quarta-feira, julho 12, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Um Deus assim alimenta a esperança e o sonho

   

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

Pela mão de Ulisses, no regresso a casa depois da guerra de Troia, temo-nos mantido movidos pelo sonho do Éden. Desde o início, temos feito as pontes entre as duas mais profundas matrizes do ocidente: a influência greco-romana e a raiz judaico-cristã. Como diz George Steiner, no seu incontornável ensaio ‘A ideia de Europa’, na ‘nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém’ está um dos cinco axiomas para definir a Europa (p. 44 – edição de 2007 de Gradiva). Atenas e Jerusalém são, aqui, cidades-símbolo desta dupla fonte.

Fiéis a este nosso lento caminhar, olhemos, agora, em espelho, de que nos falam a ‘teologia’ de Atenas e Jerusalém.

A ‘teologia’ grega (é muito impreciso falar-se de uma teologia, neste contexto. Utilizo, aqui, o termo no sentido da visão sobre ‘o mundo divino’ e não considerando-a como uma detida e argumentativa reflexão…) não poderá alhear-se do seu multitudinário panteão, encimado pela trilogia de Zeus, Hera e Atena – replicados no Júpiter, Juno e Minerva romanos. Todos os deuses clássicos têm nascimento e fragilidades, revelam-se ciumentos e agressivos nas seus reações, ao ponto de Evémero, um siciliano dos séculos IV e III a.C. ter sustentado, como nos recorda Pierre Grimal, no seu dicionário da mitologia grega e romana (sigo, aqui, a edição da editora Antígona, edição de 2020), ‘que os deuses [gregos] são simplesmente homens a quem, pelos seus méritos, pelos serviços que prestaram aos seus semelhantes, foram prestadas honras divinas.’ (introdução, p. XLII)

E uma leitura atenta dos mitos gregos tornará fácil a adesão a uma tal abordagem, que a história consagrou como ‘evemerismo’, decorrendo do nome do seu proponente.

Zeus, o ‘mais importante deus do Panteão helénico’ (p. 468), é filho do titã Crono e de Reia. Sem me alongar na descrição dos mitos que se conservam sobre o deus maior da mitologia grega, sublinho um elemento que passará despercebido ao olhar distraído. Crono, o pai de Zeus, é o titã do tempo. Como nos recordam as mitologias a ele associadas, devora os seus filhos (tenho-o recordado, repetidamente: os gregos lembravam que o tempo (cronos) devora os seus filhos. Nisto, havia muita profundidade de leitura: o tempo devora-nos, de facto!). Para sobreviver, Zeus tem de ser escondido do pai, para que não o devore.

Tudo é trágico e muito comezinho. Tudo é humano, demasiado humano, para aludir a expressão de Nietzsche, esse pensador que nos pretendeu apresentar o cristianismo como decadente e a mitologia grega como o modelo.

Mas onde ficaria o sonho, onde ficaria a fonte da esperança se dos deuses nada mais poderia esperar-se do que encontramos, já, entre os humanos?

Jamais, de facto, poderia encontrar-se entre estes deuses uma qualquer sombra sequer de que o perdão pudesse ser a verdadeira fonte de novas relações entre os homens.

Terá de se esperar, de facto, pelo cristianismo, para se ousar afirmar que o amor não só possa vir a possuir-se como, afinal, que ele é, efetivamente, a origem última de tudo.

Quão longe está destas invejas e fúrias divinas a afirmação joanina de que Deus possa não só ‘ter’ amor, mas ‘ser’, Ele mesmo, Amor!

Tudo, na teologia judaico-cristã aponta para redenção. Tudo parece apontar, na mitologia greco-romana, para a tragédia.

Bem certo que a dimensão trágica nos desperta de toda a tentação de ilusão, mas teria de redundar numa insuperável desilusão?

Tal é a distância entre o desejo humano e a resposta de que nos fala o cristianismo que dificilmente se lhe poderá atribuir a condição de projeção, como pretenderam alguns descrentes do século XIX, com Feuerbach à cabeça.

Uma projeção entregaria o poder aos fortes.

A afirmação do lugar do amor e do perdão partilha o poder entre todos, tornando-nos credores e devedores uns dos outros, simultânea e incessantemente.

O evemerismo é insustentável quando aplicado ao cristianismo, por muito que o pretendam os Feuerbach de outrora e de hoje.

Bem recorda Berdiáiev, no seu ‘contra a indignidade dos cristãos’, que a verdadeira crítica às insuficiências dos cristãos não tem de procurar-se fora do próprio cristianismo, pois nele estão os critérios mais do que necessários para um exigente juízo. Como ele recorda, ‘a rejeição do cristianismo baseado na imperfeição e nos defeitos dos cristãos é, em essência, uma ignorância e uma incompreensão do pecado original. Para os que são conscientes da queda, está claro que a indignidade dos cristãos não desmente a dignidade do cristianismo, mas antes a confirma. O cristianismo é a religião da redenção e da salvação; anuncia que o mundo vive no mal e que o homem é pecador. Outras doutrinas pensam que se pode alcançar a vida perfeita sem ter vencido o mal de forma efetiva. Mas o cristianismo não pensa assim, antes exige uma vitória real, espiritual sobre o mal, um renascimento espiritual.’ (p. 155-156. Edição de 2019, das ediciones Sígueme)

Como poderia esperar-se a redenção se em Deus se n’Ele se projetassem os comportamentos humanos? Donde nos viria a esperança de deuses em tudo iguais aos humanos, igualmente egoístas e irascíveis?

Ah, quão oportunas são, nestes tempos cinzentos e nebulosos, as palavras de Berdiáiev que interpelam a que se regresse à fonte de que pode esperar-se a renovação, em tempos lamacentos e em que a indignidade dos que se dizem cristãos parece projetar-se sobre a própria dignidade do cristianismo!

O nosso sonho é o do Éden, não como um passado a que queremos regressar, mas como um horizonte para que queremos caminhar: o da correspondência ao Amor que Deus é!

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