sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Sabes, leitor... | 14 | Marca de água do livro de Gilles Lipovetsky, 'O império do efémero'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gilles Lipovetsky, O império do efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.

.Foi com ‘O império do efémero’ que cheguei a Lipovetsky. Estávamos em 1996. O livro fora editado, pela primeira vez, em Portugal, em 1989, sendo o original francês de 1987. As minhas anotações registam que o comprei na livraria ‘Latina’, na cidade do Porto, onde frequentava, então, o curso de Teologia. Recordo-me de quanto me marcou a leitura deste livro, associada à de dois outros, desta feita de autores espanhóis: ‘Ideias e crenças do homem atual’, de Luis González-Carvajal, e ‘O homem light’, de Enrique Rojas. Pela pertinência das análises, talvez venha a dedicar-lhes uma destas rubricas.
Mas detenhamo-nos, agora, em Lipovetsky e no seu ‘O império do Efémero’.
Outros livros de Lipovetsky vieram a preencher os meus tempos de leitura. ‘O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos’, ‘a cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada’, ‘a era do vazio’, ‘a sociedade da deceção’. Neste último, encontramos o conceito de hipermodernidade, fazendo justiça a uma característica deste sociólogo francês: a sua capacidade de criar termos e conceitos novos. Assim acontece, aliás, com a ideia de ‘moda’, omnipresente neste livro em que, agora, detemos a nossa atenção. O termo, em si, não é novo. É-o, sim, o conceito que ele lhe associará, como veremos, mais adiante.
Surpreendeu-me, desde a primeira hora, no pensamento de Lipovesty, a coragem e a fina análise da sociedade, que, não sendo pessimista, ousa pôr em causa o otimismo e a ‘generosidade’ com que muitos a pretendem ler. Não o faz por motivos religiosos (tende-se a associar o pessimismo em relação ao progressismo otimista…), mas pela lupa que lhe faculta a linha sociológica que adota (lembrando, aliás, atitude que iremos encontrar, também, num outro afamado sociólogo contemporâneo, Zigmunt Bauman). Revi-me, ao longo da leitura dos seus livros, em muita da sua crítica. Não, certamente, pelas motivações de fundo (não se lhe percebe uma leitura transcendente da existência…), mas pela atitude de quem antecipa o futuro das decisões hoje tomadas. Recupero, a este propósito, convicção que tenho como profundamente enraizada: a distinção entre o progressista e o conservador está no papel do futuro. O progressista nada se preocupa com o impacto futuro da sua decisão atual: pode fazê-la, tomá-la. Então, toma-a! Não é assim com o conservador que antecipa o futuro e vislumbra o impacto da sua hipotética decisão atual. Prevendo ser-lhe nefasta, desiste dela ou ameniza-a, de forma a diminuir os custos futuros, mesmo que se lhe apresente como prazerosa a hipótese na mesa.
Face a este retrato, mesmo que ele não se entenda assim, interpreto Lipovetsky como um conservador, isto é, alguém que olha para o agora e vê nele os custos das nossas decisões. (Que me perdoe se não gosta do epíteto, mas estou certo de que reconhecer que alguém conserva é elogioso, pois ‘quem não conserva deixa estragar’, como venho dizendo, repetidamente.)
Mesmo se não se reconhece como um conservador, este sociólogo e filósofo francês é um crítico do otimismo progressista. Veremos como é adequada esta nossa leitura, na análise ao livro.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

