quarta-feira, maio 15, 2024

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Do mito de Psiquê à redenção cristã do rosto

 

Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'


‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ leva-nos a um mito que tem merecido numerosas representações artísticas (da ópera, com Lully, à escultura, com a célebre representação feita por António Canova, passando pela pintura por inúmeros estudos do âmbito da psicologia, que visam explorar a sua densidade e dela retirar leituras sobre a condição humana): a história de Psiquê e o Amor (Eros).

Este é um conto que nos chegou pela mão de Apuleio, autor latino do século II d.C., cujas Metamorfoses foram a única obra da literatura latina do género romanesco a chegar-nos integralmente preservada. (Os leitores interessados poderão encontrá-la aqui: https://www.gutenberg.org/ebooks/1666). O nosso guia será, ao longo deste ensaio, a versão do mito recolhida por Pierre Grimal, no seu dicionário da mitologia grega e romana[1].

Psiquê (a tradução portuguesa deste dicionário grafa a palavra sem o acento ‘pique’, mas parece-nos mais adequado manter a acentuação original de ‘psiquê’) é uma de três filhas de um rei, todas belas, mas especialmente Psiquê. De tão bela, não consegue encontrar marido, pois todos os pretendentes temem o fulgor daquela beleza.

Como tantas vezes ocorre nos mitos gregos já anteriormente analisados, os pais decidem socorrer-se dos oráculos, que lhes comunicam que deverão prepará-la para as núpcias, e levá-la ao cimo de uma montanha que lhes é indicada, onde a espera um monstro horrível que a tomará como esposa.

Os pais, ainda que temerosos, assim como Psiquê, cumprem o definido pelo oráculo.

Já na montanha, Psiquê é erguida pelos ventos que a transportam para o fundo de um vale de ervas suaves e macias, onde, após intensa emoção e felicidade, Psiquê adormece, acordando diante de um palácio ricamente decorado. Aí viverá um dia particularmente feliz até que, ao final da jornada, prestes a adormecer, sente a presença do seu prometido que a proíbe de o ver, condição para que ele permaneça junto de si. Se o vir, desaparecerá.

Como é fácil concluir, tal acabará por ocorrer, quando, ao regressar da família, que visitara por sentir saudades, é instada por esta a tentar descobrir como é o seu amado.

Sentindo-o adormecido, acende uma vela com que ilumina o seu rosto, descobrindo-o jovem e belo. Uma gota de cera quente acorda-o, porém, seguindo-se o seu imediato desaparecimento (definitivo).

Só, Psiquê erra pelo mundo e pelo submundo, sempre perseguida por Afrodite que inveja a sua beleza. Do submundo, trará um frasco de água recolhida da fonte da juventude que lhe fora dada por Perséfone, com a condição de não o abrir. No regresso, Psiquê parte o frasco, adormecendo profundamente. É nesta condição que a encontra Eros que pede a Zeus que os liberte das maldições que impendem sobre ambos, isto é a de não poder vê-lo e a de ele não a poder desposar.

Libertos das maldições, podem, finalmente, casar-se.

Este mito é denso de significados, mas para o nosso labor de estabelecimento de pontes entre a cultura clássica e a cristã, importa-nos reter como é trágica na visão clássica a relação entre o amor e a condição humana, simbolizada na impossibilidade de se ver o rosto, o lugar do enrugar do tempo sobre a pele.

Numa primeira leitura, é possível perceber alguma proximidade com a recusa de ver a Deus, face a face. Há, porém, que constatar que essa recusa é temporária, pois toda a história da salvação assenta na esperança do encontro definitivo que nos há de permitir ver a Deus tal como ele é.

Há, por isso, aqui, um coincidir para prontamente se distinguir. A cultura cristã redime o rosto, pois são inúmeros os momentos em que é o encontro, o ver, o olhar que abre ao amor…

Estar longe da face é, inclusive, sinal de maldição (por oposição à maldição de ver, implícita no mito de ‘eros e psiquê’): assim acontece com Caim que, ‘longe da face de Deus’, tem de errar… (Cfr. Gn 4,14).

