terça-feira, julho 11, 2023

Cristianismo e mudança - O elogio da permanência

 


(Este ensaio é um ponto de partida, mais do que um ponto de chegada. Peço, a quem o ler, que tenha a delicadeza de o sorver como quem se deixa levar pela mão, sem prejuízos nem preconceitos… Apenas indo, indo…)

 

Tenho mudado. Muito! Basta-me a constatação de que, hoje, tenho 50 anos que não foram a minha idade de sempre (pois!) para me dar conta de que mudar é uma inevitabilidade, enquanto formos presença na História.

Sim, de facto, mudar é inevitável.

Restará, por isso, diante deste facto incontornável e observável, concluir que o humano é o mudar até se consumir, em definitivo?

Heráclito[1] de Éfeso parecia responder que ‘sim’ a tal interrogação que, não a tendo feito, se supõe nas sentenças que dele nos chegaram, em particular, pela mão de Diógenes Laércio, mas também em comentários de Platão e Aristóteles: ‘tudo muda’. (Copleston aventa a hipótese de esta sentença não lhe pertencer, mas a história guardou-a como da sua autoria.)

Arrisco dizer que, na resposta a tal interrogação, se encontrará o segredo para superar o paradigma prevalecente neste tempo definido como ‘pós-moderno’ (Lyotard), hipermoderno (Lipovetsky), ‘líquido’ ou ‘pontilhista’ (Zigmunt Bauman),agorista’ e ‘apressado’ (Stephen Bertman), e entregue à ‘tirania do momento’ (Thomas Hylland Eriksen). Todas estas tipificações confluem para a ideia de que vivemos tempos massacrados pelo complexo da impermanência, pelo desejo ansioso e descontrolado de mudar, mudar, mudar, na certeza, enfim, de que se não mudarmos, não seremos!

Há algo de incontrolado neste sentimento profundo, coletivamente absorvido e entranhado, criando uma vertigem perante a qual o sujeito, individualmente considerado, se sente impotente, se é que ousa pensar que sente.

Soma-se a este entranhado sentimento, uma convicção inquestionada: não se fez, afinal, a história da humanidade, de grandes mudanças? Não estará, por isso, a escapar-me a mudança em que poderia sulcar o meu nome como protagonista?

E a vertigem avoluma-se.

Perante ela, a pergunta que parece impor-se é aparentemente óbvia: o que cabe mudar a seguir?

Um olhar atento e sereno à história da humanidade verificará, porém, um outro retrato, como se de um palimpsesto se tratasse[2]. A verdadeira história da humanidade é a que se faz e se fez da capacidade de conservar o que, até aí, era efémero. Veja-se como os grandes saltos da humanidade se deram quando se passou a ‘conservar’ na pedra o que não passava de imagens na cabeça (as gravuras rupestres); ou quando se passou a conservar, através da escrita, o que não passava de oralidade; quando se passou a poder conservar em papiro, em pergaminho, em papel, em qualquer outro suporte, o que era, por definição, efémero. Veja-se como se deram os maiores saltos quando se pôde conservar a energia, quando se pôde conservar os alimentos, quando se pôde conservar o que víamos e ouvíamos… Conservar foi a causa dos grandes saltos da humanidade. Pois mudar era o evidente.

Irene Vallejo, num livro sublime de título ‘o infinito num junco’, constata algo que cabe aqui somar ao que acabo de dizer: o que demora a estabilizar-se e fixar-se é mais durável do que o que chega e prontamente se instala. Diante desta constatação, ela conclui que é mais provável haver livros, dentro de cem anos, do que telemóveis. Porque o livro levou o tempo da ‘demora’ a permanecer… Não sei se o vaticínio de Vallejo se confirmará, pois o meu tempo de permanência foi mais veloz do que o do livro e não permanecerei, por isso, tempo suficiente para o verificar, mas antecipo verdade na sua conclusão.

Diante disto, ouso regressar a Heráclito e dizer-lhe que o humano não se define pela mudança. As rochas mudam, as plantas mudam, os animais também mudam. O ser humano, enquanto ‘cadáver adiado’, no dizer de Pessoa, também muda. O que define o humano não é isso. Antes, é a capacidade de se interrogar e responder à pergunta decisiva: o que importa guardar, conservar, perante a inevitabilidade da mudança?

Devia ser a pergunta do cristianismo, hoje, perante os desafios da mudança. Desafios da mudança que são, afinal, os de sempre, porque mudar opera-se sem necessidade da ação humana. Mudar é o facto; o que guardar é que cabe ao humano perceber. O que deve permanecer perante a inevitabilidade da mudança? Do resto se sabe que se sumirá no efémero…



[1] Sigo a grafia de Copleston, na sua única e insuperável História da Filosofia, vol. I.

[2] Um palimpsesto é um registo que se desconhecia existir sob um escrito visível feito num pergaminho. Dada a necessidade de reutilizar os pergaminhos, era frequente, na Idade Média, raspar-se um texto original e escrever por cima…

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