domingo, fevereiro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 9 | Mistério nas minas do Braçal

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

Alberto Ferreyra*



- Oh, avô, encontrei esta peça preta, nos seus arrumos.

- Não te disse para não andares a remexer nas minhas coisas? – No olhar do avô de M. adivinhava-se um brilho de regozijo por aquela aparente coincidência ocorrer. Uma peça de chumbo preta dava-lhe o pretexto de que precisava para contar umas das suas vivas memórias que descrevia como quem está a narrar-nos num evento atual.

- Tem aqui qualquer coisa escrita.

- 3 de agosto de 1958.

- Isso mesmo! – M. não desprendia os olhos da peça de chumbo, como que desejando dar-lhe a leveza que o chumbo não tem e fazê-la voar no tempo e no espaço. – Como é que isso veio aqui parar? Diga, avô, diga. – M. suspeitava que grandes mistérios se ocultavam naquela aparentemente simples peça de chumbo.

- Recebi-a das mãos do Manel ‘dois gumes’, momentos antes de partir para a eternidade.

- Credo, avô!

- Temos de partir destas terras do Antuã para as serranias do braçal, onde desde o tempo dos romanos se explorava o interior da terra para dela retirar minérios. Sem exploração durante séculos, foram reativadas em 1836, tendo sido, mesmo as primeiras do país a que foi feita concessão de exploração.

M. não descansou enquanto não convenceu o avô a fazer uma viagem até ao belo cenário da história de que falava a peça de chumbo com data já um pouco delida do tempo…

Quando o desejo toma conta da alma, o espaço parece esfumar-se…

A estrada dera lugar à terra batida, outrora lisa como a mais atapetada autoestrada de hoje… Os arbustos e ervas assumiram o lugar do outrora buliçoso sítio de um labor que exalava das entranhas da terra. O silêncio era, agora, a única voz que restava.

O avô de M. adiantou-se um pouco. Os olhos ficaram rasos de lágrimas, mas conteve-se, para que M. e o irmão, J., que os acompanhara, não se apercebessem.

Mas M. era atenta.

Pousou, delicadamente, a mão sobre o ombro do avô e recostou a cabeça. Ambos olhavam para o cenário, agora destruído pelas enxós e britadeiras do tempo…

- Isto é o que resta do forno alto. Aqui trabalhou Manel ‘dois gumes’ os seus últimos anos de vida. Daqui recolheu, da última produção, a peça que encontraste. Este era o fim da linha. Aqui, o minério extraído era fundido, com outros produtos químicos, de modo a obter-se em estado de fusão, o chumbo que, líquido, era vertido para as formas que tinham um peso correspondente a cerca de 40 ou 50 quilos. Esta peça era apenas uma amostra para se poder apreciar a qualidade do produto que saía de cada campanha. Só era posto em funcionamento quando havia quantidade suficiente para produzir as quantidades necessárias à venda, na maioria, para exportação.

- Quem aqui trabalhava estava em melhores condições do que os que tinham de descer às minas, não, avô?

- Não era bem assim. Bem certo que, nesses tempos, não havia máquinas nem as condições de que, hoje, dispomos. No interior da terra, a temperatura é sempre baixa e a humidade é abundante. Os homens tinham de subir, com frequência, para secar os grossos casacos com que se cobriam, mas que, quase que de hora a hora tinham de vir secar. Mas havia a vantagem de se contar com uma temperatura estável e previsível. No forno alto, que tinha este nome mas era, afinal, o último ponto de todo o circuito de produção e o que se encontrava mais perto do rio, as temperaturas era de inferno. Os trabalhadores tinham de sair a cada duas horas para beber leite e respirar. Saíam amarelos. Os gases exalados pelos produtos envolvidos na produção do chumbo pareciam queimar até às fímbrias da alma.

- O avô parece um poeta a falar…

- Mas estou ainda a ver todo o movimento. E a recordar-me da cara daqueles pobres diabos. Também eu trabalhei nestas minas, ainda miúdo… (Quem me dera andar, como tu, na escola. Mas os tempos eram outros!). Aqui trabalhou, também, o Manel ‘dois gumes’. Teria uns trinta e poucos anos, quando nos conhecemos. Regressara de uns tempos na região das Antilhas. Todos tinham enorme admiração por ele. Era um homem fechado, de poucas palavras, mas com quem se podia contar, sempre. As recomendações eram de que, no forno alto, se fizesse uma pausa a cada duas horas, mas ele só fazia ao fim de três horas, para permitir que os seus outros três companheiros pudessem fazer mais intervalos. Acompanhavam-no, neste forno, três irmãos, filhos do Joaquim da Fonte.

