quarta-feira, abril 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 11 | Mistério na Praia da Cascalheira

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

Alberto Ferreyra*




Na estrada para a Ermida, com o Vouga à direita, adivinhava-se o sol brilhante, de que sobravam, sobre as águas do rio, alguns escassos raios.

J. e M. divertiam-se, com charadas sobre os nomes das terras que o pai lhes ia apresentando.

Dirigiam-se ao Couto de Esteves, onde haveriam de participar numa boda de casamento de uns primos do pai, depois da celebração religiosa, na Matriz de Pessegueiro.

- Porque teriam as terras os nomes que têm? – Perguntava M., curiosa, como sempre. Cabia-lhe fazer as perguntas que todos pareciam reconhecer já ter habitado a sua mente, mas que nunca haviam tido a clarividência de as formular.

- Os nomes das terras – melhor, ‘topónimos’ – têm uma razão de ser… - Atalhou o pai.

Ainda o pai não terminara a frase, o muro da estrada sobranceira à nova barragem da Ermida reservava um ‘o homem é maior do que o seu erro’ que o fez estacar e tomar aquele olhar que os filhos reconheciam ser o que sempre se abeirava do lugar do mistério.

- O que foi, pai? – Perguntou J., certo de que novidade os esperava.

- Sabeis onde estamos?

- A caminho do Couto de Esteves. Do ‘Couto’, como a mãe costuma dizer.

- Sim, bem certo. Mas este lugar não se chama ‘Couto’. Estamos na Ermida e esta barragem engoliu o que foi, outrora, a Praia da Cascalheira.

- Como na ‘Catédral engloutie’, peça musical de Claude Debussy, em que se ouvem as impressões musicais que emergem das águas de uma barragem sob as quais descansa uma catedral! – Interrompeu M., evocando as suas memórias musicais de melómana precoce.

- Parece isso, M., parece! Tantas vezes aqui tomei banho! Graças a um pequeno açude que antecedeu esta robusta barragem, formava-se aqui uma tranquila praia fluvial onde o jogo de luz e sombra criava um convidativo ambiente para se descansar, no corpo e na alma.

- Tão poético, pai! – Segredou a M., que pousou a sua mão sobre o ombro do pai. – Conte, pai, conte. Sabemos que aí vem história.

- Esta é uma terra de mistérios. A vida densifica-se, neste enlear de água, serra, sol e sombra.

Há como que um paraíso, no murmurejar da vida quotidiana destas gentes. Um paraíso feito, também, de todos os dramas do paraíso. Não apenas da beleza e da harmonia, mas também do drama de se cair, de se ser seduzido pelas inúmeras serpentes da existência.

- Ena, pai. O que aí vem! – M. não perdia uma oportunidade para se encostar ao esforço do pai de recuperar a memória. Sabia que valia a pena…

- A história que se cruza com a Praia da Cascalheira começa nas serranas encostas à nossa esquerda. Dois homens andavam desavindos, por causa de mulheres e não só. Um deles desconfiava de que o outro anda envolvido com a sua esposa, mas também procurara seduzir a sua filha e pretendia acertar contas (era assim que se fazia, então! A justiça era, tantas vezes, feita por mãos próprias…). José ‘Vesgo’ não era boa rês. Metia-se em sarilhos, capaz de gerar confusão até numa sala sem gente. E dizia-se que nenhuma mulher podia estar segura, fosse qual fosse a sua idade. O Manuel do Ribeiro andava, por isso, à espera do melhor momento para fazer justiça; a justiça que não podia esperar resposta da administração, depois que o cabo Pedro partira para a América.

- Explique, pai. Explique. – M. estava impaciente.

- Estamos no período do Estado Novo. A justiça não se fazia no respeito pelo princípio da presunção da inocência e assente nos alicerces de hoje. Governava estas terras um tristemente célebre administrador, que se passeava, montado a cavalo, percorrendo caminhos e atalhos. Ao longe, quando as gentes intuíam o seu aproximar-se, tremiam, temendo-o e ao seu rigor arbitrário. A justiça que aplicava era a que lhe convinha, com julgamentos sumários, apenas preocupado em manter o poder seguro, nas suas mãos. Um dia, juntaram-se vozes e vozes (sempre anónimas, bem certo!), queixando-se de um ladrão de capoeiras, a quem davam o nome de ‘riscado’. Importunava quem tinham mais de duas galinhas, alegando querer dar de comer aos seus filhos. Mas os tempos não estavam para compaixões. Enchendo-se os ouvidos do administrador de tantos ruídos, e sem descer da sua montada, passou pela casa do cabo Pedro, batendo-lhe à porta com o bastão de que se fazia sempre acompanhar.