Confirmando esta constatação, por oposição, ‘ver’ é fundamental e o lugar em que o amor se expressa (e não se some ou abandona, como no mito): os pastores querem ver o Menino (Lc 2,15), João Batista anuncia o Cordeiro de Deus, ao vê-lo (Jo 1,29), o leproso cai por terra ao ver Jesus (Lc 5,12), o Pai de misericórdia comove-se ao ver, ao longe, o filho pródigo (Lc 15,20), Zaqueu esquiva-se à multidão para ver Jesus (Lc 19,4), o centurião desperta para a fé ao ver o modo como Jesus morre (Lc 23,47). ‘Ver’, ‘ver’, ‘ver’…

O rosto, na cultura judaico-cristã, não é o lugar da perdição e da maldição, mas o primeiro despertador do amor. Não é, por isso, fortuito que uma das mais fecundas ‘éticas’ – a que tem em E. Levinas[2], um judeu, o seu principal pensador - contemporâneas funde no rosto o seu principal axioma: o de que o rosto é expressão da indigência que nos comove e insta a partir ao encontro do outro.

‘Psiquê e Eros’ é um mito perturbador, inquietante (não restará ao ser humano senão a trágica condição de nunca poder amar a beleza?), mas transfigurável pela visão cristã redentora do rosto, do olhar, do ver. A esperança cristã funda-se, aliás, na promessa de que veremos a Deus tal como Ele é…

Ver e amar não se excluem, na visão cristã: germinam um no outro!



[1] Pierre Grimal, Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020.

[2] Entre as suas obras, merecem especial destaque ‘Totalidade e Infinito’, ‘Ética e Infinito’, ‘Entre nós: ensaios sobre a alteridade’.

terça-feira, maio 07, 2024

Sabes, leitor... | 5 | Marca de água do livro de Viktor Frankl, 'Dizer sim à vida apesar de tudo'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
O autor e a obra
Viktor Frankl, Dizer sim à vida apesar de tudo, Lisboa, Editora Pergaminho, 2021

‘Dizer sim à vida apesar de tudo’ é o título de um livro que reúne três conferências proferidas por Viktor Frankl [1902-1994], em março de 1946, poucos meses depois da sua libertação de quatro sucessivos campos de concentração nazis. Fora libertado em março de 1945. Estas conferências, feitas numa universidade operária, em Viena, sua cidade natal, são proferidas no rescaldo de uma densa e dramática experiência a que se somou a notícia de que a guerra o deixara só no mundo, pois perdera a mulher, a mãe e o irmão, vítimas do genocídio dos judeus, perpetrado pelos nazis. As circunstâncias densificam a importância deste livro.

Ler este livro humaniza quem o lê, na medida em que à autoridade científica resultante de se tratar de um autor a que muitos reconhecem a autoria da chamada ‘terceira escola de psicoterapia vienense’ (tendo em conta que as duas outras eram a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Adler) se soma a autoridade de quem viveu experiências em que a sua visão da existência se confirmou como oportuna e útil enquanto ‘terapia em ação’.

Viktor Frankl é um autor de leitura obrigatória para quem não desistiu de reconhecer que têm sentido a existência humana e a ação moral humanizante.

O título da edição portuguesa, que retoma o que, originalmente, tinha escolhido o próprio Frankl, mas que muitas edições deixaram de adotar, reproduz o verso de uma canção de esperança, cantada pelos prisioneiros de Buchenwald, e que, completo, ainda diz ‘Ah, Buchenwald, nem uma voz será ouvida, sem lamentos aceitamos o que virá, apesar de tudo, dizemos sim à vida, seremos livres: o dia chegará!’.

O título explicita a ideia fundamental sustentada no livro: toda a vida tem sentido; todo o sofrimento tem sentido; toda a doença tem sentido; toda a morte, se a morrermos como a nossa morte, tem sentido.