- Os nomes, nestas terras, são muito engraçados, avô.

- Estes são os nomes com que os lembramos, mas, muitos deles eram ‘silvas’ ou ‘bastos’ ou ‘macedos’… Mas as ‘alcunhas’ colavam-se à pele e pegavam-se ao espírito. Tomávamos nova identidade que não mais se desprendia de nós. O Joaquim da Fonte morrera, em inícios da década de quarenta, na última tragédia acontecida nestas minas. O sistema de minas aqui criado era longo e prolongava-se pelas minas da malhada, chegando até à mina Francisca. Existiam sistemas de drenagem da água para evitar acumulação excessiva de águas. Um desses meios de drenagem era garantido pela mina do esgoto. Esse ano fora, porém, particularmente chuvoso. Com as chuvas, vieram ramos, troncos e entulhos que se acumularam na entrada da mina do esgoto.

Os oitos homens, sete adultos e uma criança de doze anos, estavam no fundo do poço, a um salto da escada que lhes dava acesso ao cimo. A água acumulada ia-se encaminhando, pela mina do esgoto, em direção à saída, rumo às águas do rio que, destas minas para baixo, toma o nome de rio mau. (Dizem os que aqui trabalharam que a história que agora te conto é que determinou que o rio bom passasse a chamar-se, daqui para baixo, ‘rio mau’. Mas outros dizem que o chumbo que inquinava estas águas foi o responsável pela mudança de nome. Deixo à tua imaginação, M., decidir quem melhor batizará de ‘mau’ um rio…) Os entulhos acumulados fizeram, porém, refluir a água, apanhando desprevenidos os sete homens e a criança.

- Então e que mistério se esconde nesta peça, avô?

- Quando a tempestade acalmou, os muitos trabalhadores destas minas partiram em busca dos sete homens e da criança. Nunca mais foram vistos. Fizeram-se funerais e as lágrimas não mais secaram nos rostos das viúvas, e daquela pobre mãe, já viúva. Diz-se que morreu pouco tempo depois, de desgosto.

- Continuo sem perceber, avô.

J. ouvia, apenas. Deixava-se levar pela curiosidade da irmã, que verbalizava o que ele mesmo pensava.

- Disse-te que recebi esta peça das mãos do Manel ‘dois gumes’. Curiosamente, não me perguntaste porque tinha tal alcunha. O mistério esconde-se nas suas mãos. Encontrei o Manel ‘dois gumes’ já em 1956, pouco antes da última produção de chumbo destas minas, de que se guarda registo nessa peça que achaste entre as minhas recordações. Quando ma entregou, contou-me a sua história e porque tinha vindo das Antilhas.

Fugira para lá em meados da década de 40, depois de ter andado fugido. Fugira da sombra do seu passado, da culpa de se sentir um indevido escolhido. Manel era a criança que, com os outros sete homens, fora chorada. No último momento, o ombro de Joaquim da Fonte servira-lhe de trampolim para o último degrau da escada a que se agarrara, escapando ao infortúnio dos seus outros sete companheiros. Ao lançar a mão ao degrau, uma dor lancinante quase o fez desprender-se. Mas resistiu, pois as últimas palavras de Joaquim que lhe mandara que se erguesse para a vida sobre o seu ombro, ainda lhe ressoavam ao ouvido: ‘foge desta vida desgraçada…’. Ganhou forças e subiu, entre as grossas gotas de água que continuavam a escorrer. Obedecera, durante anos, ao que lhe impusera o Joaquim da Fonte, mas a culpa de ter abandonado a mãe e de não ter deixado qualquer indício de que a sua vida dependera da generosidade daquele samaritano do fundo da terra fizeram-no regressar. Ninguém o reconheceu, pois partira criança e regressara homem feito. A marca nas suas mãos sempre as explicara com uma qualquer luta própria das ilhas Antilhas. Escolhera trabalhar junto dos filhos daquele a cujo ombro devia a vida, mas nunca denunciando, senão pela generosidade, quanto devia ao seu pai. Procurara que as vidas deles fossem mais longevas do que a sua, dispensando-os, por isso, da exposição aos químicos que o forno alto sempre dispensava. Feita a última extração, em agosto de 1958, guardou a amostra que só pôde conservar sua por mais uns meses, pois um doloroso tumor lhe tomara conta dos pulmões, ainda que a generosidade com que preservou os seus companheiros os tenham salvado de igual fim. Quando me entregou esta peça, confiou-me, ainda, um arbusto, que me pediu que plantasse à entrada da mina do esgoto. Estranhei aquele pedido, mas cumpri-o. A planta que me confiou trouxera-a das Antilhas e dá pelo nome de ‘dama da noite’. Só floresce à noite, exalando um intenso perfume que se sente ao longe e atrai até os mais cegos dos morcegos. Queria assegurar-me, assim, que, à triste noite dos mineiros, sobrevém a esperança que rompe toda a escuridão da vida humana…

