sábado, novembro 23, 2024

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 6 | Mistério na terra do lameiro

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*




J. e M. (e o branquinho, pousado no ombro de M.) andam entusiasmados com o desejo de regresso à terra do pai. As margens do rio Vouga têm-lhes proporcionado misteriosas aventuras. Aquelas águas inspiram, como sempre ouviram ao pai. As férias grandes são, sempre, um tempo único. O povo voa para o Algarve e deixa-lhes a terra para que a possam contemplar com um olhar de Poirot, mas sem os tiques do detetive belga. Sempre, porém, de ‘células cinzentas’ atentas.
Poirot inspira-os…
O pai segredara-lhes a certeza de que aquelas férias grandes seriam inesquecíveis. Prometera-lhes dar-lhes a conhecer um lugar único. Único, mesmo.
Assegurara-lhes que jamais esqueceriam a terra do lameiro, a terra a que, desde os tempos de um célebre abade Santiago se dizia, de ouvido a ouvido, que era a terra da verdade. O abade Santiago, sabedor da cultura grega, chamara-lhe o ‘lameiro aletes’. O povo achava que seria ‘A Letes’, aludindo a uma qualquer ‘Celeste’ ou ‘Salete’… Os inconformismos populares tudo explicavam quando não sabiam a verdade. Mas ‘Aletes’ explicava-se e o pai garantira-lhes que lhes haveria de contar a verdade.
Era impossível esperar pela chegada. O comboio parecia andar a vinte, mesmo que o registo interior, no topo da carruagem, indicasse duzentos.
De Aveiro, paragem do Alfa, haveriam de seguir, de automotora, até à Sernada e, dali, de autocarro até à estação de Paradela. Era uma viagem deslumbrante.
O pai lembrava-se, ainda, da última viagem de automotora, percorrendo, a dez à hora, a ponte do Poço de Santiago. Hoje, a linha de outrora servia de percurso pedonal. Quantos mistérios escondem aqueles trilhos!
Desta vez, contudo, os mistérios andavam mais adentrados nas povoações.
O destino desta viagem não haveria de ficar-se pela estação de Paradela, agora, transformada num convidativo café de memórias longínquas. O mistério esperava-os na terra do lameiro.
O pai guardava memórias muito vivas daqueles sítios.
No lameiro, a ladear a Cancela, depois descer a íngreme ladeira de Paredes de baixo, o ribeiro que beija o Vouga fazia um pequeno espelho de água, sombrio, mas muito eloquente. Falava. Ah, como falava! E quanto dizia!
O pai passara ali horas, longas horas da sua infância.
Enquanto a mãe, avó de J. e M., sachava o milho, o pai deles abeirava-se das águas tranquilas e divertia-se.
- Agora, tenho 18 anos! Agora, tenho 10 anos! Agora, sou Pedro! Agora, Luís!
E as águas respondiam-lhe.
O seu rosto, refletido nas águas, ora aparecia, ora desaparecia. E não era sem razão.
O abade Santiago chamara-lhes as águas de ‘Aletes’.
Ele bem sabia porquê e o pai de J. e M., não conseguindo perceber porquê tal nome, bem sabia a que correspondia a distinção daquelas águas.
‘Aletes’ lembrava as águas do rio que corre no Hades. As suas águas apagavam todas as memórias. Eram águas de esquecimento, donde derivava o nome de ‘Letes’. Rio do esquecimento.

