quarta-feira, setembro 06, 2023

In Memoriam | Doutor Pinho Ferreira, um gigante com coração simples

 

Fui aluno do Doutor Pinho Ferreira em dois momentos distintos do meu percurso académico: em Coimbra, no ISET, instituto que funcionava no Seminário da Sagrada Família, entre 1992 e 1996, e no Porto, na Faculdade de Teologia, em 1997-98. Desde a primeira hora, suscitou-me espanto e assombro o contraste entre o distinto professor, que suscitava respeito e um quase temor (era um gigante diante de todos nós…), e o verdadeiro espírito poético de um contemplativo que constatávamos em cada uma das suas aulas. Recordo-me de que, em Coimbra, as aulas começavam sempre com uma improvisada ode à tranquilidade do Seminário, à pureza do ambiente, à melodia natural que se ouvia, em contraste com o bulício da cidade. As suas palavras leves e de grande lirismo (quando não mesmo de humor muito fino – ‘canónico!’ dizíamos) contrastavam com o aspeto aparentemente pesado que o primeiro olhar captava. Fazia-nos sentirmo-nos como que regressados ao Éden…

Quem o via e se fixava no que via errava na avaliação do homem que aquele corpulento andar parecia acompanhar. A lentidão do seu andar não era a do peso de quem não quer ir longe ou de quem não consegue andar, mas a da ponderação de quem sabe que é perdido o andar que não se rege pela verdade. Os seus passos, comedidos e compassados, expressavam o carácter de um professor que nunca deixava nenhum aluno sem resposta, sempre num profundo respeito pela pessoa aprendente. Muito guardei para mim, para o professor que hoje sou, do que observei no Doutor Pinho. Nunca o vi dizer a um aluno que a resposta estava errada: media, com pedagogia, as palavras, de modo a levar o aluno a concluir que errara. Tratava-nos sempre na terceira pessoa. Interpreto-o (porque assim o senti, então!) como franco sinal de respeito por nós. Respeito que é particularmente ilustrado no que sempre ocorria numa determinada aula de direito sacramental em que se discutiriam os impedimentos dirimentes e não dirimentes e em que se definiriam os conceitos de matrimónio ‘rato e consumado’, ‘rato e não consumado’. Em aula determinada desse tema, o Doutor Pinho falaria do ato próprio (a relação sexual) pelo qual se ‘consumaria’ o sacramento (Ouvi, um dia, num casamento, que íamos assistir à consumação do matrimónio. Felizmente, era apenas erro em matérias de direito sacramental por parte do presidente da celebração e não se confirmou o que as palavras faziam prever…). Porque essa aula poderia ferir suscetibilidades, autorizava a ausência a quem pudesse sentir-se perturbado pela descrição (não tenho memória de ninguém faltar, sendo que estou certo de que correspondia a uma estratégia pedagógica feita de um humor inteligente que podemos confirmar todos os que com ele privámos).

Poderá pensar quem não pôde ter a honra de contar com o doutor Pinho por professor que, por tratar de matérias do direito, as abordagens eram fechadas e os assuntos encerrados. Recordo-me de que nos ‘levava pela mão’, através de interrogações, a abrir linhas de reflexão que sempre baseava em argumentos lógicos e coerentes. Assim aconteceu, por exemplo, ao abordar, na mesma cadeira de direito sacramental, a problemática do trabalho pastoral com quem se encontra unido sem ser pelo vínculo do sacramento celebrado em contexto eclesial. Não dava uma resposta. Suscitava uma interrogação: «deverá ser a mesma a abordagem perante quem está apenas ‘junto’ (as ‘uniões de facto’ são posteriores) de quem decidiu casar-se pelo civil?»

A interrogação ficava, antecipando, percebemos hoje, em algumas décadas, as mesmas interrogações da ‘Amoris Laetitia’, sempre sublinhando que o direito é dinâmico e existe para que, respeitando a verdade, se possa criar as condições para que o caminho (que envolve a pessoa toda e toda a pessoa) da salvação seja percorrido.

O Doutor Pinho era, a um primeiro olhar, tímido… possuía a timidez própria dos grandes sábios, sempre preocupados em que a sua participação no mundo seja serviço e respeito pelo outro. O outro era lugar de liberdade, a liberdade que, como homem do Direito, tão bem sabia ser a condição para a realização do humano, mas também marcada pela possibilidade da sua deterioração. Esse foi, provavelmente, um dos seus maiores legados: dizer-nos que a dimensão jurídica da Igreja não é apêndice ou acessória, mas a garantia de que, por ela, o caminho pode ser percorrido por todos, porque todos podem e a todos deve ser garantida condição para a procura da verdade. De outro modo, ficaria entregue à discricionariedade dos poderosos ou dos mais demagogos a reserva dessa procura da Verdade, do próprio Jesus Cristo.

Obrigado, Doutor Pinho. Deus, o único Justo, o guarde junto de Si.

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