sexta-feira, maio 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 12 | Mistério no monte de Santo Adrião

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*




- Pai, onde nos levas, hoje?
M. percebia, no olhar profundo e suspenso do pai, que as duas asas da imaginação se aprontavam para os elevar da realidade onde ainda, temporariamente, moravam.
- Regresso aos meus dez anos, nas margens do Vouga. Ao crime dos ‘três A’s’. Habito o tempo em que a mão do dia se desprende, de vez, da da noite, num fim de tarde domingueiro. Está fresco… No recato das casas, já de lareira acesa, pois é outono, as famílias aconchegam-se em volta de um vetusto filme português, ainda sem cor.
Dois tiros acordam o anoitecer. Um, de bala branca, seguido, pouco depois, de outro, de bala preta. A natureza emudece, com o estertor da morte que se avizinha, fugidia.
Um homem caminha, em passo apressado, descendo da travessa do Constantino, onde esta se enamora com a rua do Souto da Lombinha.
Na sua sombra, dois corpos jazem, já sem vida: o seu primo, A., e a sua tia, A. Também ele é A. Armanda, Alexandre e Américo… O dia jamais sairá da memória dos que o viveram: dezasseis de outubro de mil novecentos e oitenta e três.
Por onde caminha, aquele homem aprisiona a voz do que o rodeia. Tudo se emudece. Leva, consigo, uma sombra que não é a sua. É a do finar da vida com quem se casou, há muito. …indiferente, porém, pois já com ela convive, desde longa data, sem lhe reconhecer mal. É assim com os homens que decidiram vender-se ao adversário, cindindo, nos seus corações, o que de Deus receberam para unir.
Sem alma, sem sangue, sem dor, encaminha-se, como se nada fosse com ele, para uma das tascas da terra. Esperam-no uns copos e umas graçolas, até que o reconhecerão, atónitos, os que, entretanto, partilharão um curto jogo de sueca.
Enquanto os penetrantes gritos de dor se avolumam, perante o crime que abalará, para sempre, a história destas gentes sãs, Américo diverte-se, como se numa história paralela e nunca cruzada com a real morasse.
- Pai, esta história está a dar-me arrepios. – J. parece assustado. – Como pode um homem acabar de matar duas pessoas e avançar, indiferente, no seu caminho?
- Foi uma das coisas mais difíceis de aceitar pelos que foram tomando consciência do que acontecera. Havia uma frieza arrepiante, no agir daquele homem. A sua própria mãe, - coitada, uma infeliz! – terá sido diversas vezes agredida por si. Não se merece uma vida assim!
- E como reagiram os que foram sabendo do que acontecera? – M. morava a pergunta seguinte.
- A perplexidade tomou conta dos que, já no café da Vinha Dónega, se sentavam à mesa com ele para jogar cartas. Estranhamente, as roupas do criminoso não tinham ficado com marcas dos seus atos. Como que tinham sido tomadas da mesma indiferença com que ele perpetrara tudo aquilo. Nem elas quiseram ser cúmplices…
Diz-se que os que estavam com ele só souberam quando, a meio de um jogo, decidiu ir à casa de banho. Atónitos de raiva, fecharam-no, esperando pela guarda. Se saísse, não sobreviveria.
Em seu redor, um silêncio incomodativo. As vozes não saíam das gargantas. Tudo se emudecera, solidário com os inocentes. Um jipe verde levou-o, e, com ele, a multidão que pretendia fazer justiça por suas mãos.
Entretanto, perto do lugar da Ermida, uma lenda parecia enrodilhar-se em forma de pergunta: pode uma filha de um homem assim ter bom coração e soltar-se do fatal compromisso com o mal?
Anastácia nascera de um fortuito e forçado encontro de Américo com uma infeliz moça cujo nome pode ser o de todas as mães que amaram os seus filhos desde sempre e para sempre. Mais uma vez, A. Apenas A.
Crescera na sombra que se oculta no intervalo entre a primeira e a segunda página do tempo e do espaço. Nesse lugar onde mora a imaginação e se decide o rumo do existir. Ninguém parece ter algum dia visto o seu registo de nascimento, ninguém parece tê-la, sequer, visto crescer. Mas nela moram todas as perguntas que uma história assim nos atira, com violência, ao rosto da alma.
Anastácia fez-se mulher. Descobriu, um dia, de quem nascera e de quem se fizera um ser. Nela parecia germinar o mal como destino previamente traçado e a cumprir. Pois se de um pai assim se faziam os seus genes e se de um ato tão negro fora concebida?!
Desejou não ter vivido. Desprezou-se e a tudo o que a sua existência significava.
Fizera-se, porém, mulher de fé. Primeiro, seguindo os passos de todas as tradições, repetidas e ecoadas… Mas, vagar a vagar, percorrendo todas as procissões no seu interior, fora emergindo, em si, uma ténue luz no negrume do seu viver.
Vira-se triste, rendida, entregue…
As lágrimas de Maria Madalena, os passos noturnos de Nicodemos, os discretos espreitares de Zaqueu sobre o sicómoro fizeram-na, contudo, soerguer-se do chão talhado que prendia o caminhar. Das águas de todas as redenções haveria de levantar-se e fazer-se mulher nova… livre! Mais forte do que todo o destino.
Sete noites seguidas, um vulto assobiava ao barqueiro que assegurava a travessia entre as margens do Vouga: da margem direita para a esquerda. O silêncio preenchia o tempo da rápida ponte feita sulco de bateira nas águas serenas do rio.
Sob uma longa capa, o vulto subia, ainda sombrio e silencioso, até à casa do Costa, para se encaminhar para o Monte de Santo Adrião, rumo ao alto do Castêlo. O lugar que fora, outrora, lugar de um crasto, haveria de assistir à serena redenção e vitória sobre a força do destino.
Sentado na mais alta pedra do Castêlo, aquele vulto voltava-se em direção ao mar. Meditativo… O olhar longo. De esperança! O abismo seduzia. O abismo da morte, bem certo. Mas também o abismo sobre que havia que caminhar-se para o eterno. Diante de si, o contraste do esconde-esconde da luz com a noite. O branco e o escuro. O luar e a sua umbra…
Sete noites…
De chuva, de vento, de nevoeiro e tempestade… E de luar!
Sete!
Na oitava noite, o vulto abeirou-se da margem. Largou a sua capa negra, qual noite sobre os ombros, assobiou ao barqueiro, deu-lhe nome – ‘Caronte’! -, despediu-se dele e não atravessou.
Nessa noite, no cemitério novo, em Pessegueiro do Vouga, duas flores foram depositadas sobre o túmulo de A. e A.: uma branca e uma negra. E o silêncio deu lugar à melodia da esperança.


