‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural'
Luís Manuel Pereira da Silva*
Cerca de duas décadas passaram desde que o rei Ulisses partiu de Ítaca, deixando Telémaco, o filho, ainda pequeno (com uns três anos), e Penélope, a sua ‘nunca-viúva’ fiel, esperançosa do seu (mesmo que tardio, mas nunca inesperado) regresso. Os pretendentes abundam e esperam pela hora em que se acabe de tecer a condição de disponibilidade sempre adiada.
Regresso…
Fizemos este caminho de vinte e quatro passos (tantos quantas as letras do alfabeto grego) sob a inspiração da ideia de ‘regresso’.
Explorámos a ambiguidade de ‘regresso’ – entre o verbo que nos envolve a todos e o substantivo que confina a narrativa à história de um sujeito concreto, neste caso, Ulisses – para que dela pudéssemos retirar elementos de confluência ou divergência entre as influências clássica e cristã, na cultura que inspiramos e expiramos.
Chegámos ao momento de, com Ulisses, fruir (com) a chegada… Muitos são os elementos a guardar deste regresso.
Como observa Maria Helena da Rocha Pereira, a ideia do regresso é relevante, facto observável, imediatamente, na frequência do termo (ou palavras da família) que supera a centena[1] de aparições no texto homérico. Não é despiciendo, também, constatar que, dos vinte e quatro cantos da Odisseia (ou ‘rapsódias’, segundo algumas edições), doze (metade, portanto) tenham por cenário a Ítaca tão pretendida e onde Ulisses já se encontra, mas em que o encobrimento do protagonista que só progressivamente vai sendo desvelado, torna densa e tensa a tarefa da efetiva chegada. Ulisses está em Ítaca, mas vai chegando, pouco a pouco. Só mesmo no último canto se obtém, finalmente, a pretendida paz.
Há algo de universalmente transferível deste ‘regresso’ de Ulisses.
Esta universalidade e caráter simbólico e permanente traz-nos à memória a também universal condição violenta da humanidade, genialmente descrita em breve texto de Jorge Luís Borges:
“In memoriam J.F.K.
Esta bala é antiga.
Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevideu, Arredondo, que passara muito tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projéctil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um actor que as palavras de Shakespeare tinham convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII a vingança serviu-se dela para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, a meio da pública hecatombe de uma batalha.
Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é apenas própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi o punhal triangular que ceifou o colo de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que Sócrates bebeu num entardecer.
No dealbar do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão acabar com os homens e com o seu prodigioso e frágil destino.”[2]
No regresso de Ulisses, está essa ‘bala antiga’, de sempre. A ‘bala’ que é, aqui, a condição de ser indigente, sedento de uma água tantas vezes substituída e tão raras vezes autenticamente descoberta.
No regresso de Ulisses, habita o sonho do Éden, essa marca profunda e que inunda, presente, como condição escondida e tão indecifrável, no desejo de Deus manifesto sob tantos disfarces.
O ‘nóstos’, o regresso demorado de Ulisses, mora no coração humano como sinal indelével da origem, múltiplas vezes negada ou equivocadamente identificada. De tão inundante, chega a expressar-se como ânsia inapagável de regresso, ‘nostalgia’ de uma morada original a que se pretende voltar.
No primeiro passo de cada um, morava já o último, como esperança regenerada, sonho de um paraíso que se opõe ao ditame que repousa à entrada do Inferno de Dante: ‘Abandonai toda a esperança os que aqui entrais’.
Mas, como com Ulisses, o regresso faz-se encoberto, irreconhecível e a exigir duro combate sobre pretendentes aguerridos.
Esperar-nos-á, porém, Penélope, fiel e, com ela, o futuro sempre aberto, densamente simbolizado no filho que cresceu e se torna robusto.
O regresso, tornado desejo de chegada, expressa-se como sede profunda. Sede que alguns homens do século XIX e seus herdeiros (Feuerbach, Marx, Nietzsche, etc.) interpretaram, de forma equívoca, como sendo a responsável pela realidade desejada. Do equívoco partiram em direção à negação de tudo o que dizia respeito à fonte geradora da sede. Daí à perseguição por consideração de que a religião, que nos religa à fonte original (e nos faz reler o mundo com o novo olhar nascido dessa religação), não mais era do que um ópio ou uma alienação, foram curtos passos.
Não é a sede, porém, que origina a água, mas a ausência da água a ‘fonte’ da sede.
Contrariamente ao que presumiram os homens desistentes dos últimos dois séculos, o sonho que habita o homem e que o Cristianismo nomeia, à luz da Revelação, ‘abarca tanto o esperado como o esperar’[3]. No esperar, na sede ainda sem nome, aninha-se o prometido, o esperado, não nascido do esperar, mas nele feito emergência, um incontrolado emergir.
Bem o sabem os homens que leram o Homem como poucos: ‘o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós [Deus Criador]’[4].
A ‘bala’ da violência é uma só. O regresso a Ítaca um só, também.
Ulisses e Adão encontram-se no partir e no voltar, como seres de um regresso ao eterno. O tempo caminha para a paz definitiva e autêntica felicidade aqui só analógica e provisoriamente visitadas.
Ítaca é, na história de Ulisses, imagem do Éden por que ansiamos e a que esperamos regressar: a mão de Deus em que fomos desejados perfeitos e a cuja perfeição retornaremos.
[1] Cfr. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p.155.
[2] Jorge Luís Borges, Obras Completas, II: 1952-1972, S/L, Editorial Teorema, 1998, p. 229.
[3] Jürgen Moltmann, Teología de la esperanza, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1989, p. 20.
[4] Santo Agostinho, Confissões, Porto, Editorial A.I., 198411, n.º1, p. 27.