O regresso àquele local entusiasmava J. e M., mas não menos o pai.
Depois que o pai morrera, em situação que fizera recair sobre o seu irmão a suspeita de um comportamento violento que ele desmentia e assegurava que a morte teria sido acidental, o desejo de regressar àquele lugar tornara-se denso desejo tardiamente satisfeito.
Por isso, chegados à casa de todas as memórias, prontamente, pai e filhos partiram a correr para as águas do lameiro.
O lameiro trazia-lhe, bem certo, as memórias dos tempos onde, numa pequena corga que desviava um resquício de água tirada do ribeiro, se lavavam as ‘tripas’ com que se haveriam de fazer os chouriços que deliciavam as suas merendas. E os salgueiros onde dependurava as suas divertidas tardes de sol. E, claro, as muitas horas a apanhar uvas do chão, nas vindimas que, ao entardecer, haveriam de levá-lo ao lagar para, com os ‘homens’ pisar ‘o vinho’.
Todas estas memórias tornavam aquele lugar singular.
Mas a principal ainda estava por desvendar aos olhares argutos de J. e M.
O pai levava, na mão, uma foto de família.
J. e M. estranhavam aquele ritual. Ir a um sítio e levar uma foto de família parecia-lhes estranho, mas o pai tinha destas coisas.
Ao abeirarem-se do ribeiro, o silêncio tomou conta do pai. Sentiam que lhe batia, em ritmo acelerado, no peito o coração.
Viram-no aproximar-se da água que lambia a margem do lameiro, Baixou-se. Tirou do bolso a foto e fixou, nela, o olhar. Depois, lentamente, olhou para as águas, nas quais se refletia o conteúdo da foto.
Voltou a olhar e um choro convulsivo tomou conta dele.
J. e M. aproximaram-se do pai e abraçaram-no. Branquinho pousou sobre aquela autêntica foto de real afeto.
- O que vedes?
- A foto de todos.
- De todos? – perguntou o pai.
- Estranho! – disse J. – O tio não aparece refletido nas águas.
- Estas águas não mentem. Por isso, o abado Santiago lhes chamara ‘as águas Aletes’, as águas da memória, da verdade. Quando eu era pequeno, vinha para aqui e, ora mentia, ora dizia a verdade. Quando mentia, o meu reflexo desaparecia. Quando dizia a verdade, ali aparecia eu. Se perguntarmos a estas águas quem mente, numa foto, o mentiroso não aparecerá.
Hoje, descobri a verdade sobre a morte do vosso avô.
Que outras verdades reservarão estas águas?


 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

sexta-feira, novembro 15, 2024

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

 

Cerca de duas décadas passaram desde que o rei Ulisses partiu de Ítaca, deixando Telémaco, o filho, ainda pequeno (com uns três anos), e Penélope, a sua ‘nunca-viúva’ fiel, esperançosa do seu (mesmo que tardio, mas nunca inesperado) regresso. Os pretendentes abundam e esperam pela hora em que se acabe de tecer a condição de disponibilidade sempre adiada.

Regresso…

Fizemos este caminho de vinte e quatro passos (tantos quantas as letras do alfabeto grego) sob a inspiração da ideia de ‘regresso’.

Explorámos a ambiguidade de ‘regresso’ – entre o verbo que nos envolve a todos e o substantivo que confina a narrativa à história de um sujeito concreto, neste caso, Ulisses – para que dela pudéssemos retirar elementos de confluência ou divergência entre as influências clássica e cristã, na cultura que inspiramos e expiramos.

Chegámos ao momento de, com Ulisses, fruir (com) a chegada… Muitos são os elementos a guardar deste regresso.

Como observa Maria Helena da Rocha Pereira, a ideia do regresso é relevante, facto observável, imediatamente, na frequência do termo (ou palavras da família) que supera a centena[1] de aparições no texto homérico. Não é despiciendo, também, constatar que, dos vinte e quatro cantos da Odisseia (ou ‘rapsódias’, segundo algumas edições), doze (metade, portanto) tenham por cenário a Ítaca tão pretendida e onde Ulisses já se encontra, mas em que o encobrimento do protagonista que só progressivamente vai sendo desvelado, torna densa e tensa a tarefa da efetiva chegada. Ulisses está em Ítaca, mas vai chegando, pouco a pouco. Só mesmo no último canto se obtém, finalmente, a pretendida paz.

Há algo de universalmente transferível deste ‘regresso’ de Ulisses.

Esta universalidade e caráter simbólico e permanente traz-nos à memória a também universal condição violenta da humanidade, genialmente descrita em breve texto de Jorge Luís Borges:

 “In memoriam J.F.K.

Esta bala é antiga.

Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevideu, Arredondo, que passara muito tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projéctil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um actor que as palavras de Shakespeare tinham convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII a vingança serviu-se dela para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, a meio da pública hecatombe de uma batalha.

Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é apenas própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi o punhal triangular que ceifou o colo de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que Sócrates bebeu num entardecer.

No dealbar do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão acabar com os homens e com o seu prodigioso e frágil destino.”[2]

No regresso de Ulisses, está essa ‘bala antiga’, de sempre. A ‘bala’ que é, aqui, a condição de ser indigente, sedento de uma água tantas vezes substituída e tão raras vezes autenticamente descoberta.

No regresso de Ulisses, habita o sonho do Éden, essa marca profunda e que inunda, presente, como condição escondida e tão indecifrável, no desejo de Deus manifesto sob tantos disfarces.

O ‘nóstos’, o regresso demorado de Ulisses, mora no coração humano como sinal indelével da origem, múltiplas vezes negada ou equivocadamente identificada. De tão inundante, chega a expressar-se como ânsia inapagável de regresso, ‘nostalgia’ de uma morada original a que se pretende voltar.

No primeiro passo de cada um, morava já o último, como esperança regenerada, sonho de um paraíso que se opõe ao ditame que repousa à entrada do Inferno de Dante: ‘Abandonai toda a esperança os que aqui entrais’.

Mas, como com Ulisses, o regresso faz-se encoberto, irreconhecível e a exigir duro combate sobre pretendentes aguerridos.

Esperar-nos-á, porém, Penélope, fiel e, com ela, o futuro sempre aberto, densamente simbolizado no filho que cresceu e se torna robusto.

O regresso, tornado desejo de chegada, expressa-se como sede profunda. Sede que alguns homens do século XIX e seus herdeiros (Feuerbach, Marx, Nietzsche, etc.) interpretaram, de forma equívoca, como sendo a responsável pela realidade desejada. Do equívoco partiram em direção à negação de tudo o que dizia respeito à fonte geradora da sede. Daí à perseguição por consideração de que a religião, que nos religa à fonte original (e nos faz reler o mundo com o novo olhar nascido dessa religação), não mais era do que um ópio ou uma alienação, foram curtos passos.

Não é a sede, porém, que origina a água, mas a ausência da água a ‘fonte’ da sede.

Contrariamente ao que presumiram os homens desistentes dos últimos dois séculos, o sonho que habita o homem e que o Cristianismo nomeia, à luz da Revelação, ‘abarca tanto o esperado como o esperar’[3]. No esperar, na sede ainda sem nome, aninha-se o prometido, o esperado, não nascido do esperar, mas nele feito emergência, um incontrolado emergir.

Bem o sabem os homens que leram o Homem como poucos: ‘o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós [Deus Criador]’[4].

A ‘bala’ da violência é uma só. O regresso a Ítaca um só, também.

Ulisses e Adão encontram-se no partir e no voltar, como seres de um regresso ao eterno. O tempo caminha para a paz definitiva e autêntica felicidade aqui só analógica e provisoriamente visitadas.

Ítaca é, na história de Ulisses, imagem do Éden por que ansiamos e a que esperamos regressar: a mão de Deus em que fomos desejados perfeitos e a cuja perfeição retornaremos.


[1] Cfr. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p.155.

[2] Jorge Luís Borges, Obras Completas, II: 1952-1972, S/L, Editorial Teorema, 1998, p. 229.

[3] Jürgen Moltmann, Teología de la esperanza, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1989, p. 20.

[4] Santo Agostinho, Confissões, Porto, Editorial A.I., 198411, n.º1, p. 27.



quinta-feira, novembro 07, 2024

Sabes, leitor... | 11 | Marca de água do livro de Fabrice Hadjadj, 'A profundidade dos sexos: para uma mística da carne'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Fabrice Hadjadj, A profundidade dos sexos: para uma mística da carne, Prior Velho, Paulinas Editora, 2010.