 


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

domingo, maio 11, 2025

Esperança ou utopia? Fundamentos para uma elpidologia de matriz cristã

 

Luís Manuel P. Silva e João José da S. P. Macedo

 

Utopia e esperança não coincidem, no seu significado, como conceitos, como ‘movimentos’ antropológicos. A utopia (termo cunhado por S. Tomás Moro, no seu célebre livro de 1516, cujo título vale a pena aqui reproduzir - Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia – e em que o protagonista é um português de nome Rafael Hitlodeu) é um movimento do sujeito em direção ao futuro. O sujeito, na utopia, gera o sonho de um outro futuro, de um outro mundo. O sujeito da utopia, cedo ou tarde, descobre, porém, que é o criador do sonho e, à ilusão, sente suceder a desilusão.

Na esperança, o movimento tem o sentido contrário: é o futuro que se antecipa no presente. O futuro habita o presente e, de forma proléptica (como recorda, finamente, o teólogo alemão W. Pannenberg), antecipa, no agora, o sentido último. Não é o sujeito que cria a esperança: é tomado por ela que o transcende.

Pannenberg vê, nos inúmeros pequenos ‘lampejos’ (o termo é meu…) de sentido – na linguagem, nas manifestações que suscitam espanto e admiração, nas inúmeras circunstâncias em que somos invadidos por expressões de simbolismo, etc. – o antecipar do sentido último. Entre esses assomos de sentido nos escombros da história, o ‘clarão’ maior é, bem certo, o acontecimento Crístico. No agora da História, antecipou-se, de forma máxima, o sentido último da história que continua a desenrolar-se, já não sem rumo, mas vislumbrando, nessa antecipação, que o seu caminhar não é um acaso, um errar, um peregrinar sem horizonte.

Esta síntese permite-nos constatar que ao sujeito imerso na lama do caminho histórico, é possível, nos pequenos fogachos de sentido, ir buscar presença desse sentido maior que neles se antecipa. Os sujeitos humanos podem, assim, à maneira dos veículos híbridos que, na extinção de uma fonte de energia, podem socorrer-se de uma outra, procurar outros e outros sinais, sabendo que em nenhum deles se esgota a fonte definitiva de que eles não são os criadores. Essa fonte transcende-os, supera-os, ainda que antecipando-se neles e deixando-se vislumbrar na sua efemeridade.

Sem, porém, a segurança que nos vem da experiência crística da superação da morte pela ressurreição de Jesus Cristo, estes lampejos de sentido nunca passariam de sinais utópicos, vulneráveis à leitura de que poderiam não ser mais do que a expressão de um poderoso desejo humano.

Essa ambiguidade é, aliás, observável no modo como os gregos - para quem ‘esperança’ se dizia com ‘elpís, elpídos’ (donde criamos a palavra ‘elpidologia’) – olhavam para a esperança. No mito de Pandora, pela visão de Hesíodo[1], esta abre o vaso onde estão todos os males, ficando, no seu fundo, apenas a ‘esperança’. Ora, a esperança estava no vaso dos males. Ela é entendida como um mal, talvez por, ao alimentar o desejo de um futuro diferente, nos poder fazer sonhar para além do que é possível concretizar.

Essa ambiguidade desvanece-se com o cristianismo. A esperança tem um fundamento supra-subjetivo, não como resultado de um desejo, mas como manifestação subjetiva (no sujeito), de uma realidade antecipada. Gera, por isso, confiança e supera o medo. Não será, aliás, fortuito que uma das mais frequentes afirmações neotestamentárias seja ‘não temais’ (perto de cem vezes).

E, onde se supera o medo, habita a liberdade, uma outra condição de que toda a tradição cristã dá eco e vinca como manifestação de se ser habitado pelo amanhã antecipado.

Onde há esperança, não há medo, há liberdade.

Uma autêntica elpidologia (de ‘esperança’) cria os fundamentos para uma sólida eleuterologia (de ‘liberdade’).



[1] Sigo a versão descrita por Pierre Grimal, em Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, p. 353.

 

sábado, maio 10, 2025

Habemus Papam | O sinal que 'Leão' nos dá


‘Habemus Papam’. A boa notícia ecoa como sinal do fim de uma provisória orfandade a que se sucede um jorrar de renovada esperança.

Ao anúncio da escolha concretizada, sucede o anúncio do nome escolhido e, com ele, como que um ‘programa’.

O inusitado nome de ‘Francisco’ deixara vislumbrar a ousadia e radical pobreza do ‘poverello’.

‘Leão’ traz um outro sinal.

E é esse que me proponho interpretar, sem a veleidade de pretender esgotar a sua significação e, muito menos, enclausurar nos estafados chavões de progresso ou tradição.

A Igreja será, sempre, lugar e comunidade em que confluem a memória do percorrido e a proléptica saudade do futuro. Por isso, querer encaixar um Papa no preconceito de ser ‘tradicionalista’ ou ‘progressista’ é tentação a que não cederei.

Antes, lanço-me ao caminho, sem medos nem receios: livre! Com a liberdade que nos vem do Mestre que, diversíssimas vezes, nos lembrou, principalmente, após a sua ressurreição, o seu ‘não temais’. Porque, como tantas vezes recordava um dos bispos de Aveiro, ‘não morreremos nem que nos matem’ (D. António Baltasar Marcelino).

Superados medos e preconceitos, olhemos para o que nos diz Leão XIV ao apresentar-se com este nome.

Regressemos, pela mão de Leão, ao seu homónimo antecessor, Leão XIII. Teve um dos mais longos pontificados (o quarto mais longo, após o do próprio S. Pedro, o de Pio IX e João Paulo II). Ultrapassou os 25 anos de missão pontifícia.

Mas a sua marca fundamental não advém da sua longevidade, antes de duas marcas que gostaria de destacar, neste contexto: o seu olhar à causa operária e a sua atenção às soluções que para ela eram apontadas.

