segunda-feira, abril 07, 2025

Sabes, leitor... | 16 | Marca de água do livro de Luis González-Carvajal, 'Ideas y creencias del hombre actual'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*


O autor e a obra
Luis González-Carvajal, Ideas y creencias del hombre actual, Santander, Editorial Sal Terrae, 19933.

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No contexto espanhol, os livros de Luis González-Carvajal vêm com selo de sucesso. São autênticos ‘acontecimentos’ editoriais. Infelizmente, porém, em Portugal, não abundam títulos seus traduzidos. Na minha biblioteca pessoal, só encontro ‘os cristãos num Estado laico’, editado pela extinta Gráfica de Coimbra 2, a que somo títulos que traduzo do castelhano: ‘As bem-aventuranças, uma contracultura que humaniza’ (2014), ‘Notícias de Deus’ (1997), ‘Em defesa dos humilhados e ofendidos: os direitos humanos ante a fé cristã’ (2005), ‘O clamor dos excluídos: reflexões cristãs ineludíveis sobre os ricos e os pobres’ (2009) e, naturalmente, ‘Ideas y creencias del hombre actual’ (Sigo a 3.ª edição, de 1993, mas uma consulta rápida ao site da editora Sal Terrae permite perceber que o livro já se encontra na 6.ª edição. A capa que ilustra esta recensão é dessa última edição: muito bem conseguida, por sinal. A condição humana, na pós-modernidade, está como que pendurada por molas!). Todos editados pela Sal Terrae.
A biografia de Luis González-Carvajal conjuga uma sólida estatura intelectual (é doutor em Teologia e professor em diversos centros teológicos, entre os quais se destaca a Universidade Pontifícia de Comillas) com um experiente envolvimento na realidade onde ‘acontece’ a vida. É engenheiro superior de Minas e foi, secretário-geral da Cáritas Espanhola, sendo presbítero católico. Conjuga, por isso, um enraizamento na vida com uma dedicada e estruturada reflexão que se repercute na sua escrita. Quem o lê reconhece, por um lado, a organização do seu pensamento e a clareza de ideias, associadas a uma repercussão frequente dos dados com que se apresenta a realidade. Os seus livros são sempre enriquecidos pela multiplicidade de fontes que cita (dos contemporâneos aos clássicos), mas também por dados que nos facultam a sociologia e os relatórios de organizações que trabalham nos terrenos abordados.
‘Ideas e creencias del hombre actual’ foi o primeiro livro que me deu acesso ao seu pensamento. Adquiri-o em 26 de fevereiro de 1994. Diz-mo o registo que fiz, na primeira página. Era, ainda, recente, a minha descoberta do conceito de ‘pós-modernidade’, ideia que me fora apresentada pelos meus companheiros de descobertas intelectuais, ainda hoje peregrinos, comigo, do saber que se autentica na busca da verdade: o António Jorge e o Pedro José, hoje, diretor do jornal diocesano, Correio do Vouga, e padre da Diocese de Aveiro, respetivamente.
Entusiasmados com a polissemia do termo que, apesar de já ter mais de uma década, desde que o transpusera, em 1979, para a filosofia Jean-François Lyotard, no seu ‘a condição pós-moderna’, ia demorando a ser recebido pelos diversos âmbitos da reflexão e do pensamento, decidimo-nos a assumi-lo como categoria interpretativa do nosso tempo. E o entusiasmo foi tal que, com o meu amigo Pedro José, com quem desenovelei inúmeras conversas intelectualmente gratificantes, ponderei criar um esboço de site onde o termo fosse pretexto para hiperligações (a ideia era ainda muito imberbe e algo ingénua; estávamos nos primórdios da internet…) para outros temas. O site não surgiu, mas o projeto veio a dar um artigo publicado, a quatro mãos, no número 7 da revista de Teologia, ‘Dabar’ (em hebraico, significa ‘Palavra’). O título era ambicioso: ‘o essencial sobre a pós-modernidade’. Não nos propúnhamos menos. O essencial faz parte da essência de algo, do que define a identidade de um ente. E lá está, abundantemente, o pensamento de Luis Gonzalez-Carvajal, e, concretamente, o livro que, agora, nos dá pretexto para este encontro ‘na mesma página’.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