A capa da edição portuguesa é, também ela, merecedora de referência. A autora da capa, Marta Teixeira, transfigura o arame farpado cortado em leves e livres aves ondulantes ao vento… O design prepara para a leitura!

Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)

‘Dizer sim à vida apesar de tudo’ é uma ode à vida, ao sentido da vida, à decisão de se tomar nas mãos a existência que é reconhecida como dom recebido e acolhido e apreciado e amado.

Viktor Frankl parte da sua própria experiência existencial (ela perpassa por cada linha escrita, mas é particularmente visível na terceira e última conferência, em que ele começa, precisamente, por recordar a sua vivência, no campo de concentração de Kaurering), mas, também como terapeuta, fazendo das suas conferências, não apenas reflexões bem argumentadas, mas também existencialmente muito fundamentadas.

A sua ideia fundamental é a de que a vida vale a pena ser vivida, mesmo quando as circunstâncias são muito adversas, sendo que, perante o destino que cabe a cada um viver, restam duas formas de abordar: ‘mudar, desde que seja possível, ou aceitar de boa vontade, desde que seja necessário.’

Frankl constata que, como referia Nietzsche, ‘quem tiver um porquê para viver, suporta quase qualquer como’, o que confere à existência a condição de uma responsabilidade que projeta o sujeito humano para diante. Assumir a vida como uma responsabilidade significa, na perspetiva de Frankl, que o sujeito humano tem um ‘alguém’ ou ‘uma instância’ diante do/da qual responde pela sua vida. Isso lança-o para diante, para o futuro, fazendo emergir um sentido que, na linha da constatação que ele mesmo fez, ao criar a logoterapia, é condição para se sobreviver às maiores adversidades.

Coerente com estes pressupostos, Frankl defende que é insustentável a posição dos que entendem que há vidas indignas, pois, na sua perspetiva, toda a vida humana tem sentido, toda a doença tem sentido e toda a morte, quando é vivida como morrer assumido pelo sujeito, tem sentido. O sentido é anterior ao sujeito a quem cabe descobri-lo. Ele não é o seu criador; descobre-o! A vida define-se, para Frankl, como um interrogar o sujeito humano que, pelo viver, corresponde, ‘respondendo’. Viver é responder. O sentido está em responder, no próprio ato de viver que é, sempre, um encaminhar-se para diante e um responder perante alguém.

Afigura-se, assim, coerente a sua posição de que a eutanásia seria um reconhecimento de que haveria ‘vidas indignas de serem vividas’, contrariando as constatações a que a sua reflexão nos levara. Numa clara e lúdica argumentação, Frankl leva o leitor à constatação de como a aceitação desta significaria a perda da confiança inabalável no sentido da vida, assim como a aceitação de que ao médico competiria o poder de determinar o destino de alguém (negando que o destino é exterior aos sujeitos, perante o qual todos se posicionam) redundando numa alteração da própria missão do médico.

A razão última para a sua recusa desta, assim como da legitimidade do suicídio, está no reconhecimento da intrínseca dignidade de toda a vida humana, assumida como responsabilidade pessoal e insuscetível de qualquer redução ao critério da ‘utilidade’. O sentido da vida humana está acima e para além de toda a qualificação resultante da sua utilidade.

Interpelam estas conclusões, não apenas pela sua atualidade, mas principalmente pela sua intemporalidade, sustentada em experiência real em que a certeza do sentido conferiu a ‘força’ para a superação dos maiores limites algum dia vividos.

Na mesma página que o autor (citações)

‘Frankl conseguiu sobreviver ao tifo, que quase o levou à morte, e resistiu à fome, ao frio e à doença, graças a uma objetivação da dor, ou seja, à capacidade de se autodistanciar daquele mundo que o circundava, enveredando pela «autotranscendência», compreendida como «orientação da existência humana para além de si, orientada para algo ou para alguém».’ (Prefácio de D. Nuno Almeida, pp. 14-15)