Não pode olhar-se para Leão XIII apenas porque trouxe a causa social para o interior da reflexão cristã. Isso já não seria pouco, ainda que ela nunca tivesse estado ausente, faltando-lhe, porém, a sistematização que a Rerum Novarum (15 de maio de 1891) permitiu. Estar atento às ‘coisas novas’ era importante…

Mas não apenas…

Isso faria da Doutrina Social da Igreja um mero laboratório de diagnósticos.

Leão XIII diagnosticou com olhar fino, viu a dor dos operários, acorreu à sua inquietação, mas ousou interrogar as soluções que, então, eram apresentadas, com um equilíbrio que matizou, definitivamente, a doutrina social da Igreja.

Lembremos que o século XIX fervilhava…

Ao mesmo tempo que se sentia a efervescência resultante das oportunidades abertas pela revolução industrial, que parecia colocar a ciência ao serviço da eficiência produtiva, as respostas aos problemas que tal realidade fazia emergia pareciam um ‘combate de boxe’ sem conciliação possível senão pelo ‘knock out’ de uma das partes.

Entre a visão liberal, em que assentava uma abordagem ‘selvagem’ (termo utilizado duas vezes na encíclica), e a via socialista parecia ser impossível qualquer conciliação.

Leão XIII vislumbra uma via ética, moral, de fortes implicações práticas, em que a legitimidade e importância da posse de propriedade privada (como condição de liberdade) não pode concretizar-se sem o respeito pelo princípio que virá a designar-se como o do ‘destino universal dos bens’. O que nos pertence deve ser possuído com um sentido comum e com forte sentido de justiça. Somos administradores de bens de que não somos os donos absolutos, mas recetores de dons concedidos.

 

Com efeito, o século XIX vira emergirem os movimentos influenciados pelo socialismo utópico, pelos movimentos anárquicos e pelas correntes de influência marxista e engeliana. E percebera a tentação da abordagem liberal.

Perante estas duas linhas, a Igreja, pela palavra e pena de Leão XIII, reconhecia e assumia a importância da atenção que lhe deram esses movimentos (como podiam ficar sem resposta cristã os esmagados operários?), mas divergia das soluções que, entretanto, tinham emergido, por recusarem, uns, o direito à propriedade privada ou assentarem numa visão conflitual das relações (a tentação da visão da relações de sociedade como assentes numa permanente luta de classes continua, hoje, disseminada por todos os âmbitos da realidade social, carecendo de nova leitura e novas propostas…) e, outros, uma adequada compreensão da liberdade como condição que deve encaminhar-se para a busca da verdade…

Leão XIII afirmava-se, assim, como um fino analista da sociedade e das suas mais candentes dificuldades (colocando-se do lado dos mais frágeis e ‘impoderosos’), mas recusava que a solução passasse pelas vias que os movimentos emergentes propunham.

Sendo que havia, ainda, que ter em conta que, sob as soluções de pendor socialista (assim eram designadas sem as distinções que posteriormente, vieram a fazer-se entre a linha mais moderada e a de teor marxista), deslizava um lençol freático de ateísmo que imanentizava o ser humano, reduzindo-o à dialética histórica. Leão XIII percebia que as soluções humanas sem o horizonte divino tendiam a diluir a humanidade numa vertigem sem rumo, potenciando a sua anulação em nome do coletivo anónimo e despersonalizante que mata a esperança. A história veio a dar-lhe razão.

Retemos, por isso, de Leão XIII, a preocupação com a causa dos mais frágeis da sociedade, a atenção fina às soluções que, seja pela hiperbolização da liberdade, seja pela fusão do indivíduo no coletivo, esquecem o ser humano integralmente considerado, se têm revelado insuficientes e incapazes e, por fim, a afirmação de que a humanidade não nasce de si, mas encaminha-se para a eternidade, horizonte sem o qual se aniquila em lutas fratricidas…

Ontem, como hoje, de Leão (de XIII a XIV) espera-se um alargado abraço aos que a sociedade esquece, não se satisfazendo com as vozes que, em nome de sedutoras ‘melodias’ que inebriam, apontam soluções provisórias como se pudessem ser definitivas, mas apontando rumos que se hão de configurar como respostas sempre capazes de acolher o todo e não se ficando pela parte. Porque é isso ser católico: não se ficar pela parte, mas ter uma visão que olha o todo, o universal, o integral… O Homem todo… Os Homens todos… A realidade toda! O horizonte todo!

sexta-feira, maio 09, 2025

O aborto não é, de modo algum, um direito: as três razões! …para além de todas as outras!

 

As razões pelas quais se deixou de procurar razões…

Numa sociedade não relativista, os valores ético-morais são anteriores à decisão do sujeito; não é ele que os cria. O sujeito reconhece-os e molda a sua ação à anterioridade deles.

Aplicando…

Um sujeito que se depara com a existência de outro sujeito humano reconhece este segundo sujeito, mesmo (ou principalmente) quando este está em situação de particular fragilidade e dependência.

E, mesmo quando o sujeito já está ‘meio morto’, a sua atitude não é a de garantir a sua morte, mas a de cuidar dele. O sujeito humano ainda não tomado pelo espírito relativista reconhece a humanidade do sujeito frágil e cuida dele. Não procura razões (e não razões) para legitimar a sua eliminação, e, muito menos, esvazia a humanidade nele presente. O ser humano é, num espírito não relativista, um humano e participa da humanidade. As relações estabelecidas com ele são humanas.

Uma sociedade, porém, que se deixou tomar por um relativismo teórico, primeiro (ouvindo as vozes de teóricos que tudo foram fazendo para relativizar o significado da dignidade humana), e que, de seguida, permitiu que se instalasse um relativismo prático, contava, ainda, com o baluarte do Direito.

Os legisladores permaneceram, durante muito tempo, atentos e, por isso, imunes às vozes que pretendiam levar, na voragem relativista, esse mesmo Direito. Sempre o entenderam como a busca do justo…

Os tempos foram, no entanto, deixando que também o Direito fosse tomado por este fenómeno de diluição dos valores, ao ponto de, como recorda Zigmunt Bauman[1], os tornar ‘líquidos’, liquefazendo os laços mais sólidos e conduzindo à ‘erosão do direito’.

