Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)
Alberto Ferreyra*
- Pai, onde nos levas, hoje?
M. percebia, no olhar profundo e suspenso do pai, que as duas asas da imaginação se aprontavam para os elevar da realidade onde ainda, temporariamente, moravam.
- Regresso aos meus dez anos, nas margens do Vouga. Ao crime dos ‘três A’s’. Habito o tempo em que a mão do dia se desprende, de vez, da da noite, num fim de tarde domingueiro. Está fresco… No recato das casas, já de lareira acesa, pois é outono, as famílias aconchegam-se em volta de um vetusto filme português, ainda sem cor.
Dois tiros acordam o anoitecer. Um, de bala branca, seguido, pouco depois, de outro, de bala preta. A natureza emudece, com o estertor da morte que se avizinha, fugidia.
Um homem caminha, em passo apressado, descendo da travessa do Constantino, onde esta se enamora com a rua do Souto da Lombinha.
Na sua sombra, dois corpos jazem, já sem vida: o seu primo, A., e a sua tia, A. Também ele é A. Armanda, Alexandre e Américo… O dia jamais sairá da memória dos que o viveram: dezasseis de outubro de mil novecentos e oitenta e três.
Por onde caminha, aquele homem aprisiona a voz do que o rodeia. Tudo se emudece. Leva, consigo, uma sombra que não é a sua. É a do finar da vida com quem se casou, há muito. …indiferente, porém, pois já com ela convive, desde longa data, sem lhe reconhecer mal. É assim com os homens que decidiram vender-se ao adversário, cindindo, nos seus corações, o que de Deus receberam para unir.
Sem alma, sem sangue, sem dor, encaminha-se, como se nada fosse com ele, para uma das tascas da terra. Esperam-no uns copos e umas graçolas, até que o reconhecerão, atónitos, os que, entretanto, partilharão um curto jogo de sueca.
Enquanto os penetrantes gritos de dor se avolumam, perante o crime que abalará, para sempre, a história destas gentes sãs, Américo diverte-se, como se numa história paralela e nunca cruzada com a real morasse.
- Pai, esta história está a dar-me arrepios. – J. parece assustado. – Como pode um homem acabar de matar duas pessoas e avançar, indiferente, no seu caminho?
- Foi uma das coisas mais difíceis de aceitar pelos que foram tomando consciência do que acontecera. Havia uma frieza arrepiante, no agir daquele homem. A sua própria mãe, - coitada, uma infeliz! – terá sido diversas vezes agredida por si. Não se merece uma vida assim!
- E como reagiram os que foram sabendo do que acontecera? – M. morava a pergunta seguinte.
- A perplexidade tomou conta dos que, já no café da Vinha Dónega, se sentavam à mesa com ele para jogar cartas. Estranhamente, as roupas do criminoso não tinham ficado com marcas dos seus atos. Como que tinham sido tomadas da mesma indiferença com que ele perpetrara tudo aquilo. Nem elas quiseram ser cúmplices…
Diz-se que os que estavam com ele só souberam quando, a meio de um jogo, decidiu ir à casa de banho. Atónitos de raiva, fecharam-no, esperando pela guarda. Se saísse, não sobreviveria.
Em seu redor, um silêncio incomodativo. As vozes não saíam das gargantas. Tudo se emudecera, solidário com os inocentes. Um jipe verde levou-o, e, com ele, a multidão que pretendia fazer justiça por suas mãos.
Entretanto, perto do lugar da Ermida, uma lenda parecia enrodilhar-se em forma de pergunta: pode uma filha de um homem assim ter bom coração e soltar-se do fatal compromisso com o mal?
Anastácia nascera de um fortuito e forçado encontro de Américo com uma infeliz moça cujo nome pode ser o de todas as mães que amaram os seus filhos desde sempre e para sempre. Mais uma vez, A. Apenas A.
Crescera na sombra que se oculta no intervalo entre a primeira e a segunda página do tempo e do espaço. Nesse lugar onde mora a imaginação e se decide o rumo do existir. Ninguém parece ter algum dia visto o seu registo de nascimento, ninguém parece tê-la, sequer, visto crescer. Mas nela moram todas as perguntas que uma história assim nos atira, com violência, ao rosto da alma.
Anastácia fez-se mulher. Descobriu, um dia, de quem nascera e de quem se fizera um ser. Nela parecia germinar o mal como destino previamente traçado e a cumprir. Pois se de um pai assim se faziam os seus genes e se de um ato tão negro fora concebida?!
Desejou não ter vivido. Desprezou-se e a tudo o que a sua existência significava.
Fizera-se, porém, mulher de fé. Primeiro, seguindo os passos de todas as tradições, repetidas e ecoadas… Mas, vagar a vagar, percorrendo todas as procissões no seu interior, fora emergindo, em si, uma ténue luz no negrume do seu viver.
Vira-se triste, rendida, entregue…
As lágrimas de Maria Madalena, os passos noturnos de Nicodemos, os discretos espreitares de Zaqueu sobre o sicómoro fizeram-na, contudo, soerguer-se do chão talhado que prendia o caminhar. Das águas de todas as redenções haveria de levantar-se e fazer-se mulher nova… livre! Mais forte do que todo o destino.
Sete noites seguidas, um vulto assobiava ao barqueiro que assegurava a travessia entre as margens do Vouga: da margem direita para a esquerda. O silêncio preenchia o tempo da rápida ponte feita sulco de bateira nas águas serenas do rio.
Sob uma longa capa, o vulto subia, ainda sombrio e silencioso, até à casa do Costa, para se encaminhar para o Monte de Santo Adrião, rumo ao alto do Castêlo. O lugar que fora, outrora, lugar de um crasto, haveria de assistir à serena redenção e vitória sobre a força do destino.
Sentado na mais alta pedra do Castêlo, aquele vulto voltava-se em direção ao mar. Meditativo… O olhar longo. De esperança! O abismo seduzia. O abismo da morte, bem certo. Mas também o abismo sobre que havia que caminhar-se para o eterno. Diante de si, o contraste do esconde-esconde da luz com a noite. O branco e o escuro. O luar e a sua umbra…
Sete noites…
De chuva, de vento, de nevoeiro e tempestade… E de luar!
Sete!
Na oitava noite, o vulto abeirou-se da margem. Largou a sua capa negra, qual noite sobre os ombros, assobiou ao barqueiro, deu-lhe nome – ‘Caronte’! -, despediu-se dele e não atravessou.
Nessa noite, no cemitério novo, em Pessegueiro do Vouga, duas flores foram depositadas sobre o túmulo de A. e A.: uma branca e uma negra. E o silêncio deu lugar à melodia da esperança.