Se bem procurares, ainda ali floresce, viçosa. Se não a vês, sente-lhe o odor.


 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Sabes, leitor... | 14 | Marca de água do livro de Gilles Lipovetsky, 'O império do efémero'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gilles Lipovetsky, O império do efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.

.Foi com ‘O império do efémero’ que cheguei a Lipovetsky. Estávamos em 1996. O livro fora editado, pela primeira vez, em Portugal, em 1989, sendo o original francês de 1987. As minhas anotações registam que o comprei na livraria ‘Latina’, na cidade do Porto, onde frequentava, então, o curso de Teologia. Recordo-me de quanto me marcou a leitura deste livro, associada à de dois outros, desta feita de autores espanhóis: ‘Ideias e crenças do homem atual’, de Luis González-Carvajal, e ‘O homem light’, de Enrique Rojas. Pela pertinência das análises, talvez venha a dedicar-lhes uma destas rubricas.
Mas detenhamo-nos, agora, em Lipovetsky e no seu ‘O império do Efémero’.
Outros livros de Lipovetsky vieram a preencher os meus tempos de leitura. ‘O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos’, ‘a cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada’, ‘a era do vazio’, ‘a sociedade da deceção’. Neste último, encontramos o conceito de hipermodernidade, fazendo justiça a uma característica deste sociólogo francês: a sua capacidade de criar termos e conceitos novos. Assim acontece, aliás, com a ideia de ‘moda’, omnipresente neste livro em que, agora, detemos a nossa atenção. O termo, em si, não é novo. É-o, sim, o conceito que ele lhe associará, como veremos, mais adiante.
Surpreendeu-me, desde a primeira hora, no pensamento de Lipovesty, a coragem e a fina análise da sociedade, que, não sendo pessimista, ousa pôr em causa o otimismo e a ‘generosidade’ com que muitos a pretendem ler. Não o faz por motivos religiosos (tende-se a associar o pessimismo em relação ao progressismo otimista…), mas pela lupa que lhe faculta a linha sociológica que adota (lembrando, aliás, atitude que iremos encontrar, também, num outro afamado sociólogo contemporâneo, Zigmunt Bauman). Revi-me, ao longo da leitura dos seus livros, em muita da sua crítica. Não, certamente, pelas motivações de fundo (não se lhe percebe uma leitura transcendente da existência…), mas pela atitude de quem antecipa o futuro das decisões hoje tomadas. Recupero, a este propósito, convicção que tenho como profundamente enraizada: a distinção entre o progressista e o conservador está no papel do futuro. O progressista nada se preocupa com o impacto futuro da sua decisão atual: pode fazê-la, tomá-la. Então, toma-a! Não é assim com o conservador que antecipa o futuro e vislumbra o impacto da sua hipotética decisão atual. Prevendo ser-lhe nefasta, desiste dela ou ameniza-a, de forma a diminuir os custos futuros, mesmo que se lhe apresente como prazerosa a hipótese na mesa.
Face a este retrato, mesmo que ele não se entenda assim, interpreto Lipovetsky como um conservador, isto é, alguém que olha para o agora e vê nele os custos das nossas decisões. (Que me perdoe se não gosta do epíteto, mas estou certo de que reconhecer que alguém conserva é elogioso, pois ‘quem não conserva deixa estragar’, como venho dizendo, repetidamente.)
Mesmo se não se reconhece como um conservador, este sociólogo e filósofo francês é um crítico do otimismo progressista. Veremos como é adequada esta nossa leitura, na análise ao livro.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

