A laicidade é uma conquista. Não de hoje, mas fruto de prolongado caminho em que não deu pouco contributo o cristianismo. ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ está, certamente, entre as mais decisivas afirmações para a consolidação da ideia da separação entre a religião e a política. Gogarten, um teólogo nascido em finais do século XIX e que viveu nos dois primeiros terços do século XX, ainda vai mais longe e vê, na conceção da realidade como sendo fruto da criação, a raiz última da laicidade e da secularização, na medida em que a ‘ideia de criação’ sustenta, fundamentalmente, o reconhecimento de que Deus e realidade criada são distintos, tendo esta uma autonomia que permite compreendê-la, no seu funcionamento, a partir das suas próprias condições.
É precisamente por
causa desta distinção que resulta de dar a César o que lhe é próprio e a Deus o
que lhe é exclusivo, que muitos, entre os quais destaco Zagrebelsky, que foi
presidente do Tribunal Constitucional Italiano, defendem que o que é próprio de
Deus, como, por exemplo, tirar a vida, deveria ser-lhe reservado, não sendo
legítimo que os Estados se reconheçam esse direito… Consequência lógica de uma
distinção que, porém, nestas discussões, tende a olhar, apenas, para as
conquistas do lado da autonomia do Estado…
Regressemos à
questão original que nos leva a esta reflexão: a ideia de que a laicidade é uma
conquista.
É-o, de facto, mas
importa reconhecer que o seu significado não é unívoco, sendo que pode, mesmo,
chegar a ser equívoco.
Vejamos.
Laicidade: conceito
inequívoco?
Enumeremos alguns
exemplos de estados que reconhecemos como laicos: Reino Unido, Alemanha,
França, Polónia, Portugal, etc….
Vejamos que entre
estes cinco países, que reconhecemos como laicos, há cinco visões distintas dessa
mesma laicidade.
A Constituição
alemã, aprovada em 23 de maio de 1949, no rescaldo da II Guerra Mundial, e
recolhendo as lições desta, começa por afirmar, no preâmbulo: «Consciente da
sua responsabilidade perante Deus e os homens, movido pela vontade de servir à
paz do mundo, como membro com igualdade de direitos de uma Europa unida, o povo
alemão, em virtude do seu poder constituinte, outorgou-se a presente Lei
Fundamental.» (Sigo a edição publicada aqui: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf). Sublinhe-se a consciência do povo alemão do dever
de responsabilidade perante Deus e os homens…
Também a
Constituição da República da Polónia se evidencia interessante para a nossa discussão,
dado que é aprovada em 1997, após a dura experiência de submissão a um regime
coletivista de matriz ateia: «Tendo em conta a existência e o futuro da nossa
Pátria, Que recuperou, em 1989, a possibilidade de uma determinação soberana e
e democrática do nosso destino, Nós, a nação polonesa - todos os cidadãos da
República, Tanto aqueles que acreditam em Deus como fonte da verdade, da
justiça, bondade e beleza, Como aqueles que não compartilham tal fé, mas que
respeitam os valores universais de outras fontes, Iguais em direitos e
obrigações para com o bem comum – a Polónia.» (Sigo a edição publicada aqui: https://jus.com.br/artigos/98104/constituicao-da-polonia-de-1997-revisada-em-2009).
No caso inglês, há
que anotar que a laicidade deve ser pensada tendo em conta que há uma religião
oficial, sustentada na ideia de que o rei/rainha é, por inerência, chefe da
Igreja de Inglaterra. Uma laicidade sui
generis… Mas não se duvida da laicidade, de tal modo que o sistema político
inglês é, múltiplas vezes, tomado como exemplo e como origem do parlamentarismo
moderno…
Já o caso francês
deve fazer-nos pensar, pois é explícito na afirmação da laicidade da república
francesa, ao dizer, logo no artigo 1º que «A França é uma República
indivisível, laica, democrática e social.» (Sigo a edição publicada em https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/as/root/bank_mm/portugais/constitution_portugais.pdf)
Na nossa perspetiva,
a dificuldade que a república francesa tem em lidar com o fenómeno religioso
nasce, precisamente, deste imbróglio que lhe é criado pela existência, na lei
fundamental, de uma afirmação que parecendo inequívoca, é, efetivamente, muito
equívoca. Estamos convencidos de que a França tem um problema religioso que,
felizmente, hoje, não existe em Portugal, precisamente pelos constrangimentos
que a afirmação de que a república francesa é laica lhe cria. O amplo espectro
que o conceito de laicidade permite ter gera, facilmente, tiques laicistas que
tornam o Estado indiferente à realidade religiosa, sumindo sob a capa de
‘inexistente’ um âmbito da vida dos cidadãos que poderia ser catalisador de
consolidação dos liames sociais.
O caso português
Comparemos com o
caso português, em que os constituintes de 1976 tiveram o cuidado de omitir a
palavra ‘laico/a’, ‘laicidade’ para definir a relação entre o Estado e a
Religião, sendo que é necessário esperar pelo artigo 41º para que se descreva
esta relação. E diz-se, aí, após enunciar o dever de respeito pela liberdade de
consciência, de religião e de culto por ser inviolável, (o que, nos pontos
seguintes do mesmo artigo 41º é descrito com mais detalhe), que «As igrejas e
outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua
organização e no exercício das suas funções e do culto.» (Artigo 41º, número
4), evidenciando-se que o acento está no respeito pela liberdade religiosa e
pela independência das Igrejas em relação ao Estado e não, como se presume da
constituição francesa, numa visão laicista do Estado, que o afirma como
indiferente e neutro em relação à realidade religiosa.
Sublinho.
A constituição da
república portuguesa nunca afirma que o Estado é ‘laico’ ou que a sua matriz
seja a ‘laicidade’. Tudo isso são aplicações terminológicas legítimas, mas
inexistentes, na lei fundamental. O que ali se faz é a descrição. E percebe-se
que a descrição tem um ponto de partida: o respeito pela liberdade religiosa e
não a indiferença perante a religião.
Com esta constatação,
cabe reconhecer que a III República conseguiu, nesta matéria, um equilíbrio que
é fácil perceber que se deve à sábia leitura do que ocorrera, nas I e II
repúblicas, em que o pêndulo se desequilibrou, seja, na primeira, para o lado
do silenciamento da religião, seja, na segunda, para um favorecimento pouco
disponível para o acolhimento da diversidade religiosa.
Vale a pena
recordar, a este propósito, uma constatação que já fizera Alexis de Tocqueville
ao analisar a democracia americana e ao compará-la com a realidade europeia, em
que evidenciava que a laicidade era, ali, entendida como a sã e fecunda
relação, feita de forma proporcionada (isto é, respeitando a representatividade
sociológica das religiões), entre o Estado e a religião, enquanto, na Europa,
por influência da França e da sua revolução, se entendia a laicidade como a
indiferença e o silenciamento para o âmbito privado da realidade religiosa, com
enormes custos para a sociedade.
Somemos a esta
constatação uma outra que não nos parece despicienda.
O entendimento da
laicidade no registo da revolução francesa (que os analistas entendem como
sendo um ‘laicismo’, em vez de uma laicidade positiva) pressupõe um
entendimento sobre o que é o Estado e a sua relação com a sociedade que deverá
merecer atenção detida. Repare-se que o laicismo presume que, antes de tudo,
está o Estado. Ele é fim em si mesmo. Aliás, isso era notório no entendimento
que mostraram ter os revolucionários franceses, entre os quais Robespierre se destacou,
como líder que afirmava que «a pátria tem o direito de educar os seus filhos;
ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos
preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um
federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa,
p.724). O Estado era, neste entendimento, anterior à própria sociedade, cabendo
a esta servi-lo e, não, como será fácil concluir, ser o Estado a servir as
pessoas, a sociedade e a justiça.
Um Estado que serve
ou um Estado que se serve?
Não nos parece que
seja aquele o entendimento que pode presumir-se da leitura da nossa
constituição. O Estado é meio, neste caso, organização da sociedade em prol do
fim último que se configura nos pressupostos e fins enunciados logo no artigo
1º: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.» Presumir deste artigo que o Estado seja fim em si mesmo é enviesar
a leitura. Ora, como pode o Estado ser indiferente ao que configura a própria
sociedade que se propõe servir e construir como «livre, justa e solidária»? Como
pode ser indiferente à religião, se mais de 90% se afirmam religiosos, sendo
que mais de 80% se dizem católicos? Mas é o que defendem os laicistas… Felizmente,
o povo ainda lê a constituição e não segue o que os laicistas pretendem impor…
Caberá, aliás, enfrentar a pergunta sobre se a política, que
tem sido sustentada, tão frequentemente, na ‘fake new’ de que a constituição
afirme que o ‘estado é laico’, serve o povo ou é entendida como fim em si
mesma… Valerá, aliás, ir ainda mais longe e interrogar onde estão os crentes,
no mundo da política? Se o povo se diz como sendo religioso em mais de 90% dos
casos, como pode ser o parlamento constituído, na sua maioria, por não crentes
que, naturalmente, porque não vivem o que a grande maioria vivencia como
importante, relativizam a experiência dos outros? Devemos, porém, reconhecer
que, apesar desta composição desproporcionada, o parlamento tem sabido evitar
os tiques laicistas, mas é uma segurança conjuntural. Quem garante que, por uma
espécie de ‘golpe palaciano’, a maioria que não representa a maioria nunca
cederá à tentação de afirmar que, para o Estado português, a religião é algo
que não existe?
Não passa de
interrogações, mas que considero legítimas… A frequência da interrogação sobre
se a laicidade não deveria entender-se como a indiferença perante a religião
obriga a redobrada atenção, em nome de uma das mais importantes e determinantes
conquistas da humanidade: a laicidade, entendida como o respeito pela liberdade
religiosa que se faz diálogo entre as diversidades de leitura (em que a
religiosa é tão legítima como as que não o são, mas, no caso português,
sociologicamente mais expressiva…), e não como indiferença perante uma dessas
leituras. Os tempos são de diálogo e cooperação, não já de obscurantismo
laicista.