Antes da erosão do direito, um filho de humanos era, desde a primeira hora, um humano como eles.

A erosão do direito repercutiu-se num modus cogitandi que passou a buscar motivos para legitimar o que se afigurava, obviamente, como ilegitimável.

O sujeito a eliminar (no caso do aborto, o filho dos humanos) foi envolvido em cápsulas de insensibilização, de modo a garantir que sobre ele se pudesse operar o ato que a consciência identificava com ilegítimo. Para tal, urgia ‘desumanizá-lo’.

De ‘coisa’ a ‘mero conjunto de células’, passando pela legitimação circunstancial por motivo de condições de vida desfavoráveis da mulher (circunstâncias ainda não existentes, no momento da redação da lei, que é prévia ao que pretende legitimar…), o sujeito a eliminar é, primeiramente, reduzido da sua condição de humano, para que, de seguida, possa passar-se à aceitação do seu ‘deitar abaixo’.

 

As três razões pelas quais o aborto não pode ser um direito da mulher: o filho, o pai e a mãe

Há, porém, três motivos que são insofismáveis, nesta equação: o filho, o pai e a mãe…

Aquele ser que habita numa ‘morada’ da qual espera proteção, é, biologicamente, distinto da mulher que tem todo o poder de o proteger. É insofismável que é filho de humanos, tendo, biologicamente, origem numa célula sexual masculina fundida com uma célula sexual feminina. Tem, por isso, um pai e uma mãe.

Estas são as três razões pelas quais jamais o aborto, que é a eliminação, por um dos três, deste ser em que se cruzam três existências (a dele que é o eixo com as duas outras: a do pai e a da mãe), poderia ser um direito. No aborto, morre o filho (primeira vítima) e, com ele, morre o pai e morre a mãe. São muitas vítimas em nome de um suposto direito!

Como poderia ser o direito de um (‘direito’ é o reconhecimento de que algo é devido: à luz de Ulpiano, ser justo é atribuir a alguém algo que lhe é devido), quando outros dois ficam em causa? Dois, não; três! É curioso que, nesta equação, o putativo direito da mulher rivaliza com o direito da mãe. A mulher que elimina o filho deixa de ser mãe, no próprio momento em que concretiza a eliminação daquele que faz dela mãe. A mulher exerceria um ‘direito’ contra o qual a própria condição de mãe se oporia. A mãe só existe porque há filho. Do mesmo modo, ao eliminar o filho, a mulher também eliminaria o pai, cuja existência (de pai; não do homem que é pai) depende da existência do filho.

Os relativistas esqueceram-se (é curioso que a palavra grega para ‘verdade’ – ‘Alêtheia’ - signifique, à letra, ‘esquecimento’, ‘não lembrar’) de que o filho é, por definição, um conceito relacional. No filho, entrelaçam-se as três vidas que o aborto quer cindir.

Deveria ser clara a constatação aqui feita, mas a erosão do Direito é já tão profunda que é evidente que, qualquer que seja o argumento e por mais insofismável que ele seja, o legislador que se sente com o poder irá exercê-lo, não em nome da justiça, mas do poder que possui.

A erosão do direito chegou ao ponto da própria corrosão.

Porque não hão de todos os sujeitos reivindicar para si serem a medida de todas as coisas se o pode ser quem mais dever tinha de proteger quem de si depende, exclusivamente? Para que serve, afinal, o Direito se não for para nos proteger da força que nos pode destruir, definitivamente?



[1] Autor de ‘Amor líquido’, ‘Cegueira moral’, ‘A vida fragmentada’, etc., editados, em Portugal, pela Relógio d’água

O insubstituível papel do cristianismo: superando o outro ‘erro’ de Descartes

 

Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia

E se os desafios de hoje puderem ser iluminados pelos dos primeiros tempos do Cristianismo?

A história e os tempos são únicos e irrepetíveis. A permanência, porém, das inquietações humanas, permite revisitar, amiudadamente, as soluções que, vez após vez, se vão revelando insuficientes, como é próprio da condição humana na história. Por este motivo, é necessário manter o olhar atento e vivo, desperto para todas as soluções que se apresentem como ‘fim da história’ e o definitivo resolver dos elementos de tensão próprios da condição humana.

Em tudo o que somos, há uma dualidade. Dualidade responsável pelas situações de tensão próprias do existir. Colocam-nos em condição de ‘crise’ constante.

Perante a dualidade não pode resultar, porém, a cedência à tentação do dualismo que tem a pretensão de resolver esta tensão, reduzindo o humano a uma só das suas dimensões.

Recordava, com sábia leitura, Viktor Frankl, o criador da logoterapia e pensador luminoso, infelizmente, ainda pouco lido entre nós (mas merecedor de uma tese de doutoramento por parte do eminente bispo de Bragança-Miranda, D. Nuno Almeida), cujas conclusões foram fermentadas na dura experiência de quatro campos de concentração por que passou, que a tentação é, muitas vezes, a de reduzir o humano ao ‘não mais do que’: ‘O niilismo de ontem ensinava o «nada». O reducionismo de hoje prega o «não é mais do que» […] há diferenças dimensionais que o reducionismo ignora e minimiza. (Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido, p. 57.) ’[1]

Esta tentação teve um particular impulso, ao longo da era de que ainda não teremos, definitivamente, saído (ainda que seja possível sentir o emergir do paradigma ‘pós-moderno’, que se caracteriza pela volatilização da razão e a prevalência da sensibilidade e do afeto), designada como ‘modernidade’. Entre os contributos mais marcantes para este impulso está, certamente, o de Descartes.

Para um leitor menos avisado, poderá parecer que estou a ir demasiado longe, ao invocar o pensamento de um autor dos já longínquos séculos XVI e XVII… Valerá a pena, porém, lembrar que, de algum modo, hoje, os nossos legisladores e, afinal, todos nós, são (somos), de algum modo, discípulos de Descartes.

E sê-lo-emos por um de dois motivos: pelo seu dualismo ou pelo seu individualismo solipsista.