- Dizem as vozes que se vai desarriscar quem não nos deixa em sossego.

E seguiu à sua vida... Mas a mensagem estava transmitida.

O cabo Pedro logo saiu para rusga que nem rasto, nem memória, haveria de deixar.

Em caminho que é, hoje, estrada para grandes lojas, mas que era, então, carreiro estreito, dois tiros sem eco nem som deitaram por terra e desarriscaram de vez o terror das galinhas. Diz-se que, incomodado, na alma, dos tiros que nem som nem eco fizeram, o cabo Pedro partiu para a América, para não mais voltar, deixando em terras lusas, um filho ainda por nascer. Nas terras de além-Atlântico morreu, diz-se que perturbado, com risco profundo vincado na alma. Do administrador vil dizem as vozes de sempre que continua a vaguear, procurando paz, na quinta que, ainda, hoje, o povo designa como sendo sua: quinta do Pereira… Porque a justiça dos vis faz prender a felicidade à pesada opressão das terras possuídas.

- Meu Deus, pai. Que história incrível!

- Regressemos, pois ao José ‘Vesgo’ e ao Manuel do Ribeiro. Como vos dizia, a justiça estava à deriva e entregue a quem não procurava ser justo, mas apenas assegurar o poder. Não se esperasse, por isso, que, perante crimes hediondos, fosse reposto o bem e devolvida a justa harmonia. A tentação era a de fazer, por mãos próprias, a reposição dessa perdida melodia dos primeiros e paradisíacos tempos. Manuel do Ribeiro andava perdido e cego. Estudara os caminhos e percursos do José ‘Vesgo’. (O seu olho direito fixo, depois de tiro perdido em noite cerrada de emboscada, dava-lhe o nome.) Espera-o, por isso, adentrado no bosque, perto do lugar do Sobral. Sabe que ali passará, vindo da vila, para, descendo o Constantino, se encaminhar em direção a casa, nas imediações da escola velha, num lugar a que viria a dar-se o nome de ‘Feira Nova’. José é ‘Vesgo’ de olho e de moradia: na sua casa, não moram dois; ‘um só já é gente a mais’, como tantas vezes dizia, vociferando para com todos os que o perseguiam, de cada vez que voltava aos seus ataques violentos.

Manuel do Ribeiro é um bom coração. Não pretende matar José ‘Vesgo’, mas ameaçá-lo. Pretende dar-lhe um aviso. Acredita na mudança das pessoas. Mas quer que o susto seja real. Aguarda, pacientemente.

- A noite cai e, com ela, as sombras feitas da luz que refulge do lado lunar da vida. No cimo do monte, uma emboscada coloca, frente a frente, dois homens. A natureza associa-se, com silêncio perturbador, àquele momento. Manuel do Ribeiro pensava que a surpresa lhe asseguraria o resultado esperado, julgando obter, assim, o desejado sossego da ilusão de uma justiça tardia, mas devida. José ‘Vesgo’ era, porém, homem prevenido, pois nem pela morte aceitava ser surpreendido. Quando Manuel lhe assomou ao caminho, como sombra da própria noite, José ‘Vesgo’ pegou numa longa lâmina que sempre trazia colada à pele de uma das pernas. Tenta atacar Manuel que cai, desamparado. Este ergue-se, de um salto, vendo, tremeluzente, no tronco de uma árvore próxima, uma outra peça contundente. Cerca José ‘Vesgo’, de modo a que este não se aperceba do seu movimento. Na posse da pretendida arma, atira-se, com raiva, sobre o seu adversário. O som oco de dois derradeiros sopros de vida contrasta com o silêncio da noite fria. Duas corujas soltam um piar letal. Os dois corpos sustentam-se, imóveis, presos pelas compridas lâminas com que se finaram um ao outro. Ao lugar deu-se o nome de ‘homens mortos’ que, ainda agora, se conserva, sinónimo de uma justiça feita de pressa e ilusão.