Fabrice Hadjadj é um pensador difícil de imitar e ainda mais difícil de sintetizar. Lemo-lo e percebemos que estamos diante de um texto de Hadjadj, mas não é fácil transmitir a quem nunca o leu a unicidade do seu modo de pensar e de transmitir o que pensa. A sua escrita faz lembrar, pelo recurso aos paradoxos e à surpresa do humor, o igualmente inimitável G. K. Chesterton.

Acedi ao mundo de Hadjadj pela via de uma sua conferência no Porto, em 2015, no âmbito do II Congresso Nacional de Leigos, em que refletiu sobre ‘recolocar o Homem no centro: desafio antropológico’, iniciando a sua intervenção de modo paradoxal, ao recordar que este recentrar no Homem tem de acontecer no momento em que corresponde ao desafio do Papa Francisco de ir para as periferias. Periferias e ‘recentrar’ parecem não encaixar… Mas é esta a marca de Hadjadj: o paradoxo que obriga a pensar e nos ‘põe de orelhas guiadas’, à espera do que aí vem.

Habituado a este humor hadjadjiano, mandei vir de Espanha, em 2018, um dos seus livros mais teológicos [F. Hadjadj é filósofo, mas, em virtude do seu percurso de convertido tardio, depois de um judaísmo ‘não praticante’ e um ateísmo militante, não se priva de reflexões teológicas sempre bem fundamentadas e intencionalmente desconcertantes…]. O título pareceu-me suspeito. Desconfiei de que a tradução espanhola teria vincado dedo editorial. Na edição de editora solene, o título do livro era ‘Ressurreição: experiência de vida em Cristo ressuscitado’.

Desconfiado, fui ver o título original. Não podia ser mais hadjadjiano: ‘Ressurreição: modo de utilização’.

Isto é Hadjadj!...

Quem é que se iria lembrar de refletir sobre coisa tão séria como a ressurreição como quem fala de um frigorífico? Mas, com esta forma desconcertante, Hadjadj dá-nos logo a entender ao que vai, antes mesmo de abrirmos o livro: teremos de conviver com a experiência da ressurreição como quem se prepara para abrir a porta de um frigorífico: tem de fazer parte do nosso quotidiano, para que não seja algo estranho e opaco. E, já agora, encontrando nela a frescura para manter vivo o que perderia vigor e robustez…

Para os que se sentirem fascinados ou interpelados a descobrir Hadjadj, deixo uma terceira sugestão de leitura, também em tradução portuguesa: a peça de teatro ‘Job ou a tortura pelos amigos’, que revisita, em modo de teatro contemporâneo, a dramática experiência do sofredor bíblico. Com a marca de Hadjadj, é uma peça a levar à vida do palco, para que se possa beneficiar da mordacidade e ousadia hadjadjiana em modo de drama.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

O livro que, agora, apresento ao leitor, vive desta mesma energia e ousadia. Como não ver o paradoxo que dimana do contraste entre o título e o subtítulo? Há uma certa malícia em ‘a profundidade dos sexos’ que contrasta com a elevação de ‘para uma mística da carne’.

Não é, por isso, surpreendente que Jean Sévillia, no seu monumental ‘La France Catholique’, o inclua, como ‘judeu de nome árabe e confissão católica’, num capítulo dedicado à ideia de que ‘muitos grandes filósofos franceses são católicos’, e o identifique como um dos que fazem parte da vaga de continuadores de nomes maiores da história contemporânea da filosofia e da teologia, como Rémi Brague, René Girard, Jean-Luc Marion, etc.

A ironia com que escreve parece habitar a história do próprio Hadjadj cuja narrativa de conversão é contada pelo Cardeal Tolentino de Mendonça no prefácio com que abre a edição que tenho em mãos. Desafio a leitor a lê-la. Perceberá o leitor que um escritor não se faz humorado sem deter o seu olhar de humor sobre a realidade em que germina.

O humor de Hadjadj já não é, porém, o do ‘riso de Voltaire’, que goza sem se comprometer. É o riso desbragado de quem percebe que, nas ironias da vida e nas ironias sobre a vida se descobre o humor do sentido que Deus deposita na existência.

