Onde há medo, não há liberdade.
Com este pressuposto, tenhamos em conta que nos apavora sermos ultrapassados pela última onda de novidade. Como poderemos sobreviver ao facto de não nos vermos a ‘surfar’ a última onda de mudanças? Vivemos como que oprimidos e amarrados a uma síndroma que nos impede de decidir com tranquilidade: a síndroma do ultrapassado.
Não é de hoje (enraíza-se nos já longínquos tiques setecentistas e oitocentistas do tempo dos estrangeirados em que temíamos que nos escapasse o lugar singular na história…), mas a volatilidade dos tempos, a voracidade das mudanças e a universalização do ‘clique que muda a história’ na ponta da espada digital, tornaram esta síndroma particularmente incapacitante.
Vislumbro nesta vertigem sedutora uma manifestação de um novo absolutismo de tipo ‘crónico’ (de ‘crónos’ - ‘tempo’), constatação que me leva a recuperar uma ideia que tem germinado em mim, desde há muito, e que passo a explicar.
Contrariando uma difundida tese de que o fundamentalismo tem origem religiosa (defendo que os fundamentalismos nascem do medo e de um desejo de poder que é anterior à própria religião, o qual a instrumentaliza), sustento que o verdadeiro ‘antídoto’ contra o ‘veneno’ das verdades absolutas, na história, está, precisamente, nas religiões e que, sem elas, ficaríamos privados das únicas que podem superar, sem cair no relativismo, os perigos de todos os absolutismos.
Explico-me melhor…
A absolutização das verdades, na História, pressupõe que a alternativa a esta absolutização seja o relativismo; do mesmo modo mas em sentido contrário, os relativistas parecem pressupor que são a única alternativa possível à ideia de verdades absolutas e inamovíveis.
Uma e outra convicção são insuficientes e esquecem a alternativa em que as religiões não panteístas são a resposta abstratamente a considerar.
Para entendermos o alcance desta afirmação, tenhamos em conta que as religiões não panteístas (as que distinguem Deus do mundo, não fundindo uma e outra realidade) pressupõem, de forma implícita (mas também explícita), duas condições fundamentais para se problematizar a questão da verdade: que o Absoluto está para além da história e que esta (a História) está em tensão para esse absoluto.
Estas duas condições, reunidas e mantidas unidas, constituem o quadro para a terceira via entre o absolutismo e o relativismo gnosiológico e epistémico.
Por um lado, ao pressuporem que o Absoluto está para além da História, as religiões sublinham que a ninguém deve caber a veleidade de entrincheirar a verdade e impô-la aos outros como sendo definitiva e sem desenvolvimento (mesmo no caso dos dogmas católicos esta consciência está presente, ao falar, na senda do que preconizou o cardeal John Newman [1801-1890], da história do desenvolvimento dos dogmas[1]). Wolfhart Pannenberg [1928-2014], considerado ‘o mais católico dos teólogos protestantes’ sublinhou esta ideia da ‘conquista’ sempre heurística e nunca definitiva da verdade ao afirmar o carácter proléptico da realidade, na qual se antecipa o ‘definitivo’ da História em acontecimentos densamente simbólicos, nos quais se densifica a tensão para o definitivo, no relativo da finitude histórica. Em eventos particularmente teofânicos, antecipa-se o sentido definitivo da história, mas esses momentos prolépticos escapam ao ‘aprisionamento’ no finito. A prolepticidade não é pretexto para uma ideia de ‘absoluto’ conquistado, mas antes sublinha a tensão entre o relativo e o absoluto, evidenciando que o que é particularmente simbólico, na história, deve a sua natureza, não à possibilidade de se absolutizar o agora, mas à abertura do agora e do finito ao infinito, para o qual tende. O absoluto nunca é conquistado e ‘aprisionado’, mas deixa-se vislumbrar, prolepticamente, no finito[2].
Esta condição da realidade faz dela, no dizer de Leonardo Boff[3], transparente: nela ‘transparece’ o transcendente, que não se confunde com ela. O relativo permanece relativo; o absoluto permanece absoluto, mas aquele tende para este.
É esta tensão que se perde numa visão absolutista ou numa visão relativista. Na primeira, a tensão perde-se por fundir no absoluto o relativo; na segunda, por se perder a noção de se encaminhar para o absoluto.
Só as religiões não panteístas podem assegurar essa tensão. Consciência que, bem certo, em muitos momentos da história, elas próprias esqueceram, mas que, como bem recorda Nicolai Berdiaiev no seu ‘contra a indignidade dos cristãos’[4], está nas próprias religiões (em particular, no cristianismo) o antídoto contra os seus próprios limites.
Como pertinentemente observa o não crente Alain de Botton, no seu ‘religião para ateus’[5], jamais a humanidade conseguiu elevar as diversas dimensões e áreas do saber humano para além do que foi conseguido pelas religiões. Contrariamente, porém, a Alain de Botton, não acho que seja por uma insuficiência do saber secular e profano, mas por mérito da religião.
Saberão as religiões permanecer fiéis à sua natureza, nestes tempos radicalizados e extremados entre absolutismos e relativismos?
[1] Cardeal Newman, Apologia, S/L, Verbo, 1974.
[2] Cfr. estas e outras ideias sobre o pensamento de Pannenberg em Luís Manuel Pereira da Silva, Teologia, ciência e verdade. Fundamentos para uma definição do estatuto científico da teologia segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004.
[3] Cfr. Leonardo Boff, Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos, Petrópolis, Vozes, 1993.
[4] Nicolái Berdiáiev, Contra la indignidad de los cristianos. Por un cristianismo de creación y libertad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2019.
[5] Alain de Botton, Religião para ateus. Um guia para não crentes sobre as utilizações da religião, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2012.