‘Ideas y creencias del hombre actual’ marcou-me, profundamente, como já aludi, acima. E, ao ler-se o ‘pórtico’ com que o autor abre o livro, percebe-se porquê. Encontrei, aqui, uma das primeiras e mais luminosas leituras dos ‘paradigmas’ mentais que condicionam o agir dos nossos contemporâneos (e, entre eles, bem certo, nós mesmos!).
González-Carvajal não esconde ao que vai e o que leva. Di-lo, logo nesse pórtico de abertura, como átrio com que se acede a uma catedral. Escreve da sua perspetiva cristã e dirige-se àqueles que pretendem proporcionar um encontro entre cristianismo e cultura contemporânea.
Nada melhor do que a verdade! Dizer-se ao que se vai esclarece o leitor e coloca-o num registo de honesta relação com o livro.
Mas, por ser um livro profundamente ‘situado’, não perde força. Ousaria mesmo dizer que a ganha com essa honestidade, pois assegura as condições para que não seja um ‘livro assético’, que, de tão esterilizado para não ser contaminado, ser torna estéril.
Com estes pressupostos, o autor organiza o livro em nove partes que se repartem em três grandes blocos. Uma das partes servirá de introdução, estabelecendo o estreito nexo entre cristianismo e cultura e associando, a partir da encarnação, o primeiro ao segundo. A cultura não é, de todo, indiferente ao cristianismo, religião nascida, precisamente, a encarnação de Deus: a condição humana interessa a Deus!
As seis partes seguintes constituem a segunda parte do livro, toda ela dedicada à análise da modernidade, que ele faz gravitar em torno de seis vetores fundamentais: a secularização, a mentalidade científico-técnica, a vontade emancipatória, a fé no progresso, a tolerância e o espírito capitalista-burguês.
Por fim, nas duas últimas partes, descreve a sua análise sobre o que será a pós-modernidade.
Surpreendeu-me, então, neste livro, não apenas a enorme coesão interna do livro, desenvolvido como que em espiral, em que as partes se desenrolam como novelo coerente, mas principalmente a tipificação da modernidade e, em contraste, a pós-modernidade. Antes de olharmos para o modo como a faz esta tipificação, é digno de constatação o cuidado que ele tem em assegurar-nos que as tipificações que faz são ‘abstrações’. Como ele mesmo diz, ‘em nenhum lugar do mundo existem indivíduos modernos ou pós-modernos em toda a sua pureza conceptual. A descrição que pretendo fazer corresponde ao que Mas Weber chamou tipos ideais’. (p.10) Esta ideia revisitei-a, muitas vezes, e germinou, em mim, criando as condições para conceber o que, mais tarde, ‘tipifiquei’, inspirado em Thomas Khun, nos ‘paradigmas bioéticos’: quadros mentais que servem de matriz orientadora para as decisões e opções fundamentais coletivas e individuais. Ora, é a estas ‘abstrações’ que González-Carvajal se dedica, ao longo deste livro, traçando as marcas identificativas da modernidade e pós-modernidade no viver contemporâneo. Bem certo que, nas ruas percorridas pelos nossos contemporâneos, deslizam rios de modernidade e pós-modernidade, muitas vezes misturados, mas percebê-los ajudada a melhor compreender para onde se encaminham e de que águas se fará a sua foz.
À clareza dos seis traços com que tipificou a modernidade (que acima enunciei) somei uma descoberta que não mais deixei de revisitar: o salto da modernidade para a pós-modernidade pode concentrar-se em torno de um pulo aglutinador – da racionalidade moderna para a ‘sensibilidade’ e afetividade pós-moderna.
Recordo-me de quão luminoso senti que era esta síntese que o autor aglutina em torno de dois mitos clássicos fundamentais: o homem moderno é como Prometeu (luta, revolta-se, angustia-se…); o homem pós-moderno desistiu de lutar, de se revoltar e angustiar; como Narciso, desistiu da luta e inebria-se com a sua imagem. Deslocou o seu foco do que lhe dizia a Razão para se bastar em seguir o que lhe apontam os afetos, a sua sensibilidade. De Prometeu a Narciso… Aí estamos! E, vinte anos volvidos, a análise de Carvajal é mais atual do que nunca. Narciso desalojou Prometeu e habita, satisfeito, as moradas onde já não deixa morar qualquer angústia. Se alguma quiser ousar emergir, ele encarrega-se de a afogar nas águas onde se reflete o seu rosto com que se satisfaz.

Na mesma página que o autor (citações)

‘Richard Niebuhr propõe cinco modelos de relação entre a fé e a cultura. Talvez possamos reduzi-los a três:

  1. A fé despreza a cultura.

[…]

  1. A fé identifica-se com a cultura.

[…]

  1. A fé dialoga com a cultura. (Na minha opinião, o único correto)

[…]

O diálogo entre a fé e a cultura deve inspirar-se na encarnação do Verbo. Com efeito, com aquele acontecimento, que poderíamos chamar «fundacional» da nossa fé, inaugurou-se uma nova economia salvadora baseada no encontro e no intercâmbio.