Hadjadj deve ser lido porque revela que, contrariando os inúmeros preconceitos com que o catolicismo é tantas vezes brindado (inclusive o de que é preconceituoso quando, se haveria alguma coisa de que o poderiam acusar, era de superabundância de conceitos…), o catolicismo é, afinal, uma enorme irreverência contra as inundantes reverências do nosso tempo.

Sim, este é um livro irreverente e em que o mais puro ‘dogma’ sobre como deverá ler-se a sexualidade humana, em registo católico, é dito de forma muito pouco dogmática.

É essa a genialidade de Hadjadj: a de dizer levar o leitor a refletir sobre coisas muito, muito sérias, mas com um humor que se sustém ativo, da primeira á última página.

Logo na introdução, Hadjadj reconhece que ‘falar de profundidade, assim de imediato, leva a pensar em produtos domésticos. Explicam-nos que este detergente «limpa superfícies em profundidade». E isso alimenta o sonho. A dona de casa não suspeitava que o seu pavimento fosse um tal abismo. O técnico de superfície sente-se quase igual ao explorador em batíscafo. O termo é, pois, muito publicitário. Foi de propósito que o escolhi: A profundidade dos sexos – achei que isto vendia. Mas os leitores mais atinados, aqueles que já não caem nessa, logo se aperceberam da artimanha.’ (p. 15)

Ficamos certos de que a surpresa nos espera ao virar da página, se não for antes mesmo de o fazermos, ainda no rodapé da que estamos prestes a findar.

E essa surpresa pode dar-se, bem certo, como tenho vindo a dizer, no modo como diz o que nos quer dizer, mas também pelo que diz.

Hadjadj é muito criativo, original e consegue encontrar, neste livro, formas singulares de dizer o que sempre reconhecemos e tomámos como o correto e sensato.

E, nestes tempos propensos a cancelamentos e novas censuras, Hadjadj não teme que o cancelem. Pensa livremente, olhando, com assombro, para a realidade, como ela se apresenta ao olhar inteligente.

É com esta agudeza que enfrenta matérias como a ambiguidade da ideia de amor, o eugenismo, a eutanásia, o aborto, a homossexualidade, o individualismo, os novos totalitarismos, a teoria de género, etc., opondo-se quer aos angelismos, quer às sacralizações da sexualidade. Hadjadj olha para o Homem e vê-o sempre imperfeito e perfetível, uma unidade indissolúvel de alma-corpo, e, por isso, incompleto e só na dualidade totalmente humano. As dualidades, em Hadjadj, não são sinónimas de dualismo que, aliás, supera, com mestria. As dualidades são marca de tensão da unidade que quer romper-se, mas não pode perder-se…

Ao definir a sua posição, Hadjadj enfrenta as questões com que, habitualmente, são ‘desmanchadas’ as posições natalistas ou defensoras de que existe um nexo intrínseco entre a sexualidade humana e a sua abertura à vida. Hadjadj não recusa enfrentar as teorias demográficas com que se esconde o malthusianismo que recusa a natalidade por em perigo estar o mundo. E fá-lo de um modo de facto único: não diz tudo; deixa subentendidos que o leitor calcorreia, concluindo por si mesmo. É, por isso, um livro em que, havendo uma tese muito clara, uma ideia de sexualidade que é mordaz para com a teoria de género e para com uma conceção de sexualidade que condescende com a ‘cerebralização’ do sexo, a abordagem é inteligente e intrigante. Somos levados a fazer o caminho. O autor não o faz por nós… E isso também é Hadjadj.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘O método [do trocadilho] é criticável. […] É uma promessa de ligeireza que depressa vira falta de graça. Mas é também busca de espírito na matéria sonora das palavras. Eis porque os autores bíblicos a ele recorrem com frequência (as nossas traduções impedem que de tal nos demos conta): mostram que o Verbo não despreza a carne da língua. O seu procedimento aproxima-se assim do que será a minha tese principal: a matéria do homem está atulhada de espírito: e o seu sexo, longe de ser um resquício animalesco, é uma espécie de exorbitante relicário.’ (p. 14)

 