- Mas, oh, pai, não percebo onde entra a Praia da Cascalheira, em toda esta história… - M. era perspicaz. Lia nas costas das linhas da história.

- Relê a história. Manuel não ia munido de arma para atacar o seu adversário. Só o pretendia ameaçar e assustar. A quem se devia o aparecimento de uma arma, tão inadvertidamente?

- Julguei que fosse estratégia literária, pai! – Riu-se M., sempre criativa.

- Um outro homem entrou nesta história. Um homem que não deixou aqueles dois corpos levantados. Retirou, das suas entranhas, as facas que os mantinham imóveis, sustentados um no outro. Desceu até ao rio, onde lavou as facas, as mãos e a alma. Do seu sangue e das fímbrias da sua alma, rolaram pedras em forma de cascalho que se soltaram pela margem do rio. Negras, muito negras…

- Dali, partiu para a residência paroquial, onde procurou o senhor abade (Sim, por estas terras, o pároco é tratado por ‘senhor abade’, aludindo à existência de mosteiros que a história soterrou…). Pediu para se confessar.

- ‘Perdoai-me, padre, porque pequei…’

- O que te traz, meu filho?

- Hoje, ajudei a matar um homem.

O silêncio pareceu anteceder a Hora, o juízo final….

- O Manuel do Ribeiro queria dar uma lição ao José ‘Vesgo’.

- Ah, esse! Deus o encaminhe, que anda perdido, errante.

- Esperava-o, no alto do Sobral. Queria – sei lá! – dar-lhe uma sova, pregar-lhe um susto. Mas adivinhei que o José ‘Vesgo’ viria prevenido. Não quis, por isso, que a justiça se tornasse palco de injustiça. Deixei, à mão de semear, um cutelo com que o Manuel do Ribeiro se defendeu. Mas a coisa virou para o torto e estão os dois já mortos.

- Pretendeste a morte do Vesgo?

- Não sei se pretendi. Pretendi que a lição lhe ficasse para a vida. Mas também não suportaria que ele levasse de vencida a sua. O Manuel do Ribeiro não merece o que ele lhe tem feito. Mas o que será da minha alma, senhor Abade? – Chorou, convulsivamente.

- Um homem que deseja a justiça está tomado por um desejo com que Deus lhe faz habitar a alma. Quero ter a certeza de uma coisa: pretendeste matá-lo?

- Não posso dizer que não o pretendi, mas deixei o cutelo à mão que para que não perdesse o inocente.

- Vejo, nas tuas palavras, o reconhecimento de uma culpa que ainda não consigo confirmar. O teu desejo era o de que não se cometesse uma injustiça, e não o de que se fizesse justiça por próprias mãos. A legítima defesa é defesa de uma vida que se perderia se não fosse defendida. Por isso, parece-me certo que o perdão de Deus misericordioso te assiste, nesta hora dura. Arrependido que estás de ter dado um impulso para que um homem morresse, mas certo de que a sua morte foi para se proteger, ainda que em vão, a vida de outrem que ele atacava, dou-te a absolvição. A tua penitência é lavares-te nas águas da Ermida, para que te regeneres como homem novo.

O dia pôs-se e um vulto mergulhou nas águas do Vouga. Sob o seu peso, soltaram-se pequenas pedras que rolaram, inicialmente negras e progressivamente brancas e límpidas. Do cascalho saído da alma nasceu o nome da praia: ‘Cascalheira’!

Na via que nos leva ao ‘Couto’, pode continuar a ler-se, num esmaecido rumor feito pedra: ‘O homem é maior do que o seu erro…’

 

Alberto Ferreyra




*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

segunda-feira, abril 07, 2025

Sabes, leitor... | 16 | Marca de água do livro de Luis González-Carvajal, 'Ideas y creencias del hombre actual'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*


O autor e a obra
Luis González-Carvajal, Ideas y creencias del hombre actual, Santander, Editorial Sal Terrae, 19933.

