quarta-feira, agosto 09, 2023

A laicidade: uma leitura sem preconceitos

 

A laicidade é uma conquista. Não de hoje, mas fruto de prolongado caminho em que não deu pouco contributo o cristianismo. ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ está, certamente, entre as mais decisivas afirmações para a consolidação da ideia da separação entre a religião e a política. Gogarten, um teólogo nascido em finais do século XIX e que viveu nos dois primeiros terços do século XX, ainda vai mais longe e vê, na conceção da realidade como sendo fruto da criação, a raiz última da laicidade e da secularização, na medida em que a ‘ideia de criação’ sustenta, fundamentalmente, o reconhecimento de que Deus e realidade criada são distintos, tendo esta uma autonomia que permite compreendê-la, no seu funcionamento, a partir das suas próprias condições.

É precisamente por causa desta distinção que resulta de dar a César o que lhe é próprio e a Deus o que lhe é exclusivo, que muitos, entre os quais destaco Zagrebelsky, que foi presidente do Tribunal Constitucional Italiano, defendem que o que é próprio de Deus, como, por exemplo, tirar a vida, deveria ser-lhe reservado, não sendo legítimo que os Estados se reconheçam esse direito… Consequência lógica de uma distinção que, porém, nestas discussões, tende a olhar, apenas, para as conquistas do lado da autonomia do Estado…

Regressemos à questão original que nos leva a esta reflexão: a ideia de que a laicidade é uma conquista.

É-o, de facto, mas importa reconhecer que o seu significado não é unívoco, sendo que pode, mesmo, chegar a ser equívoco.

Vejamos.

 

 

Laicidade: conceito inequívoco?

Enumeremos alguns exemplos de estados que reconhecemos como laicos: Reino Unido, Alemanha, França, Polónia, Portugal, etc….

Vejamos que entre estes cinco países, que reconhecemos como laicos, há cinco visões distintas dessa mesma laicidade.

A Constituição alemã, aprovada em 23 de maio de 1949, no rescaldo da II Guerra Mundial, e recolhendo as lições desta, começa por afirmar, no preâmbulo: «Consciente da sua responsabilidade perante Deus e os homens, movido pela vontade de servir à paz do mundo, como membro com igualdade de direitos de uma Europa unida, o povo alemão, em virtude do seu poder constituinte, outorgou-se a presente Lei Fundamental.» (Sigo a edição publicada aqui: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf). Sublinhe-se a consciência do povo alemão do dever de responsabilidade perante Deus e os homens…

Também a Constituição da República da Polónia se evidencia interessante para a nossa discussão, dado que é aprovada em 1997, após a dura experiência de submissão a um regime coletivista de matriz ateia: «Tendo em conta a existência e o futuro da nossa Pátria, Que recuperou, em 1989, a possibilidade de uma determinação soberana e e democrática do nosso destino, Nós, a nação polonesa - todos os cidadãos da República, Tanto aqueles que acreditam em Deus como fonte da verdade, da justiça, bondade e beleza, Como aqueles que não compartilham tal fé, mas que respeitam os valores universais de outras fontes, Iguais em direitos e obrigações para com o bem comum – a Polónia.» (Sigo a edição publicada aqui: https://jus.com.br/artigos/98104/constituicao-da-polonia-de-1997-revisada-em-2009).

No caso inglês, há que anotar que a laicidade deve ser pensada tendo em conta que há uma religião oficial, sustentada na ideia de que o rei/rainha é, por inerência, chefe da Igreja de Inglaterra. Uma laicidade sui generis… Mas não se duvida da laicidade, de tal modo que o sistema político inglês é, múltiplas vezes, tomado como exemplo e como origem do parlamentarismo moderno…

Já o caso francês deve fazer-nos pensar, pois é explícito na afirmação da laicidade da república francesa, ao dizer, logo no artigo 1º que «A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.» (Sigo a edição publicada em https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/as/root/bank_mm/portugais/constitution_portugais.pdf)

Na nossa perspetiva, a dificuldade que a república francesa tem em lidar com o fenómeno religioso nasce, precisamente, deste imbróglio que lhe é criado pela existência, na lei fundamental, de uma afirmação que parecendo inequívoca, é, efetivamente, muito equívoca. Estamos convencidos de que a França tem um problema religioso que, felizmente, hoje, não existe em Portugal, precisamente pelos constrangimentos que a afirmação de que a república francesa é laica lhe cria. O amplo espectro que o conceito de laicidade permite ter gera, facilmente, tiques laicistas que tornam o Estado indiferente à realidade religiosa, sumindo sob a capa de ‘inexistente’ um âmbito da vida dos cidadãos que poderia ser catalisador de consolidação dos liames sociais.