‘A reconciliação com a vida […], segundo Frankl, acontece mediante a busca e a ativação do sentido para a existência pessoal e coletiva. Para que isto se realize, há que desenvolver a capacidade pessoal de entrega, de saída de si mesmo, e percorrer as vias da autotranscendência.’ (Prefácio de D. Nuno Almeida, p. 16)

‘Encontra-se em Frankl não somente um honesto e rigoroso estudioso da alma humana, mas sobretudo alguém que, com assertividade, proclama a dignidade inalienável de cada ser humano. Apesar do sofrimento, da culpa e da transitoriedade da vida, é possível renascer, recomeçar sempre.’ (Prefácio de D. Nuno Almeida, p. 17)

‘O homem e a mulher, pela sua dimensão espiritual, podem distanciar-se tanto de disposições internas como de posições externas. Por isso, o ser humano é um ser essencialmente livre, podendo decidir livremente sobre a sua vida, graças a uma capacidade não possuída por nenhum outro ser, uma faculdade especificamente humana: o autodistanciamento, ou seja, a capacidade que o ser humano tem de se distanciar não só do mundo, mas também de si mesmo. O importante não é a nossa disposição nem a nossa situação exterior, mas sim a atitude que se adota, a qual é sempre escolhida livremente por cada um de nós.

As circunstâncias biológicas, psicológicas, sociais podem condicionar, mas não determinar, o desenvolvimento da existência humana.[…]

A liberdade humana, não sendo omnipotência, pois o ser humano não pode fazer tudo o que quer realizar, nem é tão pouco arbitrariedade, pois há de responder perante a sua decisão, possibilita que a pessoa possa ser responsável.’ (Prefácio de D. Nuno Almeida, p. 18)

‘Para a logoterapia, o impulso primário da pessoa não é, como pensou Freud, a vontade de prazer; também não é a vontade de poder, como preconiza Adler, mas a vontade de sentido. Este sentido não se inventa, mas descobre-se: numa obra, num amor, numa tarefa a realizar. No fundo, cada um tem de perguntar: o que é que a vida quer de mim? Em última instância, viver significa assumir a responsabilidade de encontrar a resposta correta para os problemas que a vida coloca e cumprir as tarefas que ela continuamente aponta a cada pessoa.’ (Prefácio de D. Nuno Almeida, p. 19)

 

‘[…] a felicidade não deve, não pode nem consegue nunca ser um objetivo, mas apenas um resultado; resultado precisamente do cumprimento (Erfüllung) daquilo que no poema de Tagore se chama dever e que nós, mais à frente, iremos esforçar-nos por definir melhor. De qualquer forma, toda a busca da felicidade da pessoa humana está condenada a falhar na medida em que a felicidade só lhe pode cair no colo, deixando-se jamais «caçar». Foi Kierkgaard que expressou a sábia parábola: a porta para a felicidade abre «para fora», isto é, ela fecha-se justamente para aquele que, por assim dizer, a tenta forçar para dentro.’ (Pp. 33-34)

‘[…] impunha-se efetuar aquilo a que, com Kant, se poderia chamar uma viragem «copernicana», uma viragem de pensamento de 180 graus, de acordo com a qual a pergunta não pode ser: «O que posso eu ainda esperar da vida?», mas sim: «O que espera a vida de mim?» Que tarefa na vida espera por mim?’ (P. 34)

‘Viver em si nada mais é do que ser interrogado (Befragt-sein), todo o nosso ser nada mais é do que uma resposta – uma assunção da responsabilidade da vida.’ (P. 34)

‘[] costumo habitualmente contar a história que apareceu numa breve notícia de jornal: um negro condenado à prisão perpétua foi deportado para a Ilha do Diabo. Quando o navio, o Leviatã, se encontrava no alto mar deflagrou um incêndio. Naquela emergência, o prisioneiro foi libertado das suas correntes, tendo participado na operação de salvamento. Este senhor salvou a vida de 10 pessoas. Mais tarde, em consequência disso, o prisioneiro foi amnistiado. Eu pergunto: se se tivesse, antes do embarque, isto é, no cais de Marselha, perguntado a este prisioneiro se a sua vida futura poderia ainda ter algum sentido – ele teria obviamente abanado a cabeça: havia alguma coisa que estivesse ainda à espera dele? Mas nenhum de nós sabe o que está ainda à nossa espera, que grande momento, que oportunidade única para um ato sem igual está ainda à sua espera – tal como o salvamento de 10 pessoas estava à espera desse negro do navio Leviatã.’ (p. 35)

