(Este ensaio é um ponto de
partida, mais do que um ponto de chegada. Peço, a quem o ler, que tenha a
delicadeza de o sorver como quem se deixa levar pela mão, sem prejuízos nem
preconceitos… Apenas indo, indo…)
Tenho mudado. Muito! Basta-me a
constatação de que, hoje, tenho 50 anos que não foram a minha idade de sempre
(pois!) para me dar conta de que mudar é uma inevitabilidade, enquanto formos
presença na História.
Sim, de facto, mudar é inevitável.
Restará, por isso, diante deste
facto incontornável e observável, concluir que o humano é o mudar até se
consumir, em definitivo?
Heráclito[1] de Éfeso
parecia responder que ‘sim’ a tal interrogação que, não a tendo feito, se supõe
nas sentenças que dele nos chegaram, em particular, pela mão de Diógenes
Laércio, mas também em comentários de Platão e Aristóteles: ‘tudo muda’.
(Copleston aventa a hipótese de esta sentença não lhe pertencer, mas a história
guardou-a como da sua autoria.)
Arrisco dizer que, na resposta
a tal interrogação, se encontrará o segredo para superar o paradigma prevalecente
neste tempo definido como ‘pós-moderno’ (Lyotard), hipermoderno (Lipovetsky), ‘líquido’
ou ‘pontilhista’ (Zigmunt Bauman), ‘agorista’
e ‘apressado’ (Stephen Bertman), e entregue à ‘tirania do momento’ (Thomas
Hylland Eriksen). Todas estas tipificações confluem para a ideia de que vivemos
tempos massacrados pelo complexo da impermanência, pelo desejo ansioso e
descontrolado de mudar, mudar, mudar, na certeza, enfim, de que se não
mudarmos, não seremos!
Há algo de incontrolado neste
sentimento profundo, coletivamente absorvido e entranhado, criando uma vertigem
perante a qual o sujeito, individualmente considerado, se sente impotente, se é
que ousa pensar que sente.
Soma-se a este entranhado
sentimento, uma convicção inquestionada: não se fez, afinal, a história da humanidade,
de grandes mudanças? Não estará, por isso, a escapar-me a mudança em que
poderia sulcar o meu nome como protagonista?
E a vertigem avoluma-se.
Perante ela, a pergunta que
parece impor-se é aparentemente óbvia: o que cabe mudar a seguir?
Um olhar atento e sereno à
história da humanidade verificará, porém, um outro retrato, como se de um
palimpsesto se tratasse[2]. A
verdadeira história da humanidade é a que se faz e se fez da capacidade de
conservar o que, até aí, era efémero. Veja-se como os grandes saltos da
humanidade se deram quando se passou a ‘conservar’ na pedra o que não passava
de imagens na cabeça (as gravuras rupestres); ou quando se passou a conservar,
através da escrita, o que não passava de oralidade; quando se passou a poder
conservar em papiro, em pergaminho, em papel, em qualquer outro suporte, o que
era, por definição, efémero. Veja-se como se deram os maiores saltos quando se
pôde conservar a energia, quando se pôde conservar os alimentos, quando se pôde
conservar o que víamos e ouvíamos… Conservar foi a causa dos grandes saltos da humanidade.
Pois mudar era o evidente.
Irene Vallejo, num livro
sublime de título ‘o infinito num junco’, constata algo que cabe aqui somar ao
que acabo de dizer: o que demora a estabilizar-se e fixar-se é mais durável do
que o que chega e prontamente se instala. Diante desta constatação, ela conclui
que é mais provável haver livros, dentro de cem anos, do que telemóveis. Porque
o livro levou o tempo da ‘demora’ a permanecer… Não sei se o vaticínio de
Vallejo se confirmará, pois o meu tempo de permanência foi mais veloz do que o
do livro e não permanecerei, por isso, tempo suficiente para o verificar, mas antecipo
verdade na sua conclusão.
Diante disto, ouso regressar a
Heráclito e dizer-lhe que o humano não se define pela mudança. As rochas mudam,
as plantas mudam, os animais também mudam. O ser humano, enquanto ‘cadáver
adiado’, no dizer de Pessoa, também muda. O que define o humano não é isso.
Antes, é a capacidade de se interrogar e responder à pergunta decisiva: o que
importa guardar, conservar, perante a inevitabilidade da mudança?
Devia ser a pergunta do
cristianismo, hoje, perante os desafios da mudança. Desafios da mudança que são,
afinal, os de sempre, porque mudar opera-se sem necessidade da ação humana. Mudar
é o facto; o que guardar é que cabe ao humano perceber. O que deve permanecer
perante a inevitabilidade da mudança? Do resto se sabe que se sumirá no efémero…
[1] Sigo a grafia de Copleston, na sua única e insuperável História da Filosofia, vol. I.
[2] Um palimpsesto é um registo que se desconhecia existir
sob um escrito visível feito num pergaminho. Dada a necessidade de reutilizar
os pergaminhos, era frequente, na Idade Média, raspar-se um texto original e
escrever por cima…