quarta-feira, julho 19, 2023

Um decide, mas dois assumem as responsabilidades…

Perdoe-me o leitor tão simples parábola, mas o poder simbólico que nela se reserva projeta-me para a escrita.

Esta história que aqui contarei germinou no terreno fértil da convicção de muitos de que certas leis ditas ‘liberais’ são sinais de progresso, sem, porém, se deterem a ler para que abismo os leva tal progredir…

 

Mário e Maria são dois amigos de longa data. Os sonhos de um são o terreno dos sonhos do outro. E as suas histórias parecem confundir-se de tão longamente se fazerem em paralelo.

A vida tem-lhes sorrido e projetam criar uma empresa correspondente ao sonho em que se entretecem as suas vidas.

Dão o salto.

Registam a empresa, partilham quotas em partes iguais, certos de que o sonho tem tudo para ser mais real do que o seu próprio desejo.

O lugar para estabelecerem a empresa dos seus sonhos é um belo espaço que o Mário herdou do pai e que ele considera como o seu porto seguro.

Os primeiros momentos parecem fundir sem fronteira o onírico e o real, tal a certeza e segurança com que se lançam à aventura.

Cedo, porém, o Mário começa a evidenciar sinais de que a partilha das responsabilidades iniciais poderá não se fazer corresponder em iguais benefícios.

O espaço onde estabeleceram a empresa veda-se à entrada da Maria que assiste, ao longo de quase três meses, ao passar do tempo sem que a tal correspondam novidades sobre o seu projeto.

Mas ouve dizer que a sua empresa se expande e progride, sem que, contudo, nada saiba sobre o que está a acontecer. Mário nada lhe conta, de nada lhe apresenta informações…

Contam-lhe que celebrou contratos com esta e aquela multinacional e que o negócio vai de vento em pompa.

Cansada de nada saber, tenta, por todos os meios, que o Mário lhe descreva o que vai fazendo. Mas já nem dele sabe. O espaço da empresa é um lugar inacessível, alegando ele – por aquilo que lhe transmite um advogado a quem ele incumbiu de lhe transmitir, a conta-gotas, que o sonho se está a concretizar - que Maria verá como é bonito aquilo em que o sonho que ambos tinham idealizado se virá a tornar.

Cerca de três meses depois de um prolongado silêncio, Mário reaparece, pedindo a Maria que o apoie, pois o sonho está a um curto passo de se esfumar, pois os contratos entretanto celebrados goraram-se e foram, provavelmente, demasiado ousados para as possibilidades com que partiam.

Maria fica atónita…

‘Como pode ele vir pedir-lhe que assuma responsabilidades, quando, durante quase três meses, de nada lhe deu conta, nada lhe disse, impedindo-a, mesmo, de entrar no espaço da empresa, sob o pretexto de estar a preparar o sonho, mas sabendo ela que se devia a um oculto sentimento de que aquilo era terreno dele e, por isso, não partilhável?!”

Maria está diante de vários cenários…

Mário foi quem, durante aqueles quase três meses, tudo decidiu. Como pode, agora, vir pedir-lhe que assuma ela responsabilidades sobre decisões que foram, exclusivamente, dele? Apetece-lhe impunhar todas as decisões, pois deveriam ter sido tomadas pelos dois. Ou, em alternativa, deixar que assuma ele, sozinho, as consequências do que, exclusivamente, determinou ser o melhor rumo da empresa.

Mas, se ela assumir não reentrar na história, esboroa-se o sonho.

O que fazer?

 

Ocorreu-me esta parábola ao voltar a ouvir alguns, que se autonomeiam como ‘progressistas’, alegarem que a eles se deveram as mais relevantes decisões políticas e sociais do nosso país e do mundo.

Ouvi-los recorda-me como os ditos ‘progressos’ significam, tantas vezes, pelo contrário, um retorcer do Direito, tão explicitamente descrito nesta história.

Vejamos porque o digo…

O nosso mundo alega que a legalização do aborto, primeiro nos países coletivistas, na década de 20 do século XX e, depois, nos países democráticos, a partir de 1973 (com o célebre caso ‘Roe vs Wade’, baseado, como é sabido, num perjúrio reconhecido pela própria Roe pouco tempo depois), foi um progresso.

Esta parábola mostra como essa legalização não só não representa um progresso como se baseia num esmagamento e adulteração do próprio Direito, na medida em que, por um lado, desprotege o mais frágil (o filho, que não se retrata na parábola aqui contada), e, por outro lado, entrega toda a decisão a apenas um, vindo a exigir a outro responsabilidades sobre uma nova realidade jurídica sobre o qual, entretanto, não tivera quaisquer ‘direitos’. Dois geram o filho, mas só um tem ‘poder’ sobre ele, ao longo de dez semanas (cerca de dois meses e meio), alegando-se tratar-se de corpo da mulher. (Como assim, se, então, a partir das dez semanas, o homem também passa a assumir responsabilidades sobre o que era, até aí, mero corpo feminino?).

À luz desta simples parábola, é fácil constatar que todos os homens do mundo que assumem (e bem, obviamente!) os seus filhos, nascidos depois da legalização do aborto nos seus países, o fazem, não por uma obrigação ou imposição, mas por um ato de pura generosidade, pois assumem um dever quando nenhum direito tiveram durante um período que medeia entre terem gerado o filho e voltarem a ter (alegadamente) ‘direitos e deveres’ sobre ele. O Direito que os obriga, depois de os ter privado de decidir e entregando a outrem, exclusivamente, esse poder, é, como será fácil concluir, um direito arbitrário. As obrigações do pai recaíam sobre a realidade jurídica que resultara do ato de gerar. As obrigações que são atribuídas, após as dez semanas de decisão exclusiva da mulher, ao pai que fora excluído da decisão sobre abortar passam a recair sobre uma nova realidade jurídica: aquele que resulta da decisão exclusiva da mulher. Só por pura arbitrariedade se exigem a outrem deveres para com aquele novo bem jurídico.

Biologicamente, o filho (contrariamente ao que defendem os ditos progressistas) é o mesmo; juridicamente, é uma nova realidade: o que resulta da decisão exclusiva de um só - a mulher.

Só se quebrará este arbitrarismo jurídico reconhecendo a ilegitimidade destas leis, reconhecendo o dever de tutelar e proteger a vida intrauterina como uma etapa de um contínuo que é a vida de cada ser humano, e invertendo a lógica de desproteção substituindo-a por uma lógica do cuidado em que cada filho humano gerado é um bem reconhecido por toda a sociedade. Um filho humano deve merecer o enlaçar de toda a sociedade em torno do reconhecimento de que nele se deposita a esperança de um amanhã que ultrapassará o limite esperado do tempo dos seus pais. Só haverá tempo para além do que poderão viver aqueles que poderão ser pais se houver filhos que o prolonguem… Um filho em gestação faz de uma mulher uma mãe e confere-lhe uma condição que deve ser acarinhada, acolhida, cuidada, primeiramente, pelo ‘cúmplice’ e corresponsável por esta nova condição, o pai, mas também por toda a sociedade que deve reconhecer a ousadia de ser pai e mãe e o contributo que tal decisão constitui para si, comunidade que se pretende projetada para o futuro. Sem filhos, o futuro é um lugar sombrio e meramente desejado.

Se as leis que temos são o progresso, então, a ditadura e a arbitrariedade jurídica são o húmus de que se fertiliza o progredir…

Não tenho esse conceito de progresso, antes o entendo como a evolução dentro dos limites da lógica e da humanidade. Não contra elas!

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