‘Damos sentido à vida através de ações, mas também através do amor – e finalmente através do sofrimento. Pois é a forma como uma pessoa lida com a limitação das suas possibilidades de vida, enquanto elas afetam o seu agir e a sua capacidade de amar, a forma como se comporta com esta limitação – a forma como assume o seu sofrimento sob tal limitação, em tudo isto ela é ainda capaz de realizar valores.

Portanto, é na forma como lidamos com as dificuldades que se vê quem somos, e é também isso que nos torna capazes de viver uma vida plena de sentido.’ (Pp. 39-40)

‘O destino, portanto, aquilo que nos acontece, pode, […], de qualquer forma, ser modelado – duma ou doutra maneira. «Não existe nenhuma situação que se não deixe enobrecer, seja através da realização seja através da resiliência», diz Goethe. Ou nós alteramos o destino – se for possível – ou então aceitamo-lo de boa vontade – se for necessário. Interiormente, em ambos os casos podemos crescer através da infelicidade. E agora compreendemos também o que o poeta alemão Hölderlin quer dizer quando escreve: «Se eu piso a minha infelicidade, fico mais alto.».’ (p. 40)

‘[Esta é] a grande realidade fundamental do que é pessoa humana – a pessoa humana não é outra coisa senão: ser consciente (Bewusst-Sein) e ser responsável (Verantwortlich-Sein)!

Mas se a vida, tendo em conta a possibilidade, tem sempre sentido, se, portanto, depende unicamente de nós quanto à vida ser cumprida a cada momento com este possível sentido – que está em permanente mudança -, se é da nossa inteira responsabilidade e depende da nossa decisão a concretização deste sentido, então sabemos também com certeza o seguinte: há uma coisa seguramente sem sentido, que não tem sentido nenhum, que é deitar fora a vida. O suicídio não é, por conseguinte, de forma alguma uma resposta a uma qualquer pergunta; o suicídio nunca será capaz de resolver algum problema.’ (Pp. 42-43)

‘[…] o suicida infringe as regras do jogo da vida; estas regras do jogo não exigem de nós que vençamos a todo o custo – porém, elas exigem de nós que em nenhum caso desistamos da luta.’ (p. 44)

‘[…] o facto e apenas o facto de sermos mortais, de a nossa vida ter fim, de o nosso tempo ser limitado e as nossas possibilidades serem limitadas, faz com que pareça ter sentido realizar qualquer coisa, aproveitar uma possibilidade e concretizá-la, realizá-la, aproveitar o tempo e preenchê-lo. A morte representa aqui uma compulsão. É justamente sobre o pano de fundo da morte que o nosso ser constitui, pois, um ser responsável.’ (p. 44)

‘A unicidade só pode ter valor quando ela não constitui uma unicidade para si mesma, mas sim uma unicidade para a comunidade humana. O simples facto de que todo o indivíduo possui impressões digitais «únicas» nas polpas dos dedos tem quando muito relevância para os criminologistas, para a investigação criminal ou para descobrir um criminoso; mas esta «individualidade» de cada indivíduo não faz dele, sem mais nem menos, uma «personalidade», isto é, uma pessoa humana que na sua unicidade tem valor para a comunidade.’ (p. 49)

‘[…] a vida em si significa ser interrogada, significa responder – cada um responsabilizar-se pela sua existência. A vida assim já não surge como uma realidade (Gegebenheit), mas sim uma realidade incumbida (Aufgegebenheit) – é em cada momento uma tarefa.’ (p. 50)

‘O ponto de vista que se nos oferece pode expressar-se acertadamente com as palavras de Hebbel: «A vida não é alguma coisa – ela é uma oportunidade para alguma coisa!».’ (p. 51)