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No contexto espanhol, os livros de Luis González-Carvajal vêm com selo de sucesso. São autênticos ‘acontecimentos’ editoriais. Infelizmente, porém, em Portugal, não abundam títulos seus traduzidos. Na minha biblioteca pessoal, só encontro ‘os cristãos num Estado laico’, editado pela extinta Gráfica de Coimbra 2, a que somo títulos que traduzo do castelhano: ‘As bem-aventuranças, uma contracultura que humaniza’ (2014), ‘Notícias de Deus’ (1997), ‘Em defesa dos humilhados e ofendidos: os direitos humanos ante a fé cristã’ (2005), ‘O clamor dos excluídos: reflexões cristãs ineludíveis sobre os ricos e os pobres’ (2009) e, naturalmente, ‘Ideas y creencias del hombre actual’ (Sigo a 3.ª edição, de 1993, mas uma consulta rápida ao site da editora Sal Terrae permite perceber que o livro já se encontra na 6.ª edição. A capa que ilustra esta recensão é dessa última edição: muito bem conseguida, por sinal. A condição humana, na pós-modernidade, está como que pendurada por molas!). Todos editados pela Sal Terrae.
A biografia de Luis González-Carvajal conjuga uma sólida estatura intelectual (é doutor em Teologia e professor em diversos centros teológicos, entre os quais se destaca a Universidade Pontifícia de Comillas) com um experiente envolvimento na realidade onde ‘acontece’ a vida. É engenheiro superior de Minas e foi, secretário-geral da Cáritas Espanhola, sendo presbítero católico. Conjuga, por isso, um enraizamento na vida com uma dedicada e estruturada reflexão que se repercute na sua escrita. Quem o lê reconhece, por um lado, a organização do seu pensamento e a clareza de ideias, associadas a uma repercussão frequente dos dados com que se apresenta a realidade. Os seus livros são sempre enriquecidos pela multiplicidade de fontes que cita (dos contemporâneos aos clássicos), mas também por dados que nos facultam a sociologia e os relatórios de organizações que trabalham nos terrenos abordados.
‘Ideas e creencias del hombre actual’ foi o primeiro livro que me deu acesso ao seu pensamento. Adquiri-o em 26 de fevereiro de 1994. Diz-mo o registo que fiz, na primeira página. Era, ainda, recente, a minha descoberta do conceito de ‘pós-modernidade’, ideia que me fora apresentada pelos meus companheiros de descobertas intelectuais, ainda hoje peregrinos, comigo, do saber que se autentica na busca da verdade: o António Jorge e o Pedro José, hoje, diretor do jornal diocesano, Correio do Vouga, e padre da Diocese de Aveiro, respetivamente.
Entusiasmados com a polissemia do termo que, apesar de já ter mais de uma década, desde que o transpusera, em 1979, para a filosofia Jean-François Lyotard, no seu ‘a condição pós-moderna’, ia demorando a ser recebido pelos diversos âmbitos da reflexão e do pensamento, decidimo-nos a assumi-lo como categoria interpretativa do nosso tempo. E o entusiasmo foi tal que, com o meu amigo Pedro José, com quem desenovelei inúmeras conversas intelectualmente gratificantes, ponderei criar um esboço de site onde o termo fosse pretexto para hiperligações (a ideia era ainda muito imberbe e algo ingénua; estávamos nos primórdios da internet…) para outros temas. O site não surgiu, mas o projeto veio a dar um artigo publicado, a quatro mãos, no número 7 da revista de Teologia, ‘Dabar’ (em hebraico, significa ‘Palavra’). O título era ambicioso: ‘o essencial sobre a pós-modernidade’. Não nos propúnhamos menos. O essencial faz parte da essência de algo, do que define a identidade de um ente. E lá está, abundantemente, o pensamento de Luis Gonzalez-Carvajal, e, concretamente, o livro que, agora, nos dá pretexto para este encontro ‘na mesma página’.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