‘O império do efémero’ gravita em torno de um conceito axial: a moda. Entende-a, porém, não como o âmbito da economia dedicado à decoração ou ao ‘estilo’ mais ou menos afetado da indumentária ou seus adereços, mas como uma categoria interpretativa, como algo que define o ‘modus cogitandi’ contemporâneo. Ele fala de ‘forma-moda’. Como, na escolástica a forma era o que conferia a natureza própria a uma matéria, a forma-moda é o modo próprio de ser da contemporaneidade.
E como a define Lipovestky?
Como um estado permanente de mudança.
Toma, para a sua análise, a referência histórica da revolução do maio de 68. Na senda do que defendeu Raymond Aron, que a designou como a ‘revolução inexistente’, Lipovetsky considera esta como a primeira revolução sem causa. Para a defesa desta tese, discorda da ideia de que a moda tenha origem em motivos de ordem económica ou de distinção de classes para a fazer emergir do individualismo e do espírito da fugacidade. A concretizar este motivo está a associação entre a moda e a juventude, identificada como o modelo a seguir (também nesta matéria Lipovestky coincidirá com um autor conotadamente conservador: Roger Scruton). Esta associação comportará um risco: o da perda da memória, tornando tudo efémero e prontamente ultrapassado.
É a força desta constatação que explica a controvérsia que o livro gerou, no contexto francês, aquando da sua publicação. O autor ousara colocar a mão na toca da víbora sobre o qual, como francês, assentava morada. Como poderia pensar-se a França de então e de hoje sem lhe associarmos a omnipresença da moda? Mas, a dar como certeira a análise de Lipovetsky, não estará já, neste espírito, a origem da sua caducidade e não estaremos, já, a sentir o odor fétido do seu sucumbir?
Adivinharam-no os adversários do nosso autor e por isso não lho perdoaram.
Mas o que eco das terras gaulesas, que preconizam o individualismo total, defensor de que seja um direito a mãe eliminar o seu filho totalmente dependente de si, nos leva a reconhecer é que Lipovetsky tinha razão e a mudança pela mudança retira o Humano do chão donde emergiu. O individualismo extremo destrói a pessoa, cinde as relações e põe em risco as próprias democracias. O império do efémero torna efémero tudo o que devia permanecer.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘[…] a moda é menos o sinal das ambições de classe do que a saída do mundo da tradição, é um desses espelhos onde se dá a ver o que faz o nosso destino histórico mais singular: a negação do poder imemorial do passado tradicional, a febre moderna de novidades, a celebração do presente social.’ (p. 17)

‘A moda começou a exprimir, no luxo e na ambiguidade, esta invenção própria do Ocidente: o indivíduo livre, desamarrado, criador, e o seu correlativo, o êxtase frívolo do Eu.’ (p. 65)

‘A moderna idade democrática honrou as frivolidades, elevou à categoria de arte sublime a moda e os temas subalternos. Num movimento de que o dandismo oferece uma ilustração peculiar mas exemplar, o fútil (decoração, lugares frequentados, trajos, cavalos, charutos, refeições) tornou-se coisa primordial, em igualdade com as ocupações tradicionalmente nobres.’ (p. 116)

‘Na raiz da promoção da moda, o repúdio do pecado, a reabilitação do amor de si, das paixões e do desejo humano em geral.’ (p. 119)

‘A Alta Costura, menos do que disciplinar ou uniformizar a moda, individualizou-a.’ (p. 130)

‘Na origem do pronto-a-vestir está a democratização última dos gostos de moda trazida pelos ideais individualistas, pela multiplicação de jornais femininos e pelo cinema, mas também pelo apetite de viver no presente, estimulado pela nova cultura hedonista de massa.’ (p. 155)

‘A expansão de uma cultura jovem durante os anos cinquenta e sessenta acelerou a difusão dos valores hedonistas e contribuiu para dar um novo rosto à reivindicação individualista.’ (p. 162)