‘Uma das conclusões a que quisemos chegar na nossa primeira conversa é a seguinte: se a vida tem sentido – então o sofrimento também tem de ter sentido.’ (p. 55)

‘A doença faz parte do sofrimento. Dizemos «faz parte»; pois «o sofrimento» e a «doença» não são a mesma coisa. A pessoa humana pode sofrer sem estar doente; e pode estar doente sem sofrer. O sofrimento é de tal forma um assunto humano, pertencendo-lhe de certo modo como tal, que, em determinadas circunstâncias, justamente o não sofrer pode ser uma doença. Vemos isso sobretudo no caso das doenças que qualificamos de doenças mentais que são nada menos que doenças ligadas à mente.’ (p. 55)

‘[…] a realização de sentido é possível em três direções principais: a pessoa humana é capaz de atribuir sentido à sua existência, em primeiro lugar, fazendo algo, agindo, criando algo – concretizando uma obra; em segundo lugar, experienciando algo – a natureza, a arte, amando pessoas; e, em terceiro lugar, finalmente, pode atribuir sentido à vida, encontrar sentido nela também onde nem na primeira nem na segunda direção lhe é dada essa possibilidade – a saber, justamente quanto toma posição sobre a limitação inalterável, fatídica, inescapável e inevitável das suas possibilidades, a forma como lida com ela, como se comporta com ela, como aceita este destino. No decurso do tempo, a pessoa tem de estar preparada para alterar sempre a direção desta realização de sentido, muitas vezes abruptamente, tendo em conta as «exigências específicas da hora».’ (Pp. 60-61)

‘[Um designer gráfico publicitário, com doença oncológica em fase terminal] sabia perfeitamente que os seus dias, em última análise, as suas horas, estavam contados. Lembro-me nitidamente da visita que tive de fazer como médico de serviço naquele hospital na última tarde da sua vida. Quando passei pela cama dele, fez-me sinal para eu me aproximar. Falando com esforço, deu-me a entender que, durante a visita do chefe de serviço, tinha percebido que o Prof. G dera ordens para, nas derradeiras horas, lhe ser administrada uma injeção de morfina a fim de aliviar os estertores da morte iminentes. Continuou dizendo que, como tinha motivos para acreditar que na noite seguinte «chegaria a sua hora», me pedia que lhe desse a injeção já, durante a visita – de modo que a enfermeira do turno da noite não tivesse de incomodar o meu sono de propósito por causa dele… Nas últimas horas da sua vida, este homem estava ainda preocupado em poupar os outros, em vez de os «incomodar»! […] Hão de me compreender se eu agora afirmar: nenhum cartaz de publicidade esplêndido nem o melhor e mais belo do mundo que este nosso doente tivesse conseguido fazer ainda durante a plena atividade profissional equivaleria como realização a esta singela realização humana que se viu no comportamento descrito relativo às suas últimas horas.’ (Pp. 62-63)

‘[…] Rilke exige de toda a pessoa humana ou desejou para toda a pessoa humana: «poder morrer a sua morte!» Dito doutra forma, integrar também a morte com sentido no todo da vida, mais ainda, realizar o sentido da vida até na própria morte.’ (Pp. 64-65)

‘Se após tudo isso se comprovou que até a vida com doença, ou melhor, a vida condenada à morte não representa de modo algum uma vida sem sentido, então agora temos de nos virar para a questão de saber com que direito se pôde alguma vez afirmar que o homem doente ou um homem que sofre de doença terminal era um homem sem valor, sendo a sua vida «uma vida indigna de ser vivida». Queremos aqui pôr de lado todo o tipo de valor no sentido de «utilidade», que até as vidas de pessoas doentes, aliás precisamente as suas vidas, poderiam ter, na medida em que podem contribuir para a descoberta de novas doenças ou o desenvolvimento de novos tratamentos; […]

