Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’
(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)
Prossigamos a nossa viagem…
Regresso a Ítaca. O sonho está no Éden.
Este já longo percurso tem-nos levado a refletir sobre duas fontes estruturantes da nossa cultura ocidental: a cultura clássica, principalmente a grega, e a matriz cristã. Neste caminho, temos encontrado pontos de convergência e distinção.
Hoje, o nosso olhar deter-se-á numa das que considero ser uma das maiores dívidas do mundo ao cristianismo: a liberdade!
Para muitos, soará a paradoxal esta enunciação, pois um muito consolidado preconceito tem vincado a ideia de que liberdade e cristianismo são termos que não conjugam.
Mas é difícil estar mais longe da verdade do que quando se defende esta preconceituosa ideia.
Na verdade, o olhar atento e honesto sobre o que nos legou e continua a legar o cristianismo não pode senão levar-nos a concluir que a liberdade é conquista definitivamente proporcionada pelo cristianismo. E percebamos, então, porquê.
Já em anteriores etapas da nossa reflexão recordei que as histórias de Édipo, de Antígona, de Cassandra, de Sísifo, etc., são marcadas por uma dimensão trágica resultante de uma visão que faz depender estas personagens de um destino que ninguém consegue contrariar.
Somo a estas constatações a ideia de que os gregos tinham a convicção de que o poder das moiras, as deusas do destino, chegava a ser superior aos próprios deuses, tudo submetendo sem apelo nem agravo.
A visão cristã, que, infelizmente, tantas vezes, continua impura mesmo entre os cristãos, fruto de forte ambiência cultural envolvente, apresenta uma perspetiva diametralmente oposta.
A ideia que concentra esta nova visão sobre o mundo e sobre o homem e a sua história, condensa-se na ideia de Graça. Graça deverá ser – como tantas vezes tenho recordado aos meus alunos – não tanto como um ‘substantivo’, mas como um adjetivo que qualifica a ação de Deus para com a Sua criação. Graça define essa ação como sendo ‘gratuita’, generosa, entregue sem ser devida. Puramente dada e, por isso, também puramente e gratuitamente recebida.
Recordo, para ilustrar o alcance desta visão especificamente cristã, o que afirmava, há uns anos, o vocalista dos U2, Bono Vox, um conhecido cristão de confissão católica que reflete na sua vida e arte esta perspetiva. Diz Bono Vox numa série de entrevistas de Michka Assayas, editadas pela editora Ulisseia, em 2005: “Repara [que] no centro de todas as religiões há a ideia de Karma. Vê bem, aquilo que fazes volta para ti: olho por olho, dente por dente, ou, na física – nas leis físicas – a cada ação equivale uma igual ou oposta. É claro para mim que o karma está no centro do Universo. Tenho a certeza absoluta. E ainda assim, aparece igualmente este conceito de Graça para dar a volta a tudo isto. «Como colhes, assim terás de semear». A Graça desafia a razão e a lógica. O amor interrompe, se quiseres, as consequências das tuas ações, o que no meu caso é, na verdade, muito bom, porque eu fiz muitas coisas estúpidas.” (p. 227)
Ontem, como hoje, o grande combate do cristianismo é em relação à tentação de tudo reduzir a um destino inexorável perante o qual nada há a fazer. Veja-se como a ele sucumbem todos os determinismos (os que dizem que tínhamos de ser assim porque o determina a genética, ou o ambiente, ou a cultura, ou as pulsões ou… ou…). E onde fica a liberdade?
Só a Graça a pode garantir.
Apresentar-se Deus, ao mundo, através do Cristianismo, como Amor (não apenas como Aquele que ‘tem’ amor, mas como Aquele que ‘é’ Amor) é a sua grande novidade e, também, uma das maiores dívidas que o mundo deve reconhecer nunca ter devidamente saldado.
É curioso constatar como a tentação de regressar à escravidão (à ditadura do destino), pela via da manipulação do futuro (pelas necromancias, quiromancias, magias, astrologias ou outras técnicas), é sedutora e regressa, vez após vez, como se as moiras recebessem renovados convites dos humanos para habitarem na sua casa e desde a primeira hora a estes convites esteve atento o cristianismo.
É que o mundo não é, para a religião cristã, mero cenário onde se representa história previamente traçada e a cumprir: é o real lugar do encontro das liberdades – as humanas e a divina.
Liberdades, sim, e não enredos já definidos e traçados.