‘O império do efémero’ gravita em torno de um conceito axial: a moda. Entende-a, porém, não como o âmbito da economia dedicado à decoração ou ao ‘estilo’ mais ou menos afetado da indumentária ou seus adereços, mas como uma categoria interpretativa, como algo que define o ‘modus cogitandi’ contemporâneo. Ele fala de ‘forma-moda’. Como, na escolástica a forma era o que conferia a natureza própria a uma matéria, a forma-moda é o modo próprio de ser da contemporaneidade.
E como a define Lipovestky?
Como um estado permanente de mudança.
Toma, para a sua análise, a referência histórica da revolução do maio de 68. Na senda do que defendeu Raymond Aron, que a designou como a ‘revolução inexistente’, Lipovetsky considera esta como a primeira revolução sem causa. Para a defesa desta tese, discorda da ideia de que a moda tenha origem em motivos de ordem económica ou de distinção de classes para a fazer emergir do individualismo e do espírito da fugacidade. A concretizar este motivo está a associação entre a moda e a juventude, identificada como o modelo a seguir (também nesta matéria Lipovestky coincidirá com um autor conotadamente conservador: Roger Scruton). Esta associação comportará um risco: o da perda da memória, tornando tudo efémero e prontamente ultrapassado.
É a força desta constatação que explica a controvérsia que o livro gerou, no contexto francês, aquando da sua publicação. O autor ousara colocar a mão na toca da víbora sobre o qual, como francês, assentava morada. Como poderia pensar-se a França de então e de hoje sem lhe associarmos a omnipresença da moda? Mas, a dar como certeira a análise de Lipovetsky, não estará já, neste espírito, a origem da sua caducidade e não estaremos, já, a sentir o odor fétido do seu sucumbir?
Adivinharam-no os adversários do nosso autor e por isso não lho perdoaram.
Mas o que eco das terras gaulesas, que preconizam o individualismo total, defensor de que seja um direito a mãe eliminar o seu filho totalmente dependente de si, nos leva a reconhecer é que Lipovetsky tinha razão e a mudança pela mudança retira o Humano do chão donde emergiu. O individualismo extremo destrói a pessoa, cinde as relações e põe em risco as próprias democracias. O império do efémero torna efémero tudo o que devia permanecer.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘[…] a moda é menos o sinal das ambições de classe do que a saída do mundo da tradição, é um desses espelhos onde se dá a ver o que faz o nosso destino histórico mais singular: a negação do poder imemorial do passado tradicional, a febre moderna de novidades, a celebração do presente social.’ (p. 17)

‘A moda começou a exprimir, no luxo e na ambiguidade, esta invenção própria do Ocidente: o indivíduo livre, desamarrado, criador, e o seu correlativo, o êxtase frívolo do Eu.’ (p. 65)

‘A moderna idade democrática honrou as frivolidades, elevou à categoria de arte sublime a moda e os temas subalternos. Num movimento de que o dandismo oferece uma ilustração peculiar mas exemplar, o fútil (decoração, lugares frequentados, trajos, cavalos, charutos, refeições) tornou-se coisa primordial, em igualdade com as ocupações tradicionalmente nobres.’ (p. 116)

‘Na raiz da promoção da moda, o repúdio do pecado, a reabilitação do amor de si, das paixões e do desejo humano em geral.’ (p. 119)

‘A Alta Costura, menos do que disciplinar ou uniformizar a moda, individualizou-a.’ (p. 130)

‘Na origem do pronto-a-vestir está a democratização última dos gostos de moda trazida pelos ideais individualistas, pela multiplicação de jornais femininos e pelo cinema, mas também pelo apetite de viver no presente, estimulado pela nova cultura hedonista de massa.’ (p. 155)

‘A expansão de uma cultura jovem durante os anos cinquenta e sessenta acelerou a difusão dos valores hedonistas e contribuiu para dar um novo rosto à reivindicação individualista.’ (p. 162)

‘Um novo princípio de imitação social se impôs, o do modelo jovem.’ (p. 165)

‘Com o individualismo moderno, o Novo encontra a sua plena consagração: por ocasião de cada moda, há um sentimento, por muito ténue que seja, de libertação subjetiva, de alforria dos hábitos passados’. (p. 246)

‘[…] as indústrias culturais instituem na esfera do espetáculo o primado do eixo temporal peculiar à moda: o presente.’ (p. 282)

‘A uma cultura da narrativa substitui-se até certo ponto uma cultura do movimento; a uma cultura lírica ou melódica substitui-se uma cultura cinemática construída com base no choque e no dilúvio de imagens, na busca da sensação imediata, da emoção da cadência sincopada.’ (p. 283-284)

‘Maio de 68 encarna […] uma figura inédita: sem objetivo bem programa definidos, o movimento foi uma insurreição sem futuro, uma revolução no presente que demonstrou ao mesmo tempo o declínio das escatologias e a incapacidade de propor um caminho claro para a sociedade do futuro.’ (p. 327)

‘A deriva fluída do sentido é, por certo, acompanhada da banalização-espetacularização da política, da queda do militantismo e dos efetivos sindicais, do alinhamento do espírito de cidadania pela atitude de consumo, de indiferença e por vezes de desafetação perante as eleições: outros tantos aspetos reveladores de uma crise do homo democraticus idealmente concebido.’ (p. 332-333)

‘[…] a moda tem razões que a razão desconhece.’ (p. 353)

‘A moda é a nossa lei porque toda a nossa cultura sacraliza o Novo e consagra a dignidade do presente.’ (p. 359)

‘Há mais estímulos de toda a espécie, mas mais inquietações de viver, há mais autonomia privada, mas mais crises íntimas. Eis a grandeza da moda, que reconduz sempre o indivíduo a si próprio; eis a miséria da moda, que nos torna cada vez mais problemáticos a nós mesmos e aos outros.’ (p. 382)

 


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

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