Se, portanto, se levanta a questão do simples valor utilitário da vida doente para a sociedade humana e para o progresso científico, então esta questão revela já um ponto de vista inumano (un-menschlich) e, por conseguinte, também um ponto de vista não médico (un-ärtslich), um ponto de vista de um radical coisificação e degradação do ser humano, que recusamos adotar por uma questão de princípio. Nem sequer o doente psíquico «é» para nós uma doença, mas sim em primeiro lugar uma pessoa humana, que «tem» uma doença. E como esta pessoa humana pode ser humana, ainda que esteja tão doente, como pode ser humana não apenas apesar da e na sua doença, mas também na sua atitude face à doença.’ (Pp. 70-71)

‘Temos de nos questionar sobre o seguinte: suponhamos que de facto éramos de tal forma omniscientes, como seria aliás necessário, ao ponto de podermos falar com absoluta segurança da incurabilidade não apenas momentânea, mas também duradoura: quem, mesmo nesse caso, dá ao médico o direito de matar? Estará alguma vez o médico como tal designado para isso pela sociedade humana? Não terá ele antes a tarefa de salvar, onde puder, ajudar, onde puder, e tratar quando não for já possível curar? […] O médico enquanto médico não é com certeza um juiz sobre o ser e o não ser dos doentes que lhe são confiados ou mesmo dos que confiam nele. Por isso, não lhe assiste de antemão o direito de – e jamais deve arrogar-se possuir esse direito – formar um juízo sobre o suposto valor da vida, ou a falta dele, de doentes supostamente ou de facto incuráveis.

Imagine-se onde iríamos parar se a este «direito» (que não tem de facto) se desse força de lei (ainda que fosse apenas uma lei não escrita). Digo-lhes o seguinte: a confiança dos doentes e dos seus familiares na classe médica ficaria destruída duma vez por todas! Pois ninguém saberia ao certo se o médico se aproxima dele como alguém que presta cuidados e alguém que cura – ou já como juiz ou algoz.’ (Pp. 74-75)

‘[Há quem interrogue] se o Estado não teria o dever de conceder ao médico o direito de aniquilar indivíduos supérfluos e inúteis. […]

Pois bem, quanto ao «consumo» de bens como os géneros alimentícios, as camas dos hospitais, o trabalho realizado pelos médicos e enfermeiros, etc., qualquer discussão deste argumento torna-se supérflua se tivermos em conta o seguinte: um Estado que economicamente está numa situação tão miserável que tem necessidade de eliminar uma percentagem relativamente reduzida dos seus doentes incuráveis para assim poupar nos gastos referidos acima – um Estado destes não tem hipóteses nenhumas em termos económicos!

No que diz respeito ao outro lado da questão, isto é, o facto de que os doentes incuráveis já não são úteis para a comunidade humana, de que a assistência para eles é uma assistência «improdutiva», seria necessário lembrar que a utilidade para a comunidade não é nunca o único padrão que temos o direito de aplicar a um ser humano.’ (Pp. 75-76)

‘Quando nós, na nossa primeira conferência, falávamos de que a unicidade e a singularidade de toda a pessoa humana constituía o valor da sua pessoa, que este valor tinha de estar relacionado com uma comunidade, «para a qual» esta unicidade tinha uma importância valiosa, então estávamos todos a pensar especialmente em termos de serviço prestado à comunidade; mas agora verifica-se que existe ainda um segundo caminho em que a pessoa humana como um ser único e singular se realça nesta sua unicidade, em que, portanto, o valor da sua personalidade se concretiza e, nessa medida, o seu sentido da vida pessoal e concreto se realiza: é o caminho do amor – ou melhor, de ser amado. […] No caminho do amor é concedido à pessoa humana, «pela via da graça», aquilo por que doutra forma tem de se esforçar, que tem de obter através da ação: a realização tanto da sua unicidade como da sua singularidade. Pois, a essência do amor consiste em fazer com que a pessoa amada se nos torne visível justamente na sua unicidade e singularidade.’ (Pp. 76-77)

‘[…] defendo o ponto de vista de que no caso duma tentativa de suicídio, o médico tem não só o direito como a obrigação de intervir medicamente, e isto significa: a obrigação de salvar e de ajudar, tanto quanto lhe for possível. […] o que eu contrapus aos críticos morais do meu método […] foi o seguinte: não sou eu quem pretende desempenhar o papel do destino, mas sim é o médico que tenta desempenhar o papel do destino, que deixa o suicida entregue ao seu destino, que deixa o destino «em roda livre» e, onde talvez pudesse intervir, ajudando, cruza dos braços. […] uma vez que foi colocado nas mãos do médico, então este deve agir como médico e não cair nos braços deste destino, deste destino «misericordioso».’ (Pp. 80-81)

‘Espero agora, através da discussão de todos os argumentos aparentes que poderiam falar em favor da eutanásia, ter-lhes mostrado como é incondicional o sentido da existência e, consequentemente, como deve ser também inabalável a nossa crença no sentido da vida.

[…] Relembrando, grosso modo, o nosso resultado principal, fizemos a constatação básica de que a vida em si significa que a questionemos e que, deste modo, não de pode, justificadamente, perguntar pelo seu sentido, pois este sentido consiste em dar uma resposta. As respostas, como dizíamos, que temos de dar às perguntas concretas da vida já não podem ser dadas em palavras, mas sim em atos, mais ainda: na nossa vivência, em todo o nosso ser! As questões «da» vida só podem ser respondidas, queríamos nós dizer, sendo «cada um de nós» responsável pela própria vida.’ (p. 81)

‘[…] o deixar-se cair psiquicamente por falta de suporte espiritual, sobretudo pela perda de um suporte no futuro, conduz também à decadência física.’ (p. 97)

‘Recordando-me das palavras de Nietzsche, que uma vez disse: «Quem tiver um porquê para viver, suporta quase qualquer como».’ (P. 97)

‘Era necessário morrermos a nossa morte – e não, por exemplo, a morte que as SS nos tinham imposto! Somo responsáveis tanto por esta tarefa como pela tarefa de viver. Responsáveis – perante quem, perante que instância? Pois então, quem poderia responder a esta pergunta pelo outro? Não terá cada um de nós de decidir por si próprio sobre essa questão? Que importa se, por exemplo, uma pessoa na barraca se sentia responsável perante a sua consciência e uma outra perante Deus e uma terceira perante uma pessoa humana, que estava naquele momento distante? Em todo o caso, cada um deles sabia que existia, de alguma forma, algures, alguém que olhava, invisível, por ele, alguém que exigia dele «que ele se mostrasse digno do seu sofrimento» - como Dostoiévski disse uma vez – e que esperava dele que ele «morresse a sua morte».’ (Pp. 98-99)

‘[…] em cada momento sou responsável pelo próximo; […] cada decisão, a mais pequena como a maior, é uma decisão «para a eternidade»; […] em cada momento realizo uma possibilidade, a possibilidade de um momento, ou perco-a. Cada momento alberga milhares de possibilidades – e eu posso escolher apenas uma para a realizar; ao tê-la, por assim dizer condenei todas as outras ao nunca-ser – e também isto; «para toda a eternidade»! Mas é maravilhoso: saber que o futuro, o meu próprio futuro e, conjuntamente com ele, o futuro das coisas, das pessoas à minha volta – dependente em cada momento da minha decisão. O que eu realizo através dela, o que eu «coloco no mundo», como dissemos – salvo-o para dentro da realidade e assim protejo-o da transitoriedade.’ (p. 107)

‘O problema é que em média as pessoas são demasiado indolentes para assumir a sua responsabilidade. E é aqui que começa a educação para a responsabilidade: a carga é pesada; é difícil não só reconhecer a responsabilidade como ser partidário dela. Dizer-lhe sim a ela e à vida.’ (p. 107)

‘Dizer sim à vida tem não só sentido sob qualquer circunstância – a própria vida tem-no -, mas sim, é possível sob qualquer circunstância.’ (p. 107)

**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

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