António Damásio, no seu célebre e oportuno ‘erro de Descartes’[2], identifica no dualismo cartesiano o seu erro fundamental. E concordo que essa é parte de um diagnóstico a reter, ainda que a valorização da dimensão emocional, que Damásio parece sustentar como a escolha alternativa, não me mereça igual subscrição. Mas vale a pena reter a ideia de que o dualismo é uma das suas marcas e que ainda hoje a notamos, entre nós.

Ousaria, porém, acrescentar um outro erro.

Descartes adota um modus cogitandi (um modo de pensar) que ainda hoje temos, entre nós. Descartes anda em busca de ‘ideias claras e distintas’, puras, isoladas da história. Essa sua busca fá-lo procurar uma primeiríssima certeza que ele encontra e sintetiza no seu lapidar ‘cogito’: ‘penso, logo existo’. A primeira certeza do sujeito cartesiano é a de que pensa e, por isso, existe. O outro, os outros, são, assim, acidentais e acessórios para a definição da identidade do sujeito cartesiano.

O sujeito cartesiano (e, com ele, o que pensam os discípulos de Descartes) é autossuficiente, pensa-se prescindindo dos demais.

Regressar às fontes cristãs: a certeza de que o gnosticismo não vence…

Paremos, aqui, momentaneamente, a nossa reflexão para introduzir um elemento da história recente que cruzaremos com o percurso reflexivo feito até aqui.

Em 2022, o Papa Francisco proclamou Santo Ireneu de Lyon como Doutor da Igreja, com o título de ‘doctor unitatis’ (‘doutor da Unidade’). Francisco sabe quanto significa esta escolha. Uma das principais batalhas de Santo Ireneu, em finais do século II, tem muito em comum com os traços da atualidade. Na sua obra mais conhecida, ‘Adversus Haereses’, Ireneu enfrenta os desafios do gnosticismo, poderoso modo de pensar que foi, qual hidra, emergindo na história de um e outro modo. Então, como hoje, o humano ficava reduzido ao anímico e o corpo parecia ser prescindível, não fazia parte da identidade… Veja-se como pensam a ‘teoria de género’ ou os diversos transumanismos que se propõem reduzir o humano à sua ‘alma’, ao seu ‘pensamento’. O corpo, nesta visão, nada é… Agora, como outrora! E, agora, como outrora, o corpo, reduzido à condição de não essencial, fica ‘imune’ à abordagem ética: tudo pode fazer-se sobre ele, pois não estará em causa o humano.

Perante a sedução gnóstica, Ireneu foi contundente: ‘A glória de Deus é o homem vivente’ (Santo Ireneu de Lyon, Adversus Haereses, 20,7[3], evidenciando que é a unidade corpo-alma que reflete a bondade da criação e não, apenas, uma parte das duas. Aliás, toda a escatologia cristã evidencia e sustenta-se neste princípio ‘encarnação’, sem o qual não temos o homem todo, ‘alvo’ da salvação com que Deus brinda a sua criação.

Os tempos [em] que vivemos pedem, por isso, que correspondamos ao desafio conciliar, ainda não totalmente cumprido, de ‘[…] um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã’ (Perfectae Caritatis, 2)

- ‘E porquê?’ - Poderemos perguntar.

O Pe. José Miguel Cardoso, na sua muito aclamada tese de doutoramento, defendida em Roma e em boa hora editada em Portugal, responde a esta interrogação, sabendo-se que o assunto em análise, ali, são, precisamente, as matérias de escatologia: ‘Por que razão o período patrístico é crucial para toda a reflexão teológica (e escatológica)? Porque é o período que nos oferece o “alfabeto teológico”, cujas […] formulações iniciais determinarão todo o azimute teológico’[4]

Pede-se, por isso, que nos ‘alfabetizemos’, vez após vez, no ‘idioma cristão’ para que não percamos o norte, o azimute, quando o mundo parece desnorteado.

Mas – dizem alguns – com que legitimidade pode o cristianismo falar, quando tantos erros cometeram os cristãos, ao longo da sua história?

Nicolái Berdiáiev responde, com a ironia que perpassa toda a sua obra e que faz, tantas vezes, lembrar Chesterton: ‘Como pode condenar-se o cristianismo em função da indignidade dos cristãos quando ao mesmo tempo se repreendem os mesmos cristãos por faltarem à dignidade do cristianismo?’[5]

Talvez quem mais necessite de ouvir estas palavras de Berdiáiev sejam os próprios cristãos, tantas vezes titubeantes e inseguros sobre a qualidade do tesouro que lhes foi confiado…

Regressemos, mais seguros, ao ponto da reflexão sobre ‘Cartesius’.

Dizíamos que Descartes deixou uma longa sombra de dualismo, já sobejamente identificada e recordada por António Damásio. Mas identificámos um outro erro que se lhe pode apontar, não menor no grau de impacto sobre as convicções e axiomas em que assenta a modernidade que temos construído: o sujeito cartesiano parece ter nascido sem pai nem mãe. Fundando um solipsismo teórico, mas com profundo impacto sistémico, Descartes convenceu-nos de que a primeira certeza de que nos damos conta é da nossa existência, contrariando a nossa própria natureza de seres umbilicais. No centro do nosso abdómen, está a marca que Descartes quis ofuscar: o sinal inequívoco de que não nascemos de nós. O umbigo é a marca insofismável de que dependemos de um outro, na fase mais decisiva do nosso existir. Por isso, antes da certeza de que existimos, está a certeza de que existem os outros. Sem eles, nunca a potencial consciência que nos habita como possibilidade poderia tornar-se atual e efetiva. São os humanos que nos antecedem (os inúmeros ‘tus’ de quem herdamos a vida, a cultura, a língua) que criam as condições para que o ‘eu’ possa consciencializar-se de si.

Dessa condição de intrínseca indigência e relacionalidade do humano nos falam todos os mistérios cristãos e, entre eles, o da própria Trindade que diz que a natureza de Deus é Amor, isto é, o amor com que Deus se expressa não é um acidente, mas a expressão de Si Mesmo. E, sendo o humano criado à imagem e semelhança de Deus, é enquanto amor que o ser humano se realiza. Sendo o egoísmo o contrário do amor!... O pecado de Adão (o outro nome de toda a humanidade) que outra coisa é senão o solipsismo e a ilusão de se bastar a si mesmo?

