quinta-feira, dezembro 30, 2021

Recensão de 'Leonardo Boff, S. José: a personificação do Pai'

 

Leonardo Boff, S. José: a personificação do Pai, Cascais, Editora Pergaminho, 2006.

 

O que poderemos dizer sobre S. José? ...se dele só temos silêncio!

Leonardo Boff enfrenta esta questão e a dureza desta constatação.

Com efeito, a escassez e simplicidade das referências bíblicas poderia ser obstáculo a uma reflexão conclusiva sobre a sua identidade e relevância na história da salvação.

Boff enumera oito situações em que José é referido, nos textos bíblicos, sendo que em nenhuma delas ouvimos palavras suas: na genealogia, na anunciação, no nascimento do seu filho, no relato da fuga para o Egito, na descrição do regresso a Nazaré, na apresentação de Jesus no templo, aos oito dias, no relato da presença de Jesus entre os doutores da Lei e, por, fim, quando se refere que Jesus era filho do carpinteiro.

De resto, se queremos saber mais sobre José, e se formos dados ao cultivo da imaginação, restar-nos-ão os evangelhos apócrifos (de onde, aliás, emanaram muitos dos elementos icónicos que preencheram a sua representação artística ao longo dos tempos).

Para nos conduzir na sua reflexão, Leonardo Boff enuncia uma tese e socorre-se da metodologia teológica que assenta, por um lado, no reconhecimento do lugar da própria tradição teológica para a consolidação da leitura do facto revelado, mas articulando esse mesmo reconhecimento e utilização com um elemento metodológico da teologia altamente iluminador: o nexo dos mistérios.

Socorrendo-se deste, Boff formula um teológúmeno (uma hipótese teológica ainda não totalmente validada pelo magistério, mas que poderá (e já fez) fazer o seu caminho). Esse teologúmeno é devido, como o mesmo Boff reconhece, a Adauto Schumaker, um franciscano nascido em 30 de junho de 1910, que chegou a trabalhar na editora Vozes, onde veio a publicar algumas das suas ‘especulações teológicas’. Estão na posse do nosso autor alguns dos manuscritos do frade Adauto, com quem ele mesmo privou e a quem foram partilhadas em confidência os elementos fundamentais da tese defendida neste livro.

Ora, a ideia fundamental aqui apresentada é a de que José vive em união hipostática com o Pai Celeste.

Para tal, e fazendo uso da metodologia acima enunciada, Boff sustenta que a teologia refere que cada Pessoa da Trindade age na unidade desta («Dada a inclusão de uma [Pessoa Divina] na outra (pericórese), quando uma se autocomunica traz consigo as outras duas, preservada a característica própria de cada uma. Se o Filho se autocomunica a Jesus de Nazaré (encarnação), ele carrega consigo o Pai e o Espírito Santo, embora seja só o Filho que se encarna.» (p. 126)), pelo que, para simplificar, poderá constatar-se que, se em Jesus está presente o Verbo (segunda Pessoa da Trindade), se em Maria agiu o Espírito Santo, a aplicação da metodologia decorrente do ‘nexo dos mistérios’ (em que uns mistérios iluminam outros e estão em estreita coesão e articulação com eles) leva-nos a pressentir que, no silêncio de José se torna presente a ação discreta, mas eficaz, do Pai.

Para reforçar a tese, Leonardo Boff percorre os caminhos da história para evidenciar que, com efeito, longo foi o silêncio do Magistério sobre a figura de José (mais presente entre a espiritualidade popular), mas para a qual tem despertado, em particular nos últimos dois séculos, e, de forma mais significativa, com João Paulo II, que dedica uma exortação apostólica a S. José. Desta, Leonardo Boff destaca a seguinte citação que considera permitir vislumbrar o sentido da sua tese:

«A Igreja rodeia de profunda veneração esta Família, apresentando-a como modelo para todas as famílias. A Família de Nazaré, diretamente inserida no mistério da Incarnação, constitui ela própria um mistério particular. E ao mesmo tempo — como na Incarnação — é a este mistério que pertence a verdadeira paternidade: a forma humana da família do Filho de Deus, verdadeira família humana, formada pelo mistério divino. Nela, José é o pai: a sua paternidade, porém, não é só «aparente», ou apenas «substitutiva»; mas está dotada plenamente da autenticidade da paternidade humana, da autenticidade da missão paterna na família. Nisto está contida uma consequência da união hipostática: humanidade assumida na unidade da Pessoa divina do Verbo-Filho, Jesus Cristo. Juntamente com a assunção da humanidade, em Cristo foi também «assumido» tudo aquilo que é humano e, em particular, a família, primeira dimensão da sua existência na terra. Neste contexto foi «assumida» também a paternidade humana de José.» (João Paulo II, Exortação Apostólica Redemptoris Custos, 21)

