Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’
(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)
Troia
e Ítaca… Os dois polos de uma tensão terrena. Uma tensão sempre resolvida, ao
longo da história, com a derrota de uns e a vitória de outros. Assim foi… Assim
parece que será, sempre.
Mas
assim tem de ser para sempre?
A
viagem de Ulisses prolonga-se, ficcionadamente, na mente dos nossos leitores,
até um momento da história humana em que a interrogação foi enfrentada, com
detenção: 24 de agosto de 410 d.C..
Roma,
a cidade eterna, é saqueada. (66 anos depois, será, mesmo, tomada…)
Alarico,
o chefe dos visigodos, toma de assalto Roma e provoca um abalo, que volvidos
mais de 1600 anos, poderemos equiparar (para que a comparação crie o modelo de
constaste, diante do qual teremos de acrescentar densidade…) ao abalo provocado
pelo 11 de setembro de 2001.
Como
é possível que Roma tenha sido saqueada? Abandonaram-na os deuses?
(Remeto
para a leitura do inteligente livro de Miguel Morgado, ‘Guerra, império e
democracia’ [Pub. D. Quixote, 2023] a recolha dos detalhes e do alcance deste
evento…)
Perante
este evento demolidor, prontamente é recuperada a tese de que aos cristãos se
deve esta derrota, pois o seu descomprometimento com a ‘política’ romana e a
sua indisponibilidade para a divinizar pareceram suavizar o império e favorecer
o abandono de Roma por parte dos deuses.
Esta
acusação não é de hoje (o hoje de 410 d.C.), mas foi revitalizada com este
susto.
A
circunstância foi o pretexto para a escrita de uma das mais relevantes obras de
toda a história da literatura ocidental (disponibilizada, em pdf, aos leitores
portugueses em edição rigorosa repetidamente publicada pela Fundação Calouste
Gulbenkian: https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-de-deus-i/), por um genial cristão que
bem conhecia os meandros do paganismo em que ele mesmo se movera antes de
conhecer o cristianismo. ‘A cidade de Deus’, da pena de Santo Agostinho, uma
extensa obra emerge como resposta a um duplo desafio, recordado por Miguel
Morgado, na obra acima referida: «[…] agora, que Roma mostrava as suas
terríveis vulnerabilidades perante bandos de bárbaros, a perplexidade era
grande. Roma não tinha qualquer missão divina. Caso contrário, Deus não a teria
deixado cair. Ou então, blasfémia das blasfémias, o Deus que substituíra os
deuses afinal não o era. Agostinho teve de desarmar ambos os lados, tantos os
dependentes da tese de que Roma era o agente político imprescindível da
redenção do mundo como os que viam na queda de Roma cristianizada a
demonstração de que o Deus dos cristãos era um ídolo de barro incapaz de
proteger a sua capital.» (pp. 211-212)
Uma
leitura atenta desta síntese perceberá as questões revisitadas, vez após vez,
na história destes dois mil anos de cristianismo: a tentação da absolutização
de um modelo político e a sedução da fuga do mundo.
Agostinho
encontrou uma via genial, sistematizando a leitura fina que o cristianismo
trouxera e de que a célebre ‘carta a Diogneto’ era um exemplo a recordar: «Habitando
cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os
usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da
vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu
regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos:
participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a
terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.»
(https://www.snpcultura.org/pedras_angulares_a_diogneto.html)
Na síntese de Agostinho,
recorda-se que «[…] estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e
mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas.»
(A cidade de Deus, volume I, livro I, capítulo XXXV). No capítulo IV do livro
XIV, Santo Agostinho define a natureza das duas cidades: «existem duas cidades
diferentes e contrárias- porque uns vivem em conformidade com a carne e outros
em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se pode dizer que uns
vivem em conformidade com o homem, e outros em conformidade com Deus.» E, mais
adiante, no capítulo XXVIII do livro XIV (II volume da edição da FCG), precisa:
«Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus - a
terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si - a celeste.»
Recuperando
o paralelismo que temos vindo a construir, ao longo desta rubrica ‘Regresso a
Ítaca no sonho do Éden’, poderemos constatar que, se Ulisses sossegará quando
chegar a Ítaca, uma cidade geograficamente localizável, no caso do cristão,
essa ‘tensão’ nunca será definitivamente resolvida, neste tempo e nesta
‘geografia’. E essa é a genialidade de Santo Agostinho: assegurar-nos a certeza
de que as duas cidades convivem, coexistem, na história, faz-nos sempre
cidadãos comprometidos, mas como peregrinos (para utilizar a terminologia da
carta a Diogneto). É, por isso, infundada a acusação dos pagãos de que o (suposto)
descomprometimento político dos cristãos tenha sido o responsável pela queda de
Roma, mas sim a coincidência de Roma com a cidade terrestre, a cidade do ‘amor
a si próprio’. A causa da queda de Roma está na sua própria condição decadente
e não no amor ao outro, proposto pelo cristianismo. A não divinização da cidade
terrena ‘Roma’ não é, por isso, expressão de uma falta de compromisso político,
pois, como defende Santo Agostinho, ‘o bom cristão é pura e simplesmente o
melhor dos cidadãos’ (Miguel Morgado, p. 212). É, antes, a assunção de que a
cidade terrena não é, ainda, a cidade definitiva. Na cidade terrena transparece
(mesmo que sob muita opacidade) a cidade de Deus se nela se praticar a justiça
e o amor ao outro.
A
queda de Roma (e as suas perplexidades) continua a latejar no coração do mundo
e dos cristãos. A sedução e a tentação de cair para a divinização das novas
‘Romas’ ou para a fuga do mundo por nada nele haver da cidade de Deus continuam
vivas como no tempo do bispo de Hipona. E então, como hoje, a consciência de
que ser cristão é viver essa tensão de se ser cidadão de duas cidades emergia
luminosa e esclarecida perante todos os saques e acusações dos pagãos…