Do cristianismo espera-se, por isso, que continue a ser, ainda que em contracorrente com a ilusão da solidão espelhada em si mesmo, a bússola do azimute certo: o de que só chegamos à meta, juntos. Não nos geramos a nós mesmos, não podemos pensar uma autonomia que dispensa os outros; verdadeira autonomia não é anomia e falta de referências, como se o sujeito isolado gerasse as leis e as normas, e o mundo começasse, então. A liberdade em que queremos sustentar as nossas sociedades é uma ilusão: a do solipsista que se concebe como absoluto e sem dependências. Isso é algo, mas não será, certamente, humano. Sem os outros, não haverá o eu, porque somos ‘pessoas’, seres racionais e relacionais, conceito gerado pelo cristianismo; uma dívida nunca saldada pelo mundo que não seria o mesmo se tal conceito não o tivesse criado esta religião que faz da relação o seu traço definidor. Somos enquanto somos com os outros. Morremo-nos na solidão e na ilusão de nos bastarmos.

[1] Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido, Alfragide, Lua de papel, 2021, p. 57.

[2] António Damásio, O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano, Mem Martins, Publicações Europa-América, 199818, pp. 253ss.

[3]  Sigo a tradução feita pelo saudoso biblista, Pe. Doutor Franclim Pacheco, em edição publicada em https://diocese-aveiro.pt/cultura/

[4] José Miguel Cardoso, Para uma escatologia sapiencial: A herança escatológica de Karl Rahner e Johann Baptist Metz, Braga, Livraria DM, 2023, p. 97.

[5] Nicolái Berdiáiev, Contra a indignidade dos cristãos: Por um cristianismo de criação e liberdade, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2019, p. 134.

O perdão diviniza (e humaniza) um mundo geométrico

 

Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia

A ideia de um universo (e, com ele, de toda a realidade) geométrico, totalmente previsível, é muito sedutora. Demonstra-o a (quase) omnipresença da visão fatalista da existência nas diversas religiões, mitologias e inclusive nas leituras filosóficas (Nietzsche recupera a ideia da circularidade do tempo como evocação da ideia do eterno retorno… Tudo regressa, vez após vez, sem que o humano nada consiga fazer para o evitar!).

E, curiosamente, num tempo em que o ‘mar’ cristão reflui, as areias sobre as quais este se espraiava deixam ver a emergência regressiva das visões geométricas.

Veja-se, como ilustração disto, a cedência à ideia de ‘Karma’ ou de ‘destino’ que, paulatinamente, vai tomando conta dos espíritos, sem que, criticamente, se constatem os custos da sua aceitação.

É que, de facto, a ideia é sedutora. Torna tudo previsível e diminui o assombro do inesperado… O inesperado causa ansiedade, com a qual temos dificuldade em conviver. Queremos ter na mão as certezas e não ter de nos inquietar em procurar ajustar o rumo…

Mas poderia o ser humano sobreviver à geometricidade do mundo?

O salmista do belíssimo salmo 130 enuncia a resposta: ‘Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?’ (cito a partir da tradução da Difusora Bíblica, edição online: https://www.paroquias.org/biblia/index.php?c=Sl+130)

A ideia fatalista, geométrica, presente nas religiões orientais e na mentalidade grega, contrasta com o que emerge na visão judaico-cristã.

Em tempos em que se discutem os custos da diminuição da marca cristã na sociedade, os sinais ‘geometristas’ (crio o neologismo para evocar esta ideia da geometricidade da existência) estão diante de nós e evidenciam o real impacto para além dos custos tantas vezes já denunciados: na perda da sensibilidade ética para com os mais frágeis, na perda da ‘semântica’ cristã na iconografia e nas múltiplas expressões artísticas, na fragilização dos liames sociais, etc. Uma tal geometricidade faz do erro condição para a errância. Aquele que erra, sem a possibilidade do perdão, torna-se um errante[1].

Ao judeo-cristianismo se deve, com efeito, a emergência, na humanidade, da ideia de perdão, ideia que quebra a linearidade das consequências em relação aos atos realizados, essa inevitabilidade de se tornar errante porque se errou.

A ideia ‘jubilar’ de perdoar os erros passados, reinaugurando um novo tempo, densifica-se com a afirmação da condição paterna de Deus eterno. A ideia, que, no Antigo testamento, aparecia 11 vezes, é afirmada, no mais curto Novo Testamento, 107 vezes[2]Abba (‘paizinho’, como se se tratasse do balbuciar do nome por uma criança: ‘Ba-Ba’!) é o nome predileto de referência de Jesus Cristo a Deus.

Ilustram, de forma particularmente plástica, duas imagens que recolho da arquitetura medieval.

No tímpano da Catedral de Autun, há um detalhe particularmente belo. Retrata-se, ali, o juízo final, com toda a carga dramática que o medievo lhe associou. Mas um detalhe desconcerta. O Arcanjo Miguel aparece a ‘falsificar’ a balança, em favor do homem pecador[3]. A falsificação não é, aqui, evocação da ideia de uma ‘jogada’ pouco honesta, mas expressão da misericórdia de Deus que, por intermédio dos seus ‘mensageiros’ (aqueles que levam a Sua ‘mensagem’), põe em ação a sua ‘temperança’ e compassiva atitude de acolhimento da obra da Sua criação, marcada pela debilidade e fragilidade.

Também da idade média recolho a segunda imagem. Encontrei-a, pela primeira vez, na capa de um luminoso livro de Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas[4]. Retrata-se, nesta imagem, o que é ‘descrito’ no capitel de uma coluna da Basílica de Santa Maria Madalena, em Vezelay, igreja edificada entre meados do século XI e inícios do século XII (foi dedicada em 1104). No lado esquerdo do capitel, há um homem enforcado que vemos ser transportado, aos ombros, no lado direito. Percebemos a densidade deste momento quando reconhecemos, no enforcado, o traidor Judas Iscariotes e, no que o leva aos ombros, o próprio Jesus. A vítima voluntária transporta, voluntariamente, o seu verdugo… Cúmulo do perdão. Cúmulo da quebra da geometricidade. Numa lógica fatalista, nada mais sobraria a Judas do que a perda eterna… (É essa a tentação e sedução maior… Queremos que a justiça prevaleça, sem complacência…)

Mas Judas podíamos ser nós.