O que João Paulo II afirma, ainda não é coincidente com a tese proposta por Boff (e por isso, o próprio autor reconhece tratar-se de um teologúmeno), mas o significado é profundo e admissível: afirmar que José é a personificação do Pai permite olhar para a Sagrada Família já não apenas como um modelo, mas como a própria ação efetiva da Trindade que a encarnação não é abstrata, mas a assunção da real condição humana, que se realiza a partir de uma concreta situação. A assunção (em união hipostática) da paternidade de José, expressando a totalidade da Trindade na família de Nazaré, coloca a prioridade na comunhão em relação à individuação, pretexto para que, em páginas muito significativas, Leonardo Boff reflita sobre desafios colocados, nos nossos tempos, à realidade familiar, em geral, e à condição paterna, em particular. Destacamos desta reflexão o que Boff diz sobre aquilo que ele designa como o ‘princípio antropológico do pai’, socorrendo-se de designação tomada da psicanálise:

«A situação atual do pai não serve de base para se experimentar Deus como Pai. A tradição psicanalítica tem sustentado a importância da figura do pai e das experiências que os filhos/filhas fazem com ele para projetar uma imagem de Deus-Pai integradora e humanizadora […]. Para que continue a desempenhar esta função transcendental e verdadeira missão, urge um reengendramento, sobre outras bases, da figura do pai. É nessa perspetiva que S. José, como pai, pode contribuir com alguma luz.» (p. 166).

A citação aqui recolhida permite observar que ‘S. José, a Personificação do Pai’ não se confina ao limite de formular e defender uma tese, ainda que já não fosse um exercício despiciendo: enuncia consequências efetivas para a sociedade e para a vivência pessoal de uma leitura teológica da figura de José.

Um livro recomendável e de leitura envolvente (espero que sejam tão decisivas para esse reconhecimento as minhas palavras como o foram as de um amigo a quem o emprestei…) oportuna para recolher as aparas que ficam do passar da plaina de um ano dedicado a esta singular figura da história da Salvação.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Livro: recensão de Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes

 

Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

 O fim de um mito

(Ou ‘como ter nas mãos um meio eficaz de repor justiça’)

 

Fake news!

Andamos preocupados – quase obcecados com a matéria. De tal modo que nos levam a crer (fake new!) que as fake news são de hoje.

Este livro não é – nem por sombras! – sobre ‘fake news’. Mas propõe-se enfrentar uma das mais consolidadas ‘fake news’ dos últimos três séculos.

Isso mesmo!

Cerca de trezentos anos!

Trata-se de uma ‘fake new’ que serviu interesses e que alimenta, ainda hoje, muitos preconceitos.

Partamos à sua descoberta.

A sua denúncia formula-se no próprio título do livro: ‘A Idade Média: a verdadeira idade das luzes’ (Talvez se pudesse ter optado por ‘a verdadeira idade da luz’, tendo em conta o que o autor refere, na página 162, a pretexto dos estudos medievais sobre a luz de que resultaram a criação dos óculos, mas admite-se a opção da tradutora por ‘a verdadeira idade das luzes’, aludindo ao título autoatribuído pelos iluministas…).

E que denúncia se vislumbra ali?

A de que a Idade Média foi tudo menos uma idade de trevas.

Mas essa ‘fake’ (a de que a Idade Média era idade de trevas) fez caminho – muito caminho! – e continua, hoje, bem consolidada. (Dado o curto-circuito entre ‘Idade Média’ e ‘Igreja’, quando, numa discussão, se quer silenciar a força argumentativa de um cristão, logo se evoca a ‘tenebrosa’ condição da Idade Média. E tudo fica arrumado! Nada melhor do que um bom preconceito para acabar com uma discussão!)

Quem não se lembra da teoria de que a Idade Média acreditava que a terra era plana?

Sim, quem não se lembra? Disso davam eco (ainda hoje?) os livros de História.

E a lembrança é tão forte que até nos custa a crer que não fosse assim.

Mas não o era, de facto.

A Idade Média não acreditava que a terra fosse plana.

Entre nós, portugueses, já os professores Henrique Leitão, Jorge Buescu e outros denunciaram essa fake new, com muita erudição e detalhe.

Seb Falk demonstra-o, neste livro, de forma muito detalhada.

Para tal, recorda, entre outras coisas, que um dos tratados mais estudados, durante a Idade Média, era o ‘tratado da esfera’ que teve em João Sacrobosco (1230) um dos seus maiores proponentes. A esfera era, bem certo, o orbe celeste, mas, também, a Terra.