‘Um novo princípio de imitação social se impôs, o do modelo jovem.’ (p. 165)

‘Com o individualismo moderno, o Novo encontra a sua plena consagração: por ocasião de cada moda, há um sentimento, por muito ténue que seja, de libertação subjetiva, de alforria dos hábitos passados’. (p. 246)

‘[…] as indústrias culturais instituem na esfera do espetáculo o primado do eixo temporal peculiar à moda: o presente.’ (p. 282)

‘A uma cultura da narrativa substitui-se até certo ponto uma cultura do movimento; a uma cultura lírica ou melódica substitui-se uma cultura cinemática construída com base no choque e no dilúvio de imagens, na busca da sensação imediata, da emoção da cadência sincopada.’ (p. 283-284)

‘Maio de 68 encarna […] uma figura inédita: sem objetivo bem programa definidos, o movimento foi uma insurreição sem futuro, uma revolução no presente que demonstrou ao mesmo tempo o declínio das escatologias e a incapacidade de propor um caminho claro para a sociedade do futuro.’ (p. 327)

‘A deriva fluída do sentido é, por certo, acompanhada da banalização-espetacularização da política, da queda do militantismo e dos efetivos sindicais, do alinhamento do espírito de cidadania pela atitude de consumo, de indiferença e por vezes de desafetação perante as eleições: outros tantos aspetos reveladores de uma crise do homo democraticus idealmente concebido.’ (p. 332-333)

‘[…] a moda tem razões que a razão desconhece.’ (p. 353)

‘A moda é a nossa lei porque toda a nossa cultura sacraliza o Novo e consagra a dignidade do presente.’ (p. 359)

‘Há mais estímulos de toda a espécie, mas mais inquietações de viver, há mais autonomia privada, mas mais crises íntimas. Eis a grandeza da moda, que reconduz sempre o indivíduo a si próprio; eis a miséria da moda, que nos torna cada vez mais problemáticos a nós mesmos e aos outros.’ (p. 382)

 


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

terça-feira, fevereiro 04, 2025

Laicidade tem de significar ‘silenciamento das religiões’? A propósito da abertura do ano judicial e da ausência das religiões

 Artigo originalmente publicado no site da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro

Inicio esta reflexão com uma declaração de apreço e reconhecimento: admiro a sensatez evidenciada pelos constituintes de 1976 no que respeita à matéria deste texto – a relação entre o Estado e a Religião.

Na verdade, os constituintes souberam encontrar um equilíbrio que a história da República mostra que era necessário (ainda que difícil!) encontrar. O laicismo da Primeira República e a difícil garantia prática (ainda que, no texto escrito, ela se afirmasse) da liberdade religiosa da Segunda criavam um quadro exigente para os que tiveram a difícil tarefa de redigir uma Constituição, após a Revolução de Abril.

Mas conseguiram-no. E, entre os seus maiores méritos, está, curiosamente, um silêncio.

Os Constituintes tiveram a inteligência de evitar o termo a que as posições democráticas associam, habitualmente, a justa relação entre Estado e Religião: laicidade!

A sua omissão do texto da Constituição foi uma decisão inteligente e prudente. Como venho sustentando, a nossa Constituição não utiliza o termo: opta pela descrição.

É que, com efeito, a inclusão do termo, dado ser ambíguo na sua interpretação (quando não, mesmo, equívoco), tem sido fonte de tremendas dificuldades, nos países que optaram por fazê-lo. O mais paradigmático é, bem certo, o caso da República Francesa que, na senda do espírito da ‘sua’ Revolução, desconfia da religião e prefere fazer de conta que ela não existe. Ao incluir, logo no artigo 1.º, a referência a que a república se define como ‘laica’ (o artigo afirma que ‘A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.’) favorece toda uma abordagem elástica da relação entre Estado e Religião que, no caso gaulês, tem dado prevalência a uma leitura de pendor laicista. Como é sabido, a França, isto é, o seu Estado, tem um problema com as religiões. Não sabe o que fazer com elas, como se, para ele (Estado), elas não existissem (mas existem e fazem parte do sentir do seu povo...).