‘Ideas y creencias del hombre actual’ marcou-me, profundamente, como já aludi, acima. E, ao ler-se o ‘pórtico’ com que o autor abre o livro, percebe-se porquê. Encontrei, aqui, uma das primeiras e mais luminosas leituras dos ‘paradigmas’ mentais que condicionam o agir dos nossos contemporâneos (e, entre eles, bem certo, nós mesmos!).
González-Carvajal não esconde ao que vai e o que leva. Di-lo, logo nesse pórtico de abertura, como átrio com que se acede a uma catedral. Escreve da sua perspetiva cristã e dirige-se àqueles que pretendem proporcionar um encontro entre cristianismo e cultura contemporânea.
Nada melhor do que a verdade! Dizer-se ao que se vai esclarece o leitor e coloca-o num registo de honesta relação com o livro.
Mas, por ser um livro profundamente ‘situado’, não perde força. Ousaria mesmo dizer que a ganha com essa honestidade, pois assegura as condições para que não seja um ‘livro assético’, que, de tão esterilizado para não ser contaminado, ser torna estéril.
Com estes pressupostos, o autor organiza o livro em nove partes que se repartem em três grandes blocos. Uma das partes servirá de introdução, estabelecendo o estreito nexo entre cristianismo e cultura e associando, a partir da encarnação, o primeiro ao segundo. A cultura não é, de todo, indiferente ao cristianismo, religião nascida, precisamente, a encarnação de Deus: a condição humana interessa a Deus!
As seis partes seguintes constituem a segunda parte do livro, toda ela dedicada à análise da modernidade, que ele faz gravitar em torno de seis vetores fundamentais: a secularização, a mentalidade científico-técnica, a vontade emancipatória, a fé no progresso, a tolerância e o espírito capitalista-burguês.
Por fim, nas duas últimas partes, descreve a sua análise sobre o que será a pós-modernidade.
Surpreendeu-me, então, neste livro, não apenas a enorme coesão interna do livro, desenvolvido como que em espiral, em que as partes se desenrolam como novelo coerente, mas principalmente a tipificação da modernidade e, em contraste, a pós-modernidade. Antes de olharmos para o modo como a faz esta tipificação, é digno de constatação o cuidado que ele tem em assegurar-nos que as tipificações que faz são ‘abstrações’. Como ele mesmo diz, ‘em nenhum lugar do mundo existem indivíduos modernos ou pós-modernos em toda a sua pureza conceptual. A descrição que pretendo fazer corresponde ao que Mas Weber chamou tipos ideais’. (p.10) Esta ideia revisitei-a, muitas vezes, e germinou, em mim, criando as condições para conceber o que, mais tarde, ‘tipifiquei’, inspirado em Thomas Khun, nos ‘paradigmas bioéticos’: quadros mentais que servem de matriz orientadora para as decisões e opções fundamentais coletivas e individuais. Ora, é a estas ‘abstrações’ que González-Carvajal se dedica, ao longo deste livro, traçando as marcas identificativas da modernidade e pós-modernidade no viver contemporâneo. Bem certo que, nas ruas percorridas pelos nossos contemporâneos, deslizam rios de modernidade e pós-modernidade, muitas vezes misturados, mas percebê-los ajudada a melhor compreender para onde se encaminham e de que águas se fará a sua foz.
À clareza dos seis traços com que tipificou a modernidade (que acima enunciei) somei uma descoberta que não mais deixei de revisitar: o salto da modernidade para a pós-modernidade pode concentrar-se em torno de um pulo aglutinador – da racionalidade moderna para a ‘sensibilidade’ e afetividade pós-moderna.
Recordo-me de quão luminoso senti que era esta síntese que o autor aglutina em torno de dois mitos clássicos fundamentais: o homem moderno é como Prometeu (luta, revolta-se, angustia-se…); o homem pós-moderno desistiu de lutar, de se revoltar e angustiar; como Narciso, desistiu da luta e inebria-se com a sua imagem. Deslocou o seu foco do que lhe dizia a Razão para se bastar em seguir o que lhe apontam os afetos, a sua sensibilidade. De Prometeu a Narciso… Aí estamos! E, vinte anos volvidos, a análise de Carvajal é mais atual do que nunca. Narciso desalojou Prometeu e habita, satisfeito, as moradas onde já não deixa morar qualquer angústia. Se alguma quiser ousar emergir, ele encarrega-se de a afogar nas águas onde se reflete o seu rosto com que se satisfaz.

Na mesma página que o autor (citações)

‘Richard Niebuhr propõe cinco modelos de relação entre a fé e a cultura. Talvez possamos reduzi-los a três:

  1. A fé despreza a cultura.

[…]

  1. A fé identifica-se com a cultura.

[…]

  1. A fé dialoga com a cultura. (Na minha opinião, o único correto)

[…]

O diálogo entre a fé e a cultura deve inspirar-se na encarnação do Verbo. Com efeito, com aquele acontecimento, que poderíamos chamar «fundacional» da nossa fé, inaugurou-se uma nova economia salvadora baseada no encontro e no intercâmbio.