Porém, apesar deste facto, a História e a história da História, após a revolução francesa e durante o século XIX, veiculou a ideia de que os medievais (até lhe chamou ‘Idade Média’, para estabelecer uma ponte vazia entre os antigos e os modernos!) eram obscurantistas e defendiam (imagine-se!) que a Terra era plana.

Entre nós (Seb Falk não conta este detalhe), chegou-se ao ponto de consolidar a teoria (a fake new) de que a Idade Média acreditava numa terra plana com a tese de que Cristóvão Colombo não obtivera o apoio da corte portuguesa porque entre esta se continuava a acreditar que a terra era plana.

 

Como consolidar um preconceito

A verdade é outra!

Como conta Jorge Buescu, num artigo com o título ‘a terra nunca foi plana’ (no livro ‘da falsificação de euros aos pequenos mundos’), a coroa portuguesa não apoiou a empresa de chegar à India pelo ocidente, porque sabia que a distância era tão grande que seria um investimento no vazio, pois Colombo nunca chegaria lá. A sorte deste foi ter-lhe aparecido a América, no caminho!

Ora, esta e outras teses são demolidas neste livro de Seb Falk.

Um livro extraordinário!

Extraordinário pelo rigor do autor, pela erudição em linguagem simples com que aborda cada temática e porque é profundamente respeitador do leitor. Veja-se, a título ilustrativo, a qualidade das notas (que, para um leitor habitual, deviam ser de rodapé, mas as edições atuais optam por colocá-las no final, o que dificulta a leitura em vaivém… Deixo o repto!). Seb Falk não faz citação de citação: vai às fontes!

E faz um ensaio de história da ciência como quem escreve um romance policial.

Tudo começa com a investigação sobre o verdadeiro autor de um tratado, a partir de uma investigação feita por Derek Price, na década de 50, que se interrogava sobre o efetivo escritor de uma obra que nos dava instruções detalhadas para a construção de um derivado do astrolábio que permitiria identificar, com precisão, a localização dos planetas. (Tenha-se em conta que tudo era baseado, exclusivamente, na investigação matemática em articulação com as deduções artonómicas, pois ainda se tinha de esperar pela invenção do telescópio… Mas a lucidez e o rigor matemático denunciam um verdadeiro espírito científico de quem parte à demanda da verdade).

Tudo começa aí e vai-se desfiando até nos levar ao quotidiano da vida medieval, onde descobrimos o fascínio da descoberta e a frescura da liberdade intelectual, tantas vezes hoje pretendida e amarfanhada. Ilustra esta liberdade a história de uma greve ocorrida no século XIII, na universidade de Paris, em que os mestres reivindicavam liberdade perante o poder político. A sua reivindicação saiu vencedora. (Sim, não podemos esquecer que as universidades – Bolonha, Salamanca, Oxford, Montpellier, Paris, Coimbra, Lisboa, etc. – nasceram na Idade Média! E que já então a ‘circulação’ dos intelectuais entre universidades era uma prática habitual!).

Pela mão de Seb Falk, compreendemos que os nomes maiores da ciência moderna não nasceram do nada (Mas a forma como é feita a história da ciência deixa, muitas vezes, o travo amargo de uma conceção emergentista dos grandes nomes: como se aparecessem sem ‘gigantes aos ombros dos quais se encavalitam’. Sim, também esta frase, cuja autoria é tantas vezes atribuída a Isaac Newton, é da responsabilidade do medieval Bernard de Chartres!). Percebemos as raízes medievais do pensamento astronómico (devedor à influência cristã e muçulmana que recebeu nos estudos universitários que fez em Cracóvia, Bolonha, Pádua e Ferrara) de Copérnico, que responde, com o heliocentrismo, a interrogações de sempre colocadas pela teoria defendida (e muito discutida) por Ptolomeu, no seu Almagesto, mas mais proximamente formuladas por Peuerbach e Regiomontanus, ou as origens do próprio pensamento de Leibniz no admirado Richard Swineshead (século XIV), autor do Livro dos cálculos, que lhe valeu a alcunha de ‘calculador’.