‘Meditar sobre a profundidade dos sexos é também poupar-se à tarefa ingrata de ter de explicitar a sua diferença (e a sua eventual confusão). Que é que caracteriza o temperamento da mulher por oposição ao do homem? Provém ela de Vénus e ele de Marte? Será verdade que ela não lê tão bem os mapas das estradas? Deseja ele o acto físico e brutal, ao passo que ela busca, acima de tudo, a ternura que protege? Perante estas questões, confesso de bom grado a minha preguiça. É que a minha mulher lê os mapas das estradas muito melhor do que eu. Além disso, sou do signo Virgem. Neste registo psicologizante, há apenas uma coisa que tenho por garantida: os homens abotoam a sua roupa à direita, enquanto as mulheres o fazem à esquerda. A não ser que seja o contrário.

Interessa-me, pois, menos a diferença dos sexos do que a sua ordenação recíproca. O homem torna-se tanto mais viril quanto mais se vira para a mulher, e a mulher tanto mais feminina quanto mais se volta para o homem.’ (p. 16)

 

‘Encontrar Deus, indo para o mosteiro, é uma coisa bastante óbvia. Mas encontrar Deus, indo ter com a Micheline, que acabou mesmo agora de esturrar o seu guisado de vitela, eis algo que permanece assaz inexplicável.’ (p. 18)

 

‘Esta mística da carne será, apesar de tudo, uma moral, mas uma moral trocista, zombadora, numa palavra, dramática.’ (p. 19)

 

‘O anarquista coerente começa por ultrapassar os limites e acaba a lançar bombas.’ (p. 22)

 

‘A sexualidade remonta ao século XIX. A prova está no dicionário: antes, a palavra não existia. Devido à contaminação desta «sexualidade», que reveste uma noção muito vaga, é que o sexo, agora identificado com ela, se tornou indefinido.

[…]

E hoje? Os pulmões continuam a servir para respirar. Ao estômago ninguém contesta a sua função digestiva. Mas o sexo? Asno seria quem respondesse que a sua finalidade é a procriação. E as suas outras funções também não se aguentam. Poderá dizer-se que ele se reduz à relação entre homem e mulher? Será mesmo possível crer que ele implica sobretudo a carne? Deverá então concluir-se que existe apenas para provocar em nós perguntas? Tudo isso não passa de hipóteses. O sexo é, sem dúvida, usado como um órgão, como uma arma, como uma cruz. Mas, sobretudo, desapareceu…’ (p. 30)

 

‘Com o advento da psicologia, a sexualidade já não se encontra, primeiro, nos sexos, mas no cérebro, ou no inconsciente, ou no livre arbítrio, ou na língua, ou nas convenções sociais. Deixámos de nos entender.’ (p. 32)

 

‘Discutimos tão-só o sexo dos anjos - sem carne nem gravidez, sem história nem privacidade, para lá do feminino e do masculino, longe do casamento e da circuncisão (um espírito puro não tem prepúcio). Mas os anjos têm ainda demasiada consistência. E, ademais, já não acreditamos neles. Comparemos antes o nosso sexo `famosa faca de Lichtenberg, «sem lâmina, e já sem cabo» - uma faca que não corta nada.’ (p. 37)

 

‘O que me agrada no corpo, disso me apercebo de repente, é a sua unidade vibrante, a sua presença indecomponível e, por último – digamo-lo sem medo -, a alma que transpira em todo o seu ser.’ (p. 38)

 

‘A mulher é o único ser humano que em si pode trazer outro. O seu corpo é habitável.’ (p. 128)

 

‘A diferença dos sexos é, de qualquer modo, tão profunda que as sexualidades que pensam ter-se dela libertado se limitam a reproduzi-los por interiorização ou por redistribuição dos papéis.’ (p. 143)

 

‘Pode compreender-se o choque de Pasolini, em 1975: «Fico traumatizado com a legislação sobre o aborto porque, juntamente com outros, vejo nela uma legalização do homicídio. Nos meus sonhos e no meu comportamento quotidiano – eis algo de comum a todos os homens – vivo a minha vida pré-natal, a minha feliz imersão nas águas maternais: sei que aí eu estava vivo». (p. 158)

 

