(Artigo publicado em Mundo Rural)
Continuemos o nosso ‘regresso a Ítaca no sonho do éden’….
Já em texto anterior refletimos sobre como a visão grega, tão carregada de tragicidade, precisa de ser condimentada (e superada) pela esperança cristã. De outro modo, sobrará o medo, o desespero, a desilusão. E é bom que tenhamos consciência de que, nas nossas sociedades ocidentais, mesmo sem essa consciência explícita, estas duas visões estão sempre em dinamismo de ‘encontro’ e ‘desencontro’. À esperança cristã, que nos propõe olharmos a vida como dom gratuito a respeitar e acolher, contrapõe-se, tantas vezes, a visão dominadora de que a vida é uma posse absoluta de que dispomos até nos cansarmos dela. Uma visão que rapidamente se torna decadente… Não a vemos já, diante dos nossos olhos?...
Condimentemos, então, a história que se segue, para que não tome conta de nós a visão trágica, mas não sem, antes, perceber a densidade de leitura que ela nos pode trazer.
Antígona…
Antígona é a protagonista (muitos discutem se o protagonismo deverá ser partilhado com o rei Creonte…) de uma muito célebre tragédia escrita por Sófocles, em período compreendido entre 442 e 440 a.C.[1]
Nesta obra, Sófocles retrata o ocorrido após a decisão do rei Creonte: impedir o sepultamento de Polinices. Antígona, irmã deste, opõe-se à ordem do rei e sepulta-o, sendo alvo da ira régia que ordena o seu emparedamento. Emparedada, Antígona lamenta a sua miséria, que, por força do destino (os gregos atribuíam a este um poder superior ao dos próprios deuses), se abateu sobre a sua família.
Recordemos a densidade trágica desta família, a dos Labdácidas.
O pai de Antígona, Édipo, matara o seu próprio pai, casara com a mãe, de quem tivera quatro filhos, cegando-se quando descobriu que cometera incesto e parricídio, mas já sem nada poder fazer para alterar o rumo da história. Como se não bastasse, dois dos seus filhos – Etéocles e Polinices – matam-se um ao outro no contexto do cerco à cidade de Tebas, liderado por este último. A este, o rei Creonte, que assume o poder da cidade, proíbe que seja concedida a honra de ser sepultado, o que contrariava a lei religiosa e moral que obrigava a esse enterramento, como condição para poder ter serenidade na vida depois da morte. É neste passo que entronca a narrativa de ‘Antígona’.
Mas a densidade trágica não acaba aqui.
Após Creonte ser instado pelo seu próprio filho, Hémon, noivo de Antígona, a alterar a sua ordem, persuadido pelo adivinho Tirésias e pelo Coro dos anciãos de Tebas, o rei muda, por fim, a sua decisão, mas não segue a ordem que lhe propusera o coro. Este dissera-lhe que, primeiro, comunicasse a Antígona a sua decisão e, por fim, enterrasse Polinices.
O rei Creonte, em mais uma decisão arbitrária, entende enterrar Polinices e, só depois, comunicar a Antígona que a libertou da pena que ela já cumpria. Quando chega, porém, a decisão à cela desta, ela jaz morta (pusera termo à sua vida), assim como o próprio filho do rei, Hémon, que se suicidara perante a sua amada. A tragédia não finda aqui e é, por fim, a própria rainha, mulher de Creonte, Eurídice, que põe termo à sua própria vida.
É difícil reunir mais tragédia numa só história…
Ou talvez não.
A história está a fazer-se de tragédias reais. Esta é uma tragédia lendária!
Vivemos a Hora de Antígona.
Também hoje emergem reis Creontes que nos pretendem impor, pela força do seu poder despótico, leis (nómoi, como lhes chamavam os gregos) que contrariam as normas de sempre, as normas que emergem da condição humana, da condição própria da nossa natureza.
Sobre eles caem as palavras duras do filho de Creonte, perante a pergunta deste[2]:
«Creonte – Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?
Hémon – Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta.»
E como com Antígona, o risco de emparedamento é real. O emparedamento da acusação irada, do silenciamento mediático, do preconceito de se ser extremista ou obtuso.
Mas como poderemos aceitar que se nos imponha como norma, como direito reconhecido como humano (as novas normas de Creonte), que matar um filho seja um bem quando jamais deixou de ser reconhecido como um mal? Recentemente, no parlamento europeu, Creonte lançou o seu manto trágico, sob a capa de um relatório designado com o nome do seu proponente, Matic. Ali, defendeu-se o reconhecimento do estatuto de direito humano (novo ‘nomos’) ao abortamento voluntário. Já não se trata de formular o pedido de que não se punisse (a coberto do qual se cometeram, só neste ano, até 20 de julho de 2021 - data da consulta ao site https://www.worldometers.info/, 23 milhões de abortos em todo o mundo), mas inverte-se a apreciação do ato, conferindo-lhe uma bondade inusitada e inacreditável.
Nem Creonte ousara ir tão longe.
E quão trágicos foram os tempos que se lhe seguiram!
Só um olhar de esperança sobre cada vítima do braço estendido de Creonte pode superar tamanha tragédia…
Quem ousa ouvir o grito de Antígona entre as paredes em que a emparedam sucessivamente?