 

O caso português

Comparemos com o caso português, em que os constituintes de 1976 tiveram o cuidado de omitir a palavra ‘laico/a’, ‘laicidade’ para definir a relação entre o Estado e a Religião, sendo que é necessário esperar pelo artigo 41º para que se descreva esta relação. E diz-se, aí, após enunciar o dever de respeito pela liberdade de consciência, de religião e de culto por ser inviolável, (o que, nos pontos seguintes do mesmo artigo 41º é descrito com mais detalhe), que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.» (Artigo 41º, número 4), evidenciando-se que o acento está no respeito pela liberdade religiosa e pela independência das Igrejas em relação ao Estado e não, como se presume da constituição francesa, numa visão laicista do Estado, que o afirma como indiferente e neutro em relação à realidade religiosa.

Sublinho.

A constituição da república portuguesa nunca afirma que o Estado é ‘laico’ ou que a sua matriz seja a ‘laicidade’. Tudo isso são aplicações terminológicas legítimas, mas inexistentes, na lei fundamental. O que ali se faz é a descrição. E percebe-se que a descrição tem um ponto de partida: o respeito pela liberdade religiosa e não a indiferença perante a religião.

Com esta constatação, cabe reconhecer que a III República conseguiu, nesta matéria, um equilíbrio que é fácil perceber que se deve à sábia leitura do que ocorrera, nas I e II repúblicas, em que o pêndulo se desequilibrou, seja, na primeira, para o lado do silenciamento da religião, seja, na segunda, para um favorecimento pouco disponível para o acolhimento da diversidade religiosa.

Vale a pena recordar, a este propósito, uma constatação que já fizera Alexis de Tocqueville ao analisar a democracia americana e ao compará-la com a realidade europeia, em que evidenciava que a laicidade era, ali, entendida como a sã e fecunda relação, feita de forma proporcionada (isto é, respeitando a representatividade sociológica das religiões), entre o Estado e a religião, enquanto, na Europa, por influência da França e da sua revolução, se entendia a laicidade como a indiferença e o silenciamento para o âmbito privado da realidade religiosa, com enormes custos para a sociedade.

Somemos a esta constatação uma outra que não nos parece despicienda.

O entendimento da laicidade no registo da revolução francesa (que os analistas entendem como sendo um ‘laicismo’, em vez de uma laicidade positiva) pressupõe um entendimento sobre o que é o Estado e a sua relação com a sociedade que deverá merecer atenção detida. Repare-se que o laicismo presume que, antes de tudo, está o Estado. Ele é fim em si mesmo. Aliás, isso era notório no entendimento que mostraram ter os revolucionários franceses, entre os quais Robespierre se destacou, como líder que afirmava que «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724). O Estado era, neste entendimento, anterior à própria sociedade, cabendo a esta servi-lo e, não, como será fácil concluir, ser o Estado a servir as pessoas, a sociedade e a justiça.

 

Um Estado que serve ou um Estado que se serve?

Não nos parece que seja aquele o entendimento que pode presumir-se da leitura da nossa constituição. O Estado é meio, neste caso, organização da sociedade em prol do fim último que se configura nos pressupostos e fins enunciados logo no artigo 1º: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.» Presumir deste artigo que o Estado seja fim em si mesmo é enviesar a leitura. Ora, como pode o Estado ser indiferente ao que configura a própria sociedade que se propõe servir e construir como «livre, justa e solidária»? Como pode ser indiferente à religião, se mais de 90% se afirmam religiosos, sendo que mais de 80% se dizem católicos? Mas é o que defendem os laicistas… Felizmente, o povo ainda lê a constituição e não segue o que os laicistas pretendem impor…

Caberá, aliás, enfrentar a pergunta sobre se a política, que tem sido sustentada, tão frequentemente, na ‘fake new’ de que a constituição afirme que o ‘estado é laico’, serve o povo ou é entendida como fim em si mesma… Valerá, aliás, ir ainda mais longe e interrogar onde estão os crentes, no mundo da política? Se o povo se diz como sendo religioso em mais de 90% dos casos, como pode ser o parlamento constituído, na sua maioria, por não crentes que, naturalmente, porque não vivem o que a grande maioria vivencia como importante, relativizam a experiência dos outros? Devemos, porém, reconhecer que, apesar desta composição desproporcionada, o parlamento tem sabido evitar os tiques laicistas, mas é uma segurança conjuntural. Quem garante que, por uma espécie de ‘golpe palaciano’, a maioria que não representa a maioria nunca cederá à tentação de afirmar que, para o Estado português, a religião é algo que não existe?

Não passa de interrogações, mas que considero legítimas… A frequência da interrogação sobre se a laicidade não deveria entender-se como a indiferença perante a religião obriga a redobrada atenção, em nome de uma das mais importantes e determinantes conquistas da humanidade: a laicidade, entendida como o respeito pela liberdade religiosa que se faz diálogo entre as diversidades de leitura (em que a religiosa é tão legítima como as que não o são, mas, no caso português, sociologicamente mais expressiva…), e não como indiferença perante uma dessas leituras. Os tempos são de diálogo e cooperação, não já de obscurantismo laicista.

domingo, agosto 06, 2023

As JMJ e a via da beleza (via pulchritudinis)


Os ecos das JMJ ecoam no coração de todos os que participaram, ao longe ou perto! Um dos maiores erros na abordagem de tudo o que foi ali vivido seria reduzir à interrogação sobre ‘para quem eram as mensagens do Papa Francisco’, em busca de um destinatário que aliviasse a dor da transformação que elas exigem de quem as ouve.

Mas, de facto, as palavras de Francisco não são, apenas, para outros (sê-lo-ão, certamente, e por isso, podem conduzir a mudanças profundas), mas, principalmente, para os que ousarem ouvi-las como sendo para si mesmos.

Eu estou nessa disposição e muitas interrogações me têm 'assaltado', ao longo destes dias. Não como uma tomada de bens sem consentimento, mas como um 'assalto' que consinto que conduza ao meu próprio despojamento.

Como presidente da comissão diocesana da cultura, olho para tudo o que foi vivido e vejo o poder da beleza, a via pulchritudinis, em ação.

Estas JMJ foram, para além de tudo, lugares de beleza. ‘Fazei das vossas vidas lugares de beleza’, recordou, já em outros momentos, em visita a Portugal, um dos sucessores de Pedro, repercutindo como, perante o caos, Deus é o que ordena e organiza (faz, do 'caos', 'cosmos'), como, perante o que cinde e divide (em grego, ‘diabolos’), Deus é o que une (é ‘símbolo’), como, perante o decadente e informe, Deus é o Belo e a fonte da beleza. Aliás, assim começam os textos sagrados: por dizer-nos que o poder criador e ‘cósmico’ de Deus se confirma nas palavras do narrador que nos dá consciência de que o Criador vê que tudo era bom… Uma bondade que começa por ser expressa na beleza e harmonia com que o mundo se afigura.

A dança, a pintura e o canto, a música e as formas da arquitetura dos espaços, as próprias palavras, foram cuidados, nestas JMJ, para proporcionar caminho para o sublime, contrariando a ideia de uma juventude satisfeita com o caos e o ruído.

A música, dirigida por quem se percebia viver o que expressava musicalmente, a maestrina Joana Carneiro, evocou o que de melhor a história da música foi proporcionando à humanidade em resultado deste encontro entre a fé e a arte.

Ao ouvi-la, lembrei, bem certo, os ecos da longa e profunda história da música sacra, que terá, provavelmente, em Palestrina, em Bach, em Mozart, em Allegri, em Buxtehude, etc. alguns dos seus expoentes máximos, cuja memória poderá, porém, gerar a impressão de uma nascente que já secou.

Este encontro continua fecundo. Que o digam nomes como Arvo Pärt, Henrik Odegaard, Penderecki, Messiaen, Gubaidulina, Carrapatoso, etc., expressões contemporâneas da ininterrupta relação entre religião e arte e, em particular, entre o cristianismo e a cultura.

Do mesmo modo, poderíamos olhar para outros vetores de fecundidade deste encontro, como, por exemplo, para a literatura, com Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, ou, para a arquitetura, com Gaudí, ou, para a escultura, em Portugal, com Paulo Neves, ou para... ou para...

As JMJ mostraram ao mundo que a busca do sublime não tem de ser iconoclasta e que a fé não tem de temer a cultura, mas a sublimizá-la, levá-la a recuperar a consciência de que nos deve encaminhar em direção ao sublime que nos sara as feridas que a vida, tantas vezes caótica, nos abre na ‘pele’ da alma.

Ouço, enquanto escrevo, ‘Meditações sobre o banquete de Santa Madalena em Nidaros’, de Henrik Odegaard, compositor que tem dedicado parte significativa da sua obra à música sacra.

A escuta desta obra, em que se sente a densidade do encontro entre o gregoriano e o contemporâneo, serve-me, não apenas para deleite estético, mas, por evocar a figura de Santa Maria Madalena, faz reavivar em mim a memória de uma obra escultórica dedicada a esta santa e que é particularmente grata ao Papa Francisco. Refiro-me a um capitel da Igreja de Santa Madalena (século XI), em Vezelay, cuja foto repousa na secretária do sumo Pontífice.

E o que retrata esta foto, este capitel, que serve de ilustração a este artigo?

Retrata, à esquerda, um enforcado, e à direita, alguém que o transporta aos ombros. Neste densa cena, descreve-se, pela arte, aquela que terá sido mensagem fundamental do Papa Francisco, ao longo destes dias de JMJ.

O enforcado é Judas Iscariotes, arrependido. À direita, retrata-se Jesus que o leva aos ombros.

A misericórdia de Deus é, aqui, densamente representada numa cena que nos comove.

O ‘todos, todos, todos’ que o Papa Francisco pediu aos jovens que repetissem e que continua a ecoar aos nossos ouvidos, encontra suporte na mais longa e profunda história da teologia e da arte cristãs: seremos julgados no encontro com o Amor, diante do qual, como em tempos me recordava uma aluna de escatologia, baixaremos os olhos por nos sentirmos impuros diante do Amor de Deus. Não será Deus a julgar-nos, mas sim nós mesmos a ‘julgarmo-nos’ perante o Amor que Deus é.

Recordo, a este propósito, o que me disse, nos idos de 90, o saudoso sr. D. Manuel de Almeida Trindade, Bispo emérito de Aveiro, numa das várias conversas que tive o privilégio de partilhar com ele, no Seminário de Coimbra, que frequentei até 1996: 'repara, Luís, como a Igreja sempre nos disse que havia santos que podíamos imitar e invocar, mas nunca ousou dizer de ninguém que estaria em Inferno, por acreditar no poder da misericórdia de Deus'.

É desta misericórdia sem limite que deverão falar-nos a arte e a cultura fermentadas de cristianismo, misericórdia que não nos acomoda no que já somos, mas que nos desafia a ‘partirmos apressadamente’. A tentação que sinto, múltiplas vezes, porém, é a de me aquietar na certeza da misericórdia, como se ela não me interpelasse à conversão. O lema das JMJ fala, contudo, de um outro estado e condição perante a vida: Maria não se aquietou, não se acomodou – ‘partiu apressadamente’. Importa recordar que essa certeza da ultimidade da misericórdia foi fonte de uma subtil tentação, em alguns tempos da história da Igreja, como ocorreu com Orígenes (séc. II-III), que defendeu uma apocatástase, uma restauração de tudo e todos sem a participação dos mesmos, como se a misericórdia não envolvesse os sujeitos e se operasse ao arrepio da sua própria vontade e conversão. A misericórdia é encontro, é relação, não imposição. Interpela, faz partir de si, convida a caminhar, a ‘partir apressadamente’.

A arte que fala do sublime convida a transcender os ‘caos’ da vida, não a permanecer neles…

Palavras para mim. Não para outros…

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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