‘Um útero circundou todos os heróis da história. Também todos os imbecis (entre os quais me incluo).’ (p. 159)

‘O psicologismo, com as suas cataplasmas contra o baby blues, esforça-se por esconder esta ocorrência. Promove, por gentileza, uma degradação universal: apartar o homem da tragédia para o emboscar no romance burguês – que ele sonhe encharcado em água de rosas. E desemboca, inevitavelmente, na negação do real. O grande perigo é, para ele, o traumatismo infantil; por isso, feitas as contas, é melhor suprimir o filho na altura em que ainda é puro, antes de ser pervertido ou esmagado diante dos nossos olhos. O paradoxo da nossa época encontra aqui a sua explicação: nunca a criança foi tão protegida e nunca houve tantos abortos. O seu sentimentalismo é a causa da sua rejeição do nascituro. A eliminação é, de facto, a mais segura e eficaz proteção dos menores.’ (p. 177)

 

‘[…] a coisa mais absurda nesta aventura [refere-se à história de Moisés] é que o seu rapazinho é adoptado pela filha do Faraó, ou seja, do Führer. E esta dá-lhe o nome de Moisés: «retirado das águas», são é salvo da inundação e extermínio. O prometido à morte certa tornar-se-á o libertador do seu povo. O mundo mortífero e senil renovar-se-á graças a este petiz, que passou pelas malhas. Se a sua mãe, para lhe poupar o horror, se não atrevesse a tê-lo, o horror apenas poderia perdurar.’ (p. 179)

 

‘É muito duro ser um filho desejado. A tua existência fica toda suspensa pela decisão dos pais. Os seus desejos são ordens. Se te permites qualquer desvio, cautela; chovem as lambadas, suprimem-se as sobremesas, culpabilizar-te-ão até ao tutano as recriminações lacrimosas, e não só até ao tutano, mas até à medula, até aos gâmetas que tem deram para viver.’ (p. 183)

 

‘Tenho boas razões para pensar que os infanticídios e os parricídios hão-de aumentar com o eugenismo.’ (p. 184)

 

‘[…] se for desejável outorgar ao projeto parental todas as garantias, eu recomendo ao legislador o alargamento desse prazo muito para além das doze semanas, digamos, até aos quarenta anos.’ (p. 185)

 

‘Um mundo perfeito, onde os petizes aparecessem sem turbulência, conformes às instruções do fabricante, seria pior do que um inverno nuclear. As crianças estariam congeladas desde o núcleo da sua primeira célula. Nasceriam velhas, com todos os nossos rancores e todos os nossos cuidados. A sua primavera já conseguiria perfurar a crosta das nossas preocupações. Teríamos perdido, para sempre, o espírito de infância… É-nos forçoso, então, chegar à conclusão que proibiria o fechar-se e o pronunciar-se em vez de outro: em vez de um super-homem, conforme aos estudos de mercado do homem velho, vale mais uma pequena Flor, polichinelo que salta da caixa, deficiente mental, sem dúvida, dolorosamente incapaz de entrar na maturidade consciente, mas mais apta para nos arrancar ao nosso triste horizonte produtivista, mais dotada para nos levar a rememorar a surpresa de ser e a alegria de amar.’ (p. 187-188)

 

‘Aquele que, há pouco, cantava tão alto os órgãos internos cai num subjetivismo descarnado. As determinações que a vinda ao mundo impõe, a partir do sexo, afiguram-se-lhe oprimentes. Em vez de apoio, os vínculos do corpo seriam, para ele, uma tumba. O pequeno Sartre imagina arrojar-se ao mundo a partir do seu próprio pensamento, fora das particularidades sombrias de uma conceção física, das suas escandalosas desigualdades, a fim de ser à medida do universo, ou seja, do universal. Ter nascido de Anne-Marie Schweitzer e de Jean-Baptiste Sartre não deve contar para nada. O que importa, a partir desta copulação fortuita, é nascer a cada instante das suas próprias escolhas, ex nihilo. A existência dimana, agora, não da carne, mas do nada.’ (p. 194)

 