Oh, quantas histórias o evidenciam, ao longo dos tempos!

Inquieta dar conta de como os nazis cavalgaram o monte de escombros de vítimas com a complacência de ‘iguais a nós’…

Conta Radcliffe, num dos seus sempre muito narrativos livros… ‘O norte-americano Jim Campbell foi copiloto num avião que bombardeou o Japão, durante a II Guerra Mundial. Depois da Guerra, tornou-se dominicano, mas era sempre atormentado pela sua participação na destruição de pessoas inocentes. E decidiu, por isso, ir ao Japão pedir perdão. Encontrou-se com Oshida, um dominicano japonês, numa conferência nos Estados Unidos e, por isso, foi vê-lo no Ashram de Oshida, nas encostas do Monte Fuji. Disse-lhe: ‘Padre Oshida, bombardeei o vosso povo durante a guerra. Vim pedir o vosso perdão.’ E Oshida replicou: ‘E eu, nessa altura fazia parte da força antiaérea japonesa. Tentei deitar-te abaixo e foi pena ter falhado!’ Comenta Brian Pierce OP: ‘Ambos se riram e se abraçaram!’ O modo como o padre Oshida, um santo homem, mostrara a Jim que ambos tinham participado no mesmo mal, foi muito libertador para Jim.’[5]

Desta condição nos fala, densamente, o evangelho de Lucas, ajustadamente designado como o ‘evangelho da misericórdia’. Outro mundo emergiu das páginas do evangelista médico e outro mais cinzento haveria se dele não tivéssemos recebido parábolas como a do filho pródigo (do Pai de Misericórdia) ou do bom samaritano, ou a do amigo inoportuno ou, ainda, a do juiz e da viúva, ou do homem rico e do pobre Lázaro (cujo nome é um epónimo de todos os desamparados: ‘Deus ajuda’)…

O perdão abre um novo mundo onde a circularidade do tempo ou a inevitabilidade do destino afundaria no abismo…

Deus, ao mostrar-se, pelo Cristianismo (filho do Judaísmo), como Amor e que a Criação reflete, ainda que como centelhas na noite, a marca do Criador, assegura-nos que o perdão não é um apêndice, mas a condição própria do mundo, de toda a realidade: a surpresa habita-a como possibilidade omnipresente do novo quando o envelhecido parece decrépito e sem esperança.

Perdoar faz-nos novos, faz-nos habitar, de um modo assombroso e assombrado, o tempo para nos assomarmos ao umbral do que será sempre novo.

Um Deus trinitário, que é dinamismo permanente de encontro e partida, de recomeçar sempre novo, é disto que fala e é a grande novidade cristã.

Se o mundo se esquecesse, quem o continuaria a dizer, contrariando os ecos no vazio do universo geométrico? Quem diria, em sussurro, ao ouvido dos isolados humanos que, um dia, erraram, que errar (ser errante) não tem de ser o seu destino?…

[1] Ideia que apresentamos aqui (https://teologicus.blogspot.com/2023/12/o-tempo-e-advento_4.html) e encontramos belamente desenvolvida na Nota Pastoral da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé para a Semana Nacional da Educação Cristã 2024: «Construtores do Futuro como Peregrinos de Esperança

[2] Cfr. Timothy Radcliffe, Ir à Igreja porquê? O drama da Eucaristia, Prior Velho, Paulinas, 2010, p. 223.

[3] Cfr. Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 86.

[4] Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas, A literatura enquanto desafio à fé cristã, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018.

[5] Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 150.


 

quarta-feira, maio 07, 2025

Sabes, leitor... | 17 | Marca de água do livro de Maria Margarida Teixeira, 'O que quero dizer ao morrer'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Maria Margarida Teixeira, O que quero dizer ao morrer, Braga, Editorial AO, 2024.

 

Há autores que, pela densidade das palavras com que se fazem as suas obras, gostaríamos de ter conhecido antes de os conhecermos como autores da sua obra. De alguém luminoso nos falam as obras que deixam.
Não conheço Maria Margarida Teixeira, mas a autora que conheci, em ‘O que quero dizer ao morrer’, fala-me de uma pessoa brilhante, que irradia luminosidade em seu redor.
Maria Margarida Teixeira é médica oncologista. No seu livro, ficamos a saber que é, também, esposa e mãe. Acima de tudo, percebemos quanto de humanidade há no seu ser médica. A pessoa de quem nos falam as palavras escritas no livro que nos faz coabitar, amigo leitor, contemporaneamente, nestas linhas (eu, enquanto escritor, e, enquanto leitor, o caríssimo amigo ou amiga que aceitou percorrer, comigo, esta breve recensão), é alguém que, pela presença, enche de vida e esperança o entardecer das pessoas com quem se cruzou. O que nos conta é mais do que narrativas em terceira pessoa; é um dizer-se no morrer dos outros. As palavras de John Donne ganham um renovado significado ao conhecer-se o que nos conta Maria Margarida Teixeira: os sinos que dobram pelo partir de alguém são sinais do nosso próprio partir. Sem o drama do desespero: antes, com a serenidade da esperança.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