A encarnação consta de um duplo movimento, de descida e de subida: o Filho de Deus faz-se homem (descida), não para que haja mais um homem, mas antes para que os homens se tornem filhos de Deus (subida); […].’ (pp. 26-29)

‘[…] a fé cristã não pode ligar a sua sorte em exclusivo a uma cultura história sem o risco de desaparecerem juntas.’ (p. 32)

‘[…] é isto aquilo a que chamámos secularização: a tarefa de legitimar a autoridade passou «da Igreja para o mundo».’ (p. 45)

‘[…] aceitamos a secularização mas repudiamos o secularismo; entendendo por «secularismo» uma secularização que foi mais longe do que é devido.’ (p. 50)

‘Suponho que não seja necessário torná-lo claro, mas faço-o para alguma eventualidade: uma coisa é lamentar a mutilação a que nos conduziu o positivismo, e outra coisa muito distinta repudiar a ciência moderna.’ (p. 74)

‘Durante muito tempo, foi um lugar-comum afirmar que a modernidade constituía a «era da razão». Mas essa «razão» não é já a razão dos filósofos, sem sequer a dos homens que cultivam a ciência pura, mas sim a razão dos técnicos; essa que Horkheimer batizou como «razão instrumental». […] assim é o homem tecnológico: um homem sem interrogações, sem perguntas últimas. Basta-lhe saber onde está o botão.’ (p. 77)

‘[…] a razão instrumental fez estragos também no âmbito da fé. Que lugar terão a oração, a contemplação e a vida interior numa civilização utilitária e pragmática?’ (p. 82)

‘O que propugnamos é, simplesmente, o controlo do homem sobre a técnica. A técnica é um meio e, como tal, suscetível de ser posta ao serviço de fins muito diversos: bons ou maus. Por isso se pôde falar do «elemento demoníaco da técnica» que não radica na própria técnica, mas sim na insuficiente educação para o uso racional e controlado da mesma. […]’ (p. 83)

‘Alguém disse que os antigos tinham fins, mas não meios; enquanto nós temos meios, mas não fins.’ (p. 83)

[…] como que parece que a técnica deixou de ser um conjunto de meios para se converter num fim em si mesma.’ (p. 84)

‘O judaísmo, primeiro, e o cristianismo, depois, com a sua conceção linear do tempo, estabeleceram as bases para que pudesse desenvolver-se a noção de progresso. A história já não está condenada a repetir-se infinitas vezes, mas percorre-se uma só vez, tendo um momento inicial (criação) e um momento final (parusia).’ (p. 113)

‘O bem e o mal crescerão juntos até que o juízo final os separe.

O cristão, por isso, deve tornar-se porta-voz das vítimas do progresso e proclamar nos alegres salões aos quais aludia Taine que nem tudo vai bem.’ (p. 124)

‘A tolerância é boa, não porque não haja verdade objetiva e porque as decisões a tomar devam ser necessariamente um compromisso entre uma variedade de opiniões, mas sim porque há verdade objetiva, e o melhor modo de se acercar dela é o diálogo livre.’ (p. 135)

‘O espírito capitalista-burguês caracteriza-se […] por uma mentalidade calculadora que procura reduzir o mundo a cifras, com uma certa tendência para confundir o grande com o grandioso.’ (p. 142)

‘Podemos dizer que a individualidade foi a grande conquista da burguesia, e o individualismo o seu grande pecado.’ (p. 145)

‘Os homens modernos gostavam de se identificar com Prometeu, que, desafiando a ira de Zeus, trouxe à terra o fogo do céu, desencadeando o progresso da humanidade. […] Os pós-modernos, esquecendo-se da sociedade, concentram todas as suas energias na realização pessoal. Hoje é possível vier sem ideais. […] Com toda a razão, fizeram notar muitos observadores que o símbolo da pós-modernidade já não é Prometeu nem Sísifo, mas sim Narciso, o que, enamorado de si mesmo, não tem olhos para o mundo exterior.’ (p. 161.162.163)

‘[…] a pós-modernidade é uma reação unilateral diante das unilateralidades que tinha a modernidade.’ (p. 179)

‘[…] o sujeito pós-moderno reduz-se a pura maquilhagem, sem identidade pessoal.’ (p. 185)

‘A sensibilidade pós-moderna convida-nos a recuperar as dimensões festivas da fé.’ (p. 189)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)


'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

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