Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ leva-nos a um mito que tem merecido numerosas representações artísticas (da ópera, com Lully, à escultura, com a célebre representação feita por António Canova, passando pela pintura por inúmeros estudos do âmbito da psicologia, que visam explorar a sua densidade e dela retirar leituras sobre a condição humana): a história de Psiquê e o Amor (Eros).
Este é um conto que nos chegou pela mão de Apuleio, autor latino do século II d.C., cujas Metamorfoses foram a única obra da literatura latina do género romanesco a chegar-nos integralmente preservada. (Os leitores interessados poderão encontrá-la aqui: https://www.gutenberg.org/ebooks/1666). O nosso guia será, ao longo deste ensaio, a versão do mito recolhida por Pierre Grimal, no seu dicionário da mitologia grega e romana[1].
Psiquê (a tradução portuguesa deste dicionário grafa a palavra sem o acento ‘pique’, mas parece-nos mais adequado manter a acentuação original de ‘psiquê’) é uma de três filhas de um rei, todas belas, mas especialmente Psiquê. De tão bela, não consegue encontrar marido, pois todos os pretendentes temem o fulgor daquela beleza.
Como tantas vezes ocorre nos mitos gregos já anteriormente analisados, os pais decidem socorrer-se dos oráculos, que lhes comunicam que deverão prepará-la para as núpcias, e levá-la ao cimo de uma montanha que lhes é indicada, onde a espera um monstro horrível que a tomará como esposa.
Os pais, ainda que temerosos, assim como Psiquê, cumprem o definido pelo oráculo.
Já na montanha, Psiquê é erguida pelos ventos que a transportam para o fundo de um vale de ervas suaves e macias, onde, após intensa emoção e felicidade, Psiquê adormece, acordando diante de um palácio ricamente decorado. Aí viverá um dia particularmente feliz até que, ao final da jornada, prestes a adormecer, sente a presença do seu prometido que a proíbe de o ver, condição para que ele permaneça junto de si. Se o vir, desaparecerá.
Como é fácil concluir, tal acabará por ocorrer, quando, ao regressar da família, que visitara por sentir saudades, é instada por esta a tentar descobrir como é o seu amado.
Sentindo-o adormecido, acende uma vela com que ilumina o seu rosto, descobrindo-o jovem e belo. Uma gota de cera quente acorda-o, porém, seguindo-se o seu imediato desaparecimento (definitivo).
Só, Psiquê erra pelo mundo e pelo submundo, sempre perseguida por Afrodite que inveja a sua beleza. Do submundo, trará um frasco de água recolhida da fonte da juventude que lhe fora dada por Perséfone, com a condição de não o abrir. No regresso, Psiquê parte o frasco, adormecendo profundamente. É nesta condição que a encontra Eros que pede a Zeus que os liberte das maldições que impendem sobre ambos, isto é a de não poder vê-lo e a de ele não a poder desposar.
Libertos das maldições, podem, finalmente, casar-se.
Este mito é denso de significados, mas para o nosso labor de estabelecimento de pontes entre a cultura clássica e a cristã, importa-nos reter como é trágica na visão clássica a relação entre o amor e a condição humana, simbolizada na impossibilidade de se ver o rosto, o lugar do enrugar do tempo sobre a pele.
Numa primeira leitura, é possível perceber alguma proximidade com a recusa de ver a Deus, face a face. Há, porém, que constatar que essa recusa é temporária, pois toda a história da salvação assenta na esperança do encontro definitivo que nos há de permitir ver a Deus tal como ele é.
Há, por isso, aqui, um coincidir para prontamente se distinguir. A cultura cristã redime o rosto, pois são inúmeros os momentos em que é o encontro, o ver, o olhar que abre ao amor…
Estar longe da face é, inclusive, sinal de maldição (por oposição à maldição de ver, implícita no mito de ‘eros e psiquê’): assim acontece com Caim que, ‘longe da face de Deus’, tem de errar… (Cfr. Gn 4,14).
Confirmando esta constatação, por oposição, ‘ver’ é fundamental e o lugar em que o amor se expressa (e não se some ou abandona, como no mito): os pastores querem ver o Menino (Lc 2,15), João Batista anuncia o Cordeiro de Deus, ao vê-lo (Jo 1,29), o leproso cai por terra ao ver Jesus (Lc 5,12), o Pai de misericórdia comove-se ao ver, ao longe, o filho pródigo (Lc 15,20), Zaqueu esquiva-se à multidão para ver Jesus (Lc 19,4), o centurião desperta para a fé ao ver o modo como Jesus morre (Lc 23,47). ‘Ver’, ‘ver’, ‘ver’…
O rosto, na cultura judaico-cristã, não é o lugar da perdição e da maldição, mas o primeiro despertador do amor. Não é, por isso, fortuito que uma das mais fecundas ‘éticas’ – a que tem em E. Levinas[2], um judeu, o seu principal pensador - contemporâneas funde no rosto o seu principal axioma: o de que o rosto é expressão da indigência que nos comove e insta a partir ao encontro do outro.
‘Psiquê e Eros’ é um mito perturbador, inquietante (não restará ao ser humano senão a trágica condição de nunca poder amar a beleza?), mas transfigurável pela visão cristã redentora do rosto, do olhar, do ver. A esperança cristã funda-se, aliás, na promessa de que veremos a Deus tal como Ele é…
Ver e amar não se excluem, na visão cristã: germinam um no outro!