Clarifiquemos…

O termo ‘laicidade’, etimologicamente derivado de ‘laos’ (em grego, ‘povo’) evoca a ideia de uma distinção entre o âmbito político estrito (na sua configuração organizacional enquanto Estado) e o domínio do religioso. Repercute, mais profundamente, a distinção entre o sagrado e o profano.

Reparemos, porém, que a distinção não significa a indiferença ou separação sem relação. Como, aliás, acontece em todas as matérias em que falar de dualidade não implica, necessariamente, sustentar um qualquer dualismo. Assim quando se fala na dualidade antropológica ‘corpo-alma’ que, para muitos, é pretexto para o dualismo que coloca um em oposição ao outro, redundado na afirmação de que só num dos dois está a realidade humana.

Este fenómeno ‘epistémico’ (no âmbito do conhecer e da configuração do saber) verifica-se, também, quando falamos da laicidade.

A distinção – legítima e, na perspetiva católica, correspondente ao desejo do próprio Jesus Cristo de ‘dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César’ – tem servido, porém, de pretexto para se sustentar um dualismo que, afunilando cada vez mais a interpretação, conduz à convicção de que o Estado deverá compreender-se como fim em si mesmo (cabendo aos cidadãos servi-lo ‘acefalamente’ como se tudo visasse o bem do Estado e não, afinal, fosse o Estado, já, a servir os cidadãos e a procurar o bem destes…), nada mais havendo entre estes e o cidadão individualmente considerado e omitindo toda a relevância das estruturas e comunidades intermédias onde este se realiza, enquanto pessoa e, afinal, cidadão…

É fácil, face a esta breve descrição, constatar que o termo ‘laicidade’ se presta, portanto, a derivas que, sendo bem-intencionadas, inicialmente (o Estado não é a Religião; a Religião não é o Estado, ganhando ambos em liberdade com esta distinção…), se encaminham, por abuso de interpretação, para um beco de que dificilmente se sairá, sem custos graves: o Estado passa a gravitar em torno de si mesmo.

Ora, a leitura atenta da Constituição da III República permite constatar que os nossos constituintes perceberam (consciente mente ou talvez não…) que a equivocidade do termo exigia que se tivesse o cuidado de não o utilizar, porque, como se afirma no artigo 41.º da constituição (o primeiro, aliás, em que se fala desta matéria), o que está em causa é a liberdade religiosa e não a neutralidade absoluta do Estado. O Estado serve os cidadãos e, como eles são religiosos, deve garantir as condições para que estes se vejam respeitados enquanto religiosos. Por esse motivo, o Estado não se identifica com nenhuma religião, mas obriga-se a respeitar a liberdade dos seus cidadãos. Repare-se que a formulação adotada no número 4 do artigo 41.º coloca o acento na liberdade e não na já acima enunciada neutralidade do Estado. O que este número defende é, de facto, que o Estado não pode imiscuir-se no que é matéria das religiões, ao dizer que ‘As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.’ O Estado limita-se quanto a tiques cesaropapistas, mas não se reconhece o poder de silenciamento do âmbito religioso. Isso está ausente da nossa Constituição que, aliás, na linha do que eminentes constitucionalistas (entre os quais merece destaque o professor Jorge Bacelar Gouveia, que detidamente, analisa estas matérias em ‘Direito da Religião: laicidade, pluralismo e cooperação nas relações Igreja-Estado’, editado pela Almedina) vêm defendendo, colide com a ‘separação cooperativa’ que se observa no espírito da nossa Constituição.

Os constituintes de 1976 foram inteligentes. Perceberam que a história nos ensinara a não repetir o ‘erro de Afonso Costa’ (aludo ao livro de Amadeu Gomes de Araújo, editado pela Alêtheia e que recorda que entre as causas principais da queda da I República, está a sua aversão e, mesmo, afronta à religião.). Sê-lo-ão, igualmente, os intérpretes do espírito dos constituintes?

Os tiques laicistas, e os desejos de que o termo equívoco (omisso, mas sempre forçado a tornar-se latente) favoreça o emergir de uma atitude indiferente do Estado para com o real sentir e viver dos cidadãos, estão sempre à espreita.

Avançamos ou regredimos (ao que não queremos repetir) quando a ausência de representantes religiosos em cerimónia de abertura de ano judicial se considera motivo de regozijo?

Temo o que os sinais fazem presumir…

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

  (‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião) Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Ru...