Há livros que não queríamos acabar, nunca, de ler. Acabar a sua leitura deixa-nos em luto.
Este é um deles. E soma-se ao luto resultante de nos morrer, na última página, o livro que não queríamos deixar, o próprio conteúdo do livro. Fazemos um luto porque o livro termina e fazemos o luto por cada uma das pessoas que Maria Margarida Teixeira nos apresentou e permitiu que acompanhássemos no derradeiro momento.
‘O que quero dizer ao morrer’ é um livro cheio de vida, apesar de nos falar do morrer.
Tem a originalidade que só a vida pode ter. Originalidade que encontramos na própria criatividade do título. ‘O que quero dizer ao morrer’ fala-nos, bem certo, das palavras que queremos que guardem de nós, quando morremos, mas, também, do que significa o nosso próprio morrer e do que, de algum modo, queremos dizer ao personificado momento do morrer. Muito lhe queremos dizer. Mas, principalmente, queremos mostrar-lhe que a sua ‘palavra’ não é a derradeira e definitiva. Por ser um livro de esperança, tudo nele fala da vida, apesar de o cenário ser o da morte e o do morrer.
Curiosamente, apesar de a morte ser ali apresentada como o enquadramento de todas as vidas ali descritas, fala-se, em todo o livro, do ‘morrer’. Nenhum dos ‘protagonistas’ é um ‘entregue’: todos são protagonistas do seu morrer, pela determinação com que acolhem o morrer natural, na ‘hora’.
Não são protagonistas como os que o pretendem ser pela decisão do momento do morrer. Como conta a própria Maria Margarida, em cerca de trinta anos de exercício profissional, só uma pessoa lhe falou de eutanásia, mas ocultando-se, neste seu pedido, o desejo de reencontro com a mãe, com quem se tinha desentendido e cujo amor pensava ter perdido.
Este é, por isso, um livro de humanidade e sobre como pelo modo de vivermos o morrer nos definimos enquanto humanos.
No viver o morrer se define que o morrer é viver. Sem que a autora nunca o refira, pressenti, enquanto um apaixonado pelo pensamento de Viktor Frankl, em cada página deste gigante livro (apesar das suas poucas páginas), a intuição fundamental do criador da logoterapia: aqueles que assentam a sua vida na fé (seja religiosa, explícita ou não) sobrevivem à morte, porque nela fundam a esperança.
Este livro, escrito por uma pessoa cujos pilares assentam na fé cristã, recorda que o humano que somos se distingue pela abertura ao que transcende, ao que está mais além. E daí refulge a luz para iluminar as zonas sombrias do existir.
Leia, meu bom amigo, ‘O que quero dizer ao morrer’. Aqui, vive-se para sempre…

Na mesma página que o autor (citações)

‘Há muita vida no fim de uma vida.’ (p.11)

‘Tudo se manteve inteiro, vivo e inabalável. Por isso, quando a morte por cancro chegou, compreendi por dentro que só o cancro tinha morrido.’ (p. 12)

‘[…] sem estas pessoas, eu seria uma médica muito diferente daquela que sou hoje. Não saberia valorizar como é importante dar tempo à pessoa que está a morrer, nem teria apreendido como pessoas com doença terminal e pessoas moribundas têm ainda, no tempo que lhes resta, momentos para viver, coisas para destinar, palavras para dizer, ideias para ponderar e gestos de afeto a oferecer.’ (p. 12)

‘O meu Tutor lembrava-me apenas isto: - «Nós não temos resposta para todas as interrogações do doente». […] – Deixa, sem pressa, que o doente te mostre o tamanho dos seus problemas, para que tu lhe mostres a grandeza do ato médico, porque quando parece não haver mais nada a fazer é quando tudo há a fazer.’ (p. 17-18)

‘Com o tempo, consegui perceber o que já intuía e aceitar aquilo a que, até àquele momento, eu não tinha conseguido dar voz, nem querido reconhecer. Na vida de uma interna de oncologia há uma diferença entre perguntas sem resposta e perguntas não escutadas!’ (p. 22)

‘Todos aqueles que amam ficam parecidos com Deus e nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos (1Jo 3,14).’ (p. 32)

‘Uma mulher com cancro não «tem» só corpo, mas «é» também o seu próprio corpo.’ (p. 35)

‘[…] há tanto para viver no fim de uma vida!’ (pp. 35-36)

‘Deixei que o seu olhar despenteasse o meu coração.’ (p. 42)

‘Durante a espera, lembre-se que a morte é como um espelho, o que nele vemos desenhado é a dignidade da vida humana’. (p. 46)

‘Certo dia, sentadas na biblioteca da Quinta das Lágrimas, a Mila coloca em cima da mesa um embrulho.
- É para si Margarida, abra.
Abri em silêncio, muito comovida. Um galheteiro de cristal. Fiquei sem palavras.
- Sabe o que significa um galheteiro?
Não respondi.
- Margarida, o galheteiro simboliza o equilíbrio. Azeite e vinagre temperam a vida.’ (p. 98)


‘- Margarida, olhe para mim, isto já não é viver… Porque não me dá a injeção letal?
- A Mila sabe que é uma pessoa muito importante para mim…
Silêncio.
- Eu não consigo dar-lhe uma injeção que eu sei que a vai matar.
Silêncio.
- Não consigo despedir-me de si dessa maneira tão brutal.
- Mas porquê, Margarida? Isto já não é viver…
- Mila, porque é que diz que já não é viver?
- Porque estou aqui deitada, sem fazer nada, não sirvo para nada, só penso, mas não chego a conclusão nenhuma…
- Ah! Afinal havia algo – pensei eu.
- Mila, em que é que pensa?
Silêncio.
- Na minha mãe… - confessou. O seu olhar era triste.
- Porque sente tanta tristeza no seu coração? – perguntei.
- A minha mãe já me trouxe a roupa que eu quero que me vistam, quando morrer… está tudo… é escusado a minha mãe voltar aqui… ela está muito cansada… Ontem discutimos… mandei-a embora…
- Mas a Mila quer voltar a ver a sua mãe antes de morrer?
Silêncio.
- Sim, Margarida.
- Muito bem, eu vou ligar à sua mãe.
E a partir desse momento, a conversa sobre eutanásia acabou.’ (pp. 99-100)

‘Alguns poderão pensar qual era o sentido desta agonia e porque não administrar a injeção. A resposta está na vontade da Mila em continuar a alimentar-se para viver. Na verdade, o seu pedido para morrer depressa escondia um medo terrível: o medo de morrer sozinha, longe da sua mãe. Assim, mas valia morrer rapidamente do que sentir essa dor dilacerante de filha abandonada.’ (p. 101)

‘Sou oncologista e a Mila foi o único pedido de eutanásia em quase trinta anos de prática clínica. Resolvi contar este caso clínico para mostrar ao leitor como os pedidos de eutanásia não são frequentes e para esclarecer como o pedido de eutanásia da Mila não era sinónimo de querer a morte. Imagine, caro leitor, que a injeção letal tinha sido administrada. Certamente, eu teria acertado no alvo errado, porque havia outra coisa que era pedida. A Mila não pedia a morte. O que desejava era o amor da sua mãe.’ (p. 102)

‘[…] permitir a chegada da morte natural é totalmente diferente de dar a morte com uma injeção letal.’ (p. 103)

‘No início deste livro, manifestei a minha crença de que o modo como enfrentamos a morte nos define. Os casos relatