(Artigo publicado na Agência Ecclesia - 3 de julho de 2023)
Nas décadas que antecederam o Concílio do Vaticano II, foi-se consolidando uma convicção (que tivera no movimento litúrgico já notória expressão) de que o encontro fecundo entre a Igreja e a sociedade (e o mundo) não poderia fazer-se sem um retorno às fontes. É, aliás, nesse dinamismo que é criada, pela mão de Daniélou, Lubac e Mondésert, em Lyon, em 1943, a célebre coleção ‘Sources Chrétiennes’.
Este modus cogitandi (modo de pensar), dada a sua fecundidade, deve ser retomado, vez após vez, em particular, em tempos de maior dificuldade em discernir onde se encontra o equilíbrio entre a fidelidade ao que deve propor o cristianismo e a fidelidade ao Homem a quem se dirige. Pela sua natureza tensional, este método comporta um equilíbrio entre dois pontos que asseguram que a tensão não é perdida, sendo que a retirada de um dos pontos quebra a mesma tensão, com custos, seja para a fidelidade ao Homem, seja para a fidelidade ao cristianismo.
Vivemos um desses tempos…
Exige-se, por isso, o regresso às fontes, não para nelas permanecer (perder-se-ia a tensão com prejuízo para a fidelidade ao Homem e ao seu tempo, com consequente infidelidade ao próprio cristianismo que se define como religião de salvação da Humanidade…), mas para que o cristianismo seja significativo, permanecendo fiel a si e sendo-o, também, ao Humano para quem é anúncio de salvação.
Regressemos, por isso, às fontes…
Os nossos tempos trazem desafios ‘generosos’ ao cristianismo, perante os quais a tentação da desistência se agiganta. O regresso às fontes permite, porém, constatar que, feitas as devidas adequações, os desafios recuperam encontros já havidos, no tempo das fontes.
Veja-se que o primeiro desafio do próprio cristianismo foi o do confronto entre a sua emergência localizada, precisamente situada na quase incógnita Palestina, e o cosmopolitismo do helenismo com que se encontra, de forma particularmente exigente, São Paulo. Logo nesse encontro se define com precisão a necessidade do estabelecimento de critérios de fidelidade: distinguir o essencial do acidental é um desses critérios estruturantes. Eram acidentais os rituais herdados do judaísmo; era fundamental a afirmação da encarnação. E veja-se como este elemento fundamental (a encarnação) não se afigurava como marca de fácil conformação ao pensamento vigente. Pelo contrário.
Se estudarmos, com detenção, esses primeiros tempos, percebemos que o primeiro grande embate do cristianismo que – defendo-o desde há muito – se retoma, hoje, no transumanismo e na ideologia de género, é, precisamente, o que resulta dessa afirmação: Deus encarnou!
O helenismo trazia consigo um modo de pensar de influência platónica que veio a seduzir as primeiras comunidades cristãs, num amplo movimento designado como gnosticismo. No dizer de Roque Frangiotti, no seu livro ‘história das heresias’, “os gnósticos […] caracterizam-se pelo menosprezo da matéria, da carne e superestimam a alma-espírito. Para eles, a matéria é má em si mesma, incapaz e desnecessária para a salvação. Mais ainda: a matéria é radicalmente oposta ao espírito. São realidades contraditórias. Por isso, Deus, o espírito perfeitíssimo, transcendente, imutável e impassível, não pode, por nenhuma razão, assumir qualquer parcela de matéria.” (Roque Frangiotti, p. 27)
Não será difícil constatar que com esta mentalidade se confrontou o próprio S. João que, nas suas cartas, escritas em finais do primeiro século ou início do segundo, alerta para a centralidade da encarnação.
Afirma, em 1jo 1,1 (sigo a recente tradução que vem sendo disponibilizada pela Conferência Episcopal): “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós.”
Assim também em 1jo 4,1-31: “Amados meus, não acrediteis em todos os espíritos, mas examinai-os para ver se são de Deus, porque no mundo surgiram muitos falsos profetas. É nisto que reconhecereis o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa Jesus Cristo, que veio na carne, é de Deus; e todo o espírito que não confessa Jesus não é de Deus. Esse é o espírito do anticristo, aquele que ouvistes dizer que estava para vir; pois bem, agora já está no mundo.
E, ainda, em 2jo7: “É que surgiram no mundo muitos impostores, que não confessam que Jesus Cristo veio na carne. É esse o impostor e o anticristo!”
A uma leitura menos fina, poderá parecer que o gnosticismo estará longe do que hoje são os desafios do cristianismo. Na minha perspetiva, esta conclusão será precipitada, pois uma das consequências evidentes do gnosticismo foi a relativização da corporeidade, dispensando, por isso, o corpo da sua natureza de entidade intrinsecamente moralizável. O corpo, para o gnosticismo, não é parte da condição humana, escapa-se-lhe e é, por isso, exterior à própria economia salvífica. Só o espiritual se salvará. E, logo, o corpo escapa à moral e à ética, podendo-se fazer ‘com’ e ‘nele’ o que bem se entende. O Homem que somos, na mentalidade de matriz gnóstica, nada tem a ver com o corpo, que lhe é exterior e alheio.
Veja-se como não estamos longe de uma matriz vigente que exclui o corpo do ser que somos, transumanizando-o e reduzindo o Homem ao pensamento que nele apenas ‘reside’. (Como se não pensássemos tudo o que vivemos, isto é, como se não fosse o nosso pensamento a repercussão do que vivemos enquanto corpo que somos!... Pelo contrário, o que pensamos é, na linha de Merleau-Ponty, “corpo vivido”….).
E como respondeu, no tempo das fontes, o cristianismo?
Reconheceu, com Santo Ireneu, no seu Adversus Hereses (livro IV, 11,2) que ‘Deus faz, o homem é feito’, sublinhando a progressividade e carácter desenvolvimental do ser humano, condição inerente à natureza de ser corpóreo, sublinhando que “a glória de Deus é o homem vivente” (Livro IV, 20,7 – sigo tradução não editada do saudoso Pe. Doutor Franclim Pacheco). Não, parte do Homem, mas, sim, a totalidade do Homem.
Uma análise detida das implicações desta ideologia diante da qual se espera o anúncio da encarnação, por parte do cristianismo, permitir-nos-á verificar que, sem a afirmação de que o corpo faz transparecer a pessoa que somos, estaremos diante de uma antropologia solipsista, em que o que aparece, diante dos outros, é opaco e indecifrável. É, por isso, necessário retomar a centralidade do princípio ‘encarnação’ e reafirmar, aos nossos tempos, que quem somos se vislumbra, ainda que provisoriamente e sempre como mistério a descobrir, mais e mais, no corpo que somos.
O regresso às fontes permite-nos recuperar a esperança de que estes não são os últimos tempos e de que muito se espera do cristianismo: que salve o Homem de se fechar em si mesmo, tentação tão densamente descrita no relato do paraíso. O Adão que quer fechar-se e ser autossuficiente continua, dia após dia, a ouvir os passos, no jardim, e a esconder-se por vergonha… Ou talvez já nem vergonha tenha, mas continuará, certamente, a sentir o som dos passos. E é preciso não ter medo de percorrer o caminho do Éden e dar a ouvir os passos que nos dizem que estamos nus.