‘O casamento é, ao mesmo tempo, um contrato e mais do que um contrato. Tendo por fim excessivo a comunhão das pessoas e o nascimento dos filhos, apresenta a estranha propriedade de não poder ser rompido sem uma íntima violência, mesmo quando as duas partes querem separar-se em termos amigáveis. A comunhão pressuposta pelo «Amo-te» interdiz toda a ruptura: o seu termo é o outro, e não esta ou aquela sua qualidade. Se eu tivesse dito apenas: «Amo o teu traseiro» ou «Amo o teu êxito», poderia desembaraçar-me, logo que o meu cônjuge depare com o fracasso ou as suas nádegas se tornem frouxas e moles. Mas eu disse: «Amo-te», ou seja, a tua pessoa na sua totalidade sucessiva, o que ela é hoje, mas também o que ela será amanhã e que ainda não conheço. Não é como num contrato com uma empresa, que posso rescindir, se eu estiver dececionado ou se o objetivo foi atingido.

Por outro lado, esta união amadurece um fruto natural. O filho não é apenas um ato de papel. Não é rasgável. Mesmo se eu já não quisesse estar com a sua mãe, sou forçado a ver os dois, a sua mãe e eu, na sua figura. Este estranho contrato produz assim uma realidade que excede as liberdades que o estabeleceram, de tal modo que elas não podem desfazê-lo, tal como o concluíram. O casamento é, ao mesmo tempo, natural e livre: é uma escolha sobre o fundo natural da ordenação recíproca dos sexos; é uma naturalização da liberdade mediante a realização desta escolha na criança.’ (p. 198)

 

‘[…] na década de noventa, só na região do Sudeste asiático, o tráfico em vista do proxenetismo fez três vezes mais deportados do que o comércio de escravos africanos, durante vários séculos.’ (p. 210)

 

‘«O sujeito ideal do regime totalitário não é o nazi ou o comunista convicto, mas o homem para quem a distinção entre facto e ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é, as regras do pensamento) já não existem».’ [citando Hannah Arendt] (p. 217)

 

‘O individualismo é, assim, a base do totalitarismo, e não o seu inimigo principal, como tantas vezes se pensa. Requerem-se seres isolados, «desapontados», sem fortes vínculos familiares ou religiosos, portando dispostos a fundir-se numa massa: «O isolamento é pré-totalitário. Os homens isolados não têm, por definição, qualquer poder. […] Estar desenraizado pode ser a condição preliminar da superfluidade».’ [citando Hannah Arendt] (p. 217)

 

‘No romance 1984, é normal vaporizar os avós. Todo o avozinho, enquanto tal, resiste. Constitui uma autoridade histórica e memorial, que ameaça o monopólio da Doutrina. Tenta opor-lhe as abordagens de uma sabedoria de experiência. A experiência, que arcaísmo! A ideologia possui o Saber absoluto. Tem na sua mão a lei da Natureza ou da História. É a Providência do mundo. Por esta razão, cabe-lhe antecipar as eliminações que, de qualquer maneira, o curso previsível das coisas levaria a cabo. Por gentileza; por eutanasismo, por assim dizer. Não pode, de facto, apadrinhar nenhum crime, mas tão-só «uma morte muito doce».’ (p. 217)

 

‘O facto de eu ser macho, e portanto destinado à fêmea, recorda-me que não sou, por mim mesmo, o Homem integral, e que só me torno tal ao virar-me para o outro sexo em vista de uma fecundidade comum. […] Descubro, atónito, que o meu órgão masculino é feito para órgão feminino, de modo que me pertence menos a mim do que a esta mulher: que seria uma chave sem a fechadura? E vejo também que os nossos sexos juntos existem para que o seu beijo floresça numa terceira pessoa: que seria da chave e da fechadura sem uma porta que se abre? Esta coisa da carne revela-se uma dupla desapropriação e empenha-me num terna comunhão. O meu sexo só se encontra a si mesmo no outro. E os dois, ao encontrarem-se, fazem brotar de si ainda outro (e em corpo).’ (p. 258 e 260)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)


'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

  (‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião) Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Ru...