sábado, abril 30, 2022

De Midas a Zaqueu

 Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

A nossa viagem de Troia a Ítaca prossegue. O nosso Ulisses continua o seu regresso à cidade de onde partiu para travar a guerra de Troia. Um regresso que nos faz vislumbrar os contributos da cultura grega, mas reparar, também, e como nunca, em como é singular a generosa dádiva do cristianismo…

Hoje, a nossa viagem leva-nos a ler a sempre sedutora tentação de possuir.

O homem, quando não consegue ser, deseja possuir. E quanto menos é, mais pretende ter… Faz-se crescer em ilusão quando a exiguidade da sua real dimensão lhe some todas as ilusões.

Um dos mais significativos mitos clássicos, de que nos fala Ovídio, na sua obra ‘Metamorfoses’, é o de Midas, de que a nossa cultura mantém a ideia do ‘toque de Midas’, para se referir a alguém que tem o dom de ter um sucesso infindo, como se tudo em que tocasse se transformasse em ouro.

Midas é, de acordo com o mito, um rei da região da Frígia a quem o deus Dionísio concede um dom em gesto de gratidão. Midas pede que lhe seja concedido o dom de tudo transformar em ouro.

No princípio, tudo corre como ele previra. Tudo o que lhe era trazido se transformava no reluzente metal, criando a inebriante sensação de um poder absoluto.

O que, porém, não estivera nas previsões de Midas é que ele continuava a precisar de comer e alimentar-se e o portentoso dom rapidamente se tornou uma maldição. O pão, uma coxa de frango ou uma taça de vinho… tudo se ‘aurifica’ com o seu simples toque.

Restar-lhe-ia, assim, que, apesar do ‘toque de Midas’, lhe adviesse a morte, não fosse a atitude compreensiva de Dionísio que lhe permitiu regressar à anterior condição desde que se banhasse nas águas do rio Pactolo que, segundo o mito, passou ele mesmo a ser formado por pepitas de ouro.

Midas tem, na nossa viagem, o seu anverso na figura de Zaqueu.

Este pequeno homem que, segundo Lucas (19,1-10), procurou Jesus e, não o conseguindo ver, se empoleirou num sicómoro, uma espécie de figueira, árvore tantas vezes conotada como sendo amaldiçoada, serve-nos de cara de uma moeda com duas faces.

Midas desejara tanto possuir que o seu poder de transformação da realidade em ouro infindo o conduzira à maldição de que padeceu o próprio Adão quando ousou comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Um e outro pretenderam ser deuses. Midas pretendeu-o sem acautelar que o seu poder chegasse ao ponto de transformar o orgânico em inorgânico, comportando, assim, o veneno da sua própria destruição.

Zaqueu, por oposição, em coerência com o próprio significado do seu nome - «justo, puro» - descobriu, ao encontrar-se com Jesus Cristo, que havia algo muito mais importante do que muito possuir: saber-se salvo!

Perante esta certeza, Zaqueu supera as próprias imposições da lei judaica e estabelece para si mesmo que restituirá aos que lesou o quádruplo do que lhes retirara, quando tal só estava previsto, segundo Êxodo 21,37, para apenas uma situação, o que não se aplicava a ele…

Zaqueu, homem pequeno, um vendido aos exploradores de que ele, como publicano, era a imagem visível da exploração, empoleirado numa árvore amaldiçoada, ganha nova vida quando recebe o ‘toque de Jesus’.

O toque de Midas destrói, em nome da posse; o ‘toque de Jesus’ vivifica o que já estava morto.

Não há, neste novo ‘toque’, a negação da posse, mas a restituição desta ao seu verdadeiro lugar. Possuir é sempre simples condição de caminho, não o fim ou a meta do próprio caminhar. A meta é realizar-se como plenificado por Deus, é realizar-se como ‘salvo’, pois ‘hoje, a salvação entrou nesta casa’.

 

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