Falk aborda, ainda (e muito escapa a esta resumida recensão de leitor entusiasmado – exigente tarefa se impõe ao próximo autor que tomarei em mãos, após esta tão fecunda leitura!), a questão do impacto do heliocentrismo nas mentalidades. Curiosamente, também as fakes são abundantes no que respeita a esta matéria. Bem nos recordamos todos de ouvir dizer que o heliocentrismo demolira a visão arrogante que o geocentrismo vincava. Seb Falk recorda, porém, que ‘os pensadores medievais imaginavam muitas vezes a Terra ao fundo, e não no centro, do vasto Universo; e estar tão longe quanto possível da perfeição dos céus não era propriamente uma posição desejável. É por isso que, na obra de Galileu Diálogo sobre os dois principais sistemas do Mundo, Ptolemaico e Coperniciano, o astrónomo florentino pós o seu porta-voz, Salviati, a afirmar que «estamos a tentar tornar [a Terra] mais nobre e mais perfeita […] e de certa forma a colocá-la nos céus, de onde os vossos filósofos a baniram».’

Mas a fake new respetiva defende que os medievais é que eram arrogantes! (Na era dos emojis, deixo ao leitor imaginar qual escolheria!...)

 

Idade Média: idade luminosa com sombras… Como as demais épocas!

Chegados aqui, impõe-se uma pergunta: mas a idade média era só luminosidade e esta beleza de que aqui falamos?

(Obviamente que o autor não esconde os aspetos menos luminosos desta época. Isso é, aliás, frequentemente recordado, por exemplo, quando apresenta o paralelismo entre o desenvolvimento astronómico e a influência dos reptos da astrologia.)

Duas notas nos merece esta constatação da presenças de aspetos opacos na idade média: que todas as épocas tiveram (e terão) as suas opacidades – veja-se como, em pleno século XXI, continuam a proliferar, e com forte influência, as mentalidades que negam, por exemplo, que na gravidez humana esteja em desenvolvimento vida humana! Ou que defendem que existam raças desigualmente humanas, etc… (na luminosa época da ciência, continuam a verificar-se obscuridades deste teor…) – e, por outro lado, que as zonas de sombra pressupõem a luz. Não poderemos fixar-nos nas sombras, omitindo a origem luminosa perante a qual emerge zona sombria. Em relação à Idade Média, a opção tem sido amplificar a sombra, omitindo a força da luz. Seb Falk desafia a que se olhe a Idade Média pelo seu lado luminoso: ‘a verdadeira idade da Luz’!

Não pense, porém, o leitor, que o livro se desenrola ao longo de mais de 400 páginas com a repetição de ‘veja, na Idade Média não eram como pensa’. O livro é, como acima descrito, uma espécie de ‘romance policial’ baseado em factos e dados de investigação. E até é humilhante constatar quanto desconhecíamos. E quanto podemos descobrir quando, honestamente, deixamos que a história de cada época fale por si, sem que lhe imponhamos os nossos preconceitos. Factos, factos e mais factos! Nomes e descobertas e linhas de discussão. Num desenrolar de novelo que nos fascina, da primeira à última página. E, quando já terminámos a leitura, o autor formula um conjunto de sugestões que nos fazem partir à aventura de sermos nós mesmos a ver como funcionava o ‘equatorium’ (Ah, eis o nome do instrumento alternativo ao astrolábio, proposto por John Westwyk – anónimo na nossa recensão como permanecera anónimo durante quase 500 anos…) ou como pensou Richard de Wallingford (que ilustra a capa do livro) o primeiro relógio mecânico ou, ainda, a procurar saber um pouco sobre os nomes dos desconhecidos tradutores das grandes obras clássicas, originalmente escritas em grego ou árabe, vertidas pela sua mão para latim. Seb Falk resgata do silêncio da história nomes de tradutores como o de Gerardo de Cremona ou de Alfred Shareshill… (Ilustres desconhecidos mas de quem todos falam quando dizem que Aristóteles e Avicena foram recebidos nas universidades da Idade Média!)

O próprio autor assume que não quer maçar os leitores com a sucessão de nomes de insignes figuras medievais. Enuncia alguns dos preteridos numa lista final que inclui sugestões muitos úteis de outros livros e sites onde poderão encontrar-se estas e outras informações relevantes. O livro deixa, no leitor que acaba de fazer a viagem que nos é proposta, a sensação de que nada será como dantes… Bem certo que demolir um preconceito não é tarefa fácil. Mas a argumentação, que é pura descrição factual, não deixa margem para dúvidas. Em nome da verdade, há que reconhecer que a Idade que os modernos quiseram chamar ‘média’ foi rica de pensamento e descobertas científicas. Este é, por isso, um livro de justiça… Um livro que coloca nas suas mãos um meio de repor a verdade onde as fake news têm abundado.

quinta-feira, dezembro 16, 2021

Todas as reivindicações são direitos humanos?

