra ela. Uma compaixão que abandona a verdade da vida torna-se um sentimentalismo, como referia Bento XVI, na encíclica ‘Caritas in Veritate’ (3). Esta afirmação não é uma mera proposição abstrata e teórica.

É pelo perigo do sentimentalismo que, por exemplo, se deve proibir a criação de condições para o nepotismo. Este é, de facto, um belo exemplo de sentimentalismo: em nome da compaixão de alguém pelos seus, pela sua família, desrespeita o dever de cuidar do bem comum e exerce as suas funções em benefício dos seus.

Com estes pressupostos, tenhamos em conta decisão do Parlamento, tomada no dia 23 de outubro de 2020. Este não autorizou a realização de um referendo, contrariando a vontade expressa por mais de 95 mil subscritores que, em cerca de um mês, reuniram as suas assinaturas, solicitando à casa da democracia que consultasse o povo numa matéria que, dada a sua importância, deveria ser decidida após a sua auscultação. Os argumentos têm sido repetidamente referidos, pelo que nos bastará aqui recordar que, dos 193 países reconhecidos pela ONU, apenas 6 (apenas 6: Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Austrália [Só o Estado de Vitória], Colômbia e Uruguai) legalizaram a eutanásia e outros quatro países autorizam (ou têm Estados federados que o permitem: para além dos atrás enunciados, também a Suíça, Suécia, Alemanha e 5 Estados dos EUA) a prática do suicídio assistido, perfazendo 10 países que dão alguma cobertura legal a estas práticas. Acrescente-se, ainda, que a Holanda, a Bélgica e a Colômbia legalizaram a prática da eutanásia sobre crianças. Estes números deveriam fazer-nos pensar. Algo de grave deve estar em causa para apenas 10 países terem legalizado tais práticas.

A compaixão tem sido um dos argumentos mais vezes invocado para a sua legalização.

Repare-se, porém, no que, verdadeiramente, está em causa…

Recuperemos o que referíamos, no início desta reflexão.

O Estado assume um papel de compassivo, não se assegurando de que tenha esgotado todas as possibilidades para que se evite o pedido de morte.

Mais, ainda…

O compassivo legislador compadece-se de dores ainda não havidas para cidadãos ainda não situados nas dores que o legislador supõe, e já legitima que, em todo este abstrato circunstancialismo de dor, possa ser lícito eliminar quem pede a morte. Não há uma compaixão real: há um enquadramento de uma compaixão específica, excluindo-se desta compaixão todos os que nela não se enquadrarem. Mas, não deveria ser a compaixão universal? Se é um ato compassivo, deveria sê-lo sempre. Ou deveremos tomar esta inicial definição de circunstâncias muito excecionais como um mero pretexto? Um pretexto para deslocar o ónus de proteção, transferindo-o do dever insofismável de proteger a vida humana (motivo objetivo) para um outro âmbito (de ordem subjetiva), o que, a acontecer, permitirá posteriores alargamentos? A resposta parece supor-se na pergunta.

Tenhamos em conta, porém, que há, aqui, uma contradição intrínseca (a compaixão não é real; é, apenas, pretexto. Se fosse real, seria compaixão para com a pessoa que sofre, nunca desistindo dela!) que faz com que, na nossa perspetiva, a rampa deslizante seja um facto e uma condição intrínseca a esta mudança, estando em curso antes mesmo de a lei começar a ser praticada. Efetivamente, há em toda esta argumentação uma contradição insanável: é que não se é compassivo dando a morte. É-se compassivo diminuindo o sofrimento de quem sofre, estando e permanecendo com o sofredor, ‘sofrendo com ele’ (cum+passio) e vencendo, assim e com ele, a morte. De outro modo, a compaixão é o pretexto nobre para apagar da nossa vista, com o sofrimento, o próprio sofredor. E, sim, a compaixão não será, então, mais do que um pretexto, emoldurado sob a capa de nobreza, para nos desfazermos da imagem da nossa dor e do nosso limite, que, a todo custo, queremos afastar de nós. Com a morte vem o sossego do incómodo da vida que é, sempre, surpreendente.

As duas cenas evocadas, no início deste artigo, evidenciam o que está em causa: perante o sofrimento, damos o «golpe de misericórdia» ou reconhecemos, pelo contrário, que o ato de salvar da morte alguém que pede para morrer é um favor que fazemos à nossa comum condição humana?

Toda a vida em sociedade está alicerçada na convicção profunda da solidariedade na dignidade: a eutanásia abala essa convicção e desvirtua a compaixão e a misericórdia.

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