A encarnação consta de um duplo movimento, de descida e de subida: o Filho de Deus faz-se homem (descida), não para que haja mais um homem, mas antes para que os homens se tornem filhos de Deus (subida); […].’ (pp. 26-29)

‘[…] a fé cristã não pode ligar a sua sorte em exclusivo a uma cultura história sem o risco de desaparecerem juntas.’ (p. 32)

‘[…] é isto aquilo a que chamámos secularização: a tarefa de legitimar a autoridade passou «da Igreja para o mundo».’ (p. 45)

‘[…] aceitamos a secularização mas repudiamos o secularismo; entendendo por «secularismo» uma secularização que foi mais longe do que é devido.’ (p. 50)

‘Suponho que não seja necessário torná-lo claro, mas faço-o para alguma eventualidade: uma coisa é lamentar a mutilação a que nos conduziu o positivismo, e outra coisa muito distinta repudiar a ciência moderna.’ (p. 74)

‘Durante muito tempo, foi um lugar-comum afirmar que a modernidade constituía a «era da razão». Mas essa «razão» não é já a razão dos filósofos, sem sequer a dos homens que cultivam a ciência pura, mas sim a razão dos técnicos; essa que Horkheimer batizou como «razão instrumental». […] assim é o homem tecnológico: um homem sem interrogações, sem perguntas últimas. Basta-lhe saber onde está o botão.’ (p. 77)

‘[…] a razão instrumental fez estragos também no âmbito da fé. Que lugar terão a oração, a contemplação e a vida interior numa civilização utilitária e pragmática?’ (p. 82)

‘O que propugnamos é, simplesmente, o controlo do homem sobre a técnica. A técnica é um meio e, como tal, suscetível de ser posta ao serviço de fins muito diversos: bons ou maus. Por isso se pôde falar do «elemento demoníaco da técnica» que não radica na própria técnica, mas sim na insuficiente educação para o uso racional e controlado da mesma. […]’ (p. 83)

‘Alguém disse que os antigos tinham fins, mas não meios; enquanto nós temos meios, mas não fins.’ (p. 83)

[…] como que parece que a técnica deixou de ser um conjunto de meios para se converter num fim em si mesma.’ (p. 84)

‘O judaísmo, primeiro, e o cristianismo, depois, com a sua conceção linear do tempo, estabeleceram as bases para que pudesse desenvolver-se a noção de progresso. A história já não está condenada a repetir-se infinitas vezes, mas percorre-se uma só vez, tendo um momento inicial (criação) e um momento final (parusia).’ (p. 113)

‘O bem e o mal crescerão juntos até que o juízo final os separe.

O cristão, por isso, deve tornar-se porta-voz das vítimas do progresso e proclamar nos alegres salões aos quais aludia Taine que nem tudo vai bem.’ (p. 124)

‘A tolerância é boa, não porque não haja verdade objetiva e porque as decisões a tomar devam ser necessariamente um compromisso entre uma variedade de opiniões, mas sim porque há verdade objetiva, e o melhor modo de se acercar dela é o diálogo livre.’ (p. 135)

‘O espírito capitalista-burguês caracteriza-se […] por uma mentalidade calculadora que procura reduzir o mundo a cifras, com uma certa tendência para confundir o grande com o grandioso.’ (p. 142)

‘Podemos dizer que a individualidade foi a grande conquista da burguesia, e o individualismo o seu grande pecado.’ (p. 145)

‘Os homens modernos gostavam de se identificar com Prometeu, que, desafiando a ira de Zeus, trouxe à terra o fogo do céu, desencadeando o progresso da humanidade. […] Os pós-modernos, esquecendo-se da sociedade, concentram todas as suas energias na realização pessoal. Hoje é possível vier sem ideais. […] Com toda a razão, fizeram notar muitos observadores que o símbolo da pós-modernidade já não é Prometeu nem Sísifo, mas sim Narciso, o que, enamorado de si mesmo, não tem olhos para o mundo exterior.’ (p. 161.162.163)

‘[…] a pós-modernidade é uma reação unilateral diante das unilateralidades que tinha a modernidade.’ (p. 179)

‘[…] o sujeito pós-moderno reduz-se a pura maquilhagem, sem identidade pessoal.’ (p. 185)

‘A sensibilidade pós-moderna convida-nos a recuperar as dimensões festivas da fé.’ (p. 189)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)


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