domingo, agosto 06, 2023

As JMJ e a via da beleza (via pulchritudinis)


Os ecos das JMJ ecoam no coração de todos os que participaram, ao longe ou perto! Um dos maiores erros na abordagem de tudo o que foi ali vivido seria reduzir à interrogação sobre ‘para quem eram as mensagens do Papa Francisco’, em busca de um destinatário que aliviasse a dor da transformação que elas exigem de quem as ouve.

Mas, de facto, as palavras de Francisco não são, apenas, para outros (sê-lo-ão, certamente, e por isso, podem conduzir a mudanças profundas), mas, principalmente, para os que ousarem ouvi-las como sendo para si mesmos.

Eu estou nessa disposição e muitas interrogações me têm 'assaltado', ao longo destes dias. Não como uma tomada de bens sem consentimento, mas como um 'assalto' que consinto que conduza ao meu próprio despojamento.

Como presidente da comissão diocesana da cultura, olho para tudo o que foi vivido e vejo o poder da beleza, a via pulchritudinis, em ação.

Estas JMJ foram, para além de tudo, lugares de beleza. ‘Fazei das vossas vidas lugares de beleza’, recordou, já em outros momentos, em visita a Portugal, um dos sucessores de Pedro, repercutindo como, perante o caos, Deus é o que ordena e organiza (faz, do 'caos', 'cosmos'), como, perante o que cinde e divide (em grego, ‘diabolos’), Deus é o que une (é ‘símbolo’), como, perante o decadente e informe, Deus é o Belo e a fonte da beleza. Aliás, assim começam os textos sagrados: por dizer-nos que o poder criador e ‘cósmico’ de Deus se confirma nas palavras do narrador que nos dá consciência de que o Criador vê que tudo era bom… Uma bondade que começa por ser expressa na beleza e harmonia com que o mundo se afigura.

A dança, a pintura e o canto, a música e as formas da arquitetura dos espaços, as próprias palavras, foram cuidados, nestas JMJ, para proporcionar caminho para o sublime, contrariando a ideia de uma juventude satisfeita com o caos e o ruído.

A música, dirigida por quem se percebia viver o que expressava musicalmente, a maestrina Joana Carneiro, evocou o que de melhor a história da música foi proporcionando à humanidade em resultado deste encontro entre a fé e a arte.

Ao ouvi-la, lembrei, bem certo, os ecos da longa e profunda história da música sacra, que terá, provavelmente, em Palestrina, em Bach, em Mozart, em Allegri, em Buxtehude, etc. alguns dos seus expoentes máximos, cuja memória poderá, porém, gerar a impressão de uma nascente que já secou.

Este encontro continua fecundo. Que o digam nomes como Arvo Pärt, Henrik Odegaard, Penderecki, Messiaen, Gubaidulina, Carrapatoso, etc., expressões contemporâneas da ininterrupta relação entre religião e arte e, em particular, entre o cristianismo e a cultura.

Do mesmo modo, poderíamos olhar para outros vetores de fecundidade deste encontro, como, por exemplo, para a literatura, com Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, ou, para a arquitetura, com Gaudí, ou, para a escultura, em Portugal, com Paulo Neves, ou para... ou para...

As JMJ mostraram ao mundo que a busca do sublime não tem de ser iconoclasta e que a fé não tem de temer a cultura, mas a sublimizá-la, levá-la a recuperar a consciência de que nos deve encaminhar em direção ao sublime que nos sara as feridas que a vida, tantas vezes caótica, nos abre na ‘pele’ da alma.

Ouço, enquanto escrevo, ‘Meditações sobre o banquete de Santa Madalena em Nidaros’, de Henrik Odegaard, compositor que tem dedicado parte significativa da sua obra à música sacra.

A escuta desta obra, em que se sente a densidade do encontro entre o gregoriano e o contemporâneo, serve-me, não apenas para deleite estético, mas, por evocar a figura de Santa Maria Madalena, faz reavivar em mim a memória de uma obra escultórica dedicada a esta santa e que é particularmente grata ao Papa Francisco. Refiro-me a um capitel da Igreja de Santa Madalena (século XI), em Vezelay, cuja foto repousa na secretária do sumo Pontífice.

E o que retrata esta foto, este capitel, que serve de ilustração a este artigo?

Retrata, à esquerda, um enforcado, e à direita, alguém que o transporta aos ombros. Neste densa cena, descreve-se, pela arte, aquela que terá sido mensagem fundamental do Papa Francisco, ao longo destes dias de JMJ.

O enforcado é Judas Iscariotes, arrependido. À direita, retrata-se Jesus que o leva aos ombros.

A misericórdia de Deus é, aqui, densamente representada numa cena que nos comove.

O ‘todos, todos, todos’ que o Papa Francisco pediu aos jovens que repetissem e que continua a ecoar aos nossos ouvidos, encontra suporte na mais longa e profunda história da teologia e da arte cristãs: seremos julgados no encontro com o Amor, diante do qual, como em tempos me recordava uma aluna de escatologia, baixaremos os olhos por nos sentirmos impuros diante do Amor de Deus. Não será Deus a julgar-nos, mas sim nós mesmos a ‘julgarmo-nos’ perante o Amor que Deus é.

Recordo, a este propósito, o que me disse, nos idos de 90, o saudoso sr. D. Manuel de Almeida Trindade, Bispo emérito de Aveiro, numa das várias conversas que tive o privilégio de partilhar com ele, no Seminário de Coimbra, que frequentei até 1996: 'repara, Luís, como a Igreja sempre nos disse que havia santos que podíamos imitar e invocar, mas nunca ousou dizer de ninguém que estaria em Inferno, por acreditar no poder da misericórdia de Deus'.

É desta misericórdia sem limite que deverão falar-nos a arte e a cultura fermentadas de cristianismo, misericórdia que não nos acomoda no que já somos, mas que nos desafia a ‘partirmos apressadamente’. A tentação que sinto, múltiplas vezes, porém, é a de me aquietar na certeza da misericórdia, como se ela não me interpelasse à conversão. O lema das JMJ fala, contudo, de um outro estado e condição perante a vida: Maria não se aquietou, não se acomodou – ‘partiu apressadamente’. Importa recordar que essa certeza da ultimidade da misericórdia foi fonte de uma subtil tentação, em alguns tempos da história da Igreja, como ocorreu com Orígenes (séc. II-III), que defendeu uma apocatástase, uma restauração de tudo e todos sem a participação dos mesmos, como se a misericórdia não envolvesse os sujeitos e se operasse ao arrepio da sua própria vontade e conversão. A misericórdia é encontro, é relação, não imposição. Interpela, faz partir de si, convida a caminhar, a ‘partir apressadamente’.

A arte que fala do sublime convida a transcender os ‘caos’ da vida, não a permanecer neles…

Palavras para mim. Não para outros…

 

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