Interroguemo-nos, sem preconceitos, sobre o que estamos, afinal, a dizer quando nos referimos a ‘direitos humanos’. A hora é de pensar, refletir e não deixar de nos interrogarmos apenas porque as decisões se afiguram imparáveis…

Para responder a tal desafio, optarei pela via da interrogação que suscite, no leitor, a dúvida sobre se tudo poderá caber sob o chapéu de ‘direito humano’.

Importa, de imediato, fazer uma constatação: o ser humano é um ser de desejos. Mas nem todos os desejos são, por si próprios, direitos. Serão direitos aqueles desejos que correspondam ao que é justo. E o que é justo? Ulpiano, numa definição que se tornou clássica, diz que justiça é a ‘vontade firme e constante de atribuir a cada um o que lhe é devido’. Sublinhemos o final da definição: ‘o que lhe é devido’. Direito é, por isso, um desejo que corresponde a algo que é devido. Desejo que não corresponda a algo que é devido só será atribuído por uma decisão arbitrária, que corre o risco de ser, mesmo, injusta.

Posso desejar muito possuir um determinado bem de alguém (um carro, uma casa, um recurso tecnológico, etc…). Esse desejo não é, porém, por si mesmo, um direito. O bem do outro pertence-lhe. Atribuir-mo, só porque o desejo, faz do ato do decisor um ato injusto. Teria de se verificar se o bem desejado me é devido…

Com tais pressupostos, perguntemo-nos como é que, considerando a criança um ser humano portador de direitos, poderá algum dia aceitar-se que ter um filho seja um direito. Há, aqui, uma tremenda confusão entre o direito a não ser impedido de gerar filhos e o direito a ter filhos. Se ter filhos viesse a ser reconhecido como direito, o filho seria propriedade de alguém, numa negação clara da dignidade da pessoa humana, pois transformaria o filho num meio, não respeitando a sua intrínseca condição humana de fim em si mesmo. A esta luz, como podem reivindicar alguns que tudo seja feito para que, mesmo contrariando qualquer condição natural a gerar filhos, lhes seja garantido o direito a ter filhos? O filho não é um bem que se possui; é alguém que se respeita, acolhe e de quem se cuida, amando-o e considerando-o fim em si, e cujos interesses maiores devem ser prevalecentes.

Como, aliás, aceitar que, em nome do já denunciado inexistente direito a ter filhos, se tenha legitimado que uniões que são, intrinsecamente, incapazes de gerar filhos, possam ver garantidas as condições para que os filhos lhes sejam gerados (atribuídos de forma arbitrária e não justa porque não devida), num contexto de uma orfandade materna ou paterna, originada pela via da lei. A orfandade que tudo quereríamos evitar para alguns está a ser proporcionada, pela via legal, para outros. Quem se compadece destes órfãos gerados pela própria lei?

Perguntemo-nos se, considerando-se que o direito à vida é direito primordial e condição necessária para a possibilidade dos demais, será legítimo que algum dia viesse a ser aceite que o aborto fosse um direito. (Só num mundo de enormes contradições…)

Perguntemo-nos com que legitimidade reivindicam alguns, ao arrepio do que afirma o preâmbulo da declaração universal dos direitos humanos, que diz que os direitos são inalienáveis (logo, insuscetíveis de alineação por alguém, mesmo o próprio…), que o suicídio e a eutanásia possam vir a ter estatuto de direitos humanos… Defender, cuidar e proteger a vida é, bem certo, um direito a que tem cada um perante o outro, mas também, por se tratar de direito inalienável, um dever para si mesmo…

Perguntemo-nos como poderá, considerando-se a igual dignidade de todos, aceitar como um direito humano a poligamia ou poliandria, reivindicada por alguns, a pretexto, por exemplo, da bissexualidade ou de outras opções de teor semelhante. Não pressupõe, aliás, a declaração universal dos direitos humanos, a igualdade de condições entre os dois (homem e mulher) ao afirmar, no seu artigo 16º, que «a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.»? Quanta contradição se percebe entre os que reivindicam como sendo ‘direito a casar’ a legitimação de serem ‘casamento’ uniões que não nascem do mesmo pressuposto que se compreende neste artigo!

Se esta via, vertiginosa e aparentemente imparável, prosseguir, os direitos humanos serão reduzidos ao direito a que cada um faça o que quiser. E, numa sociedade em que cada um faz o que quer, vale a pena perguntar quem faz o que deve e ter-se a noção de que, rapidamente, se proporcionam as condições para que a arbitrariedade se imponha, criando o lastro para o emergir de ditadores que nos dirão o que nos cabe fazer…

Não pisam já os nossos pés esse chão?

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

  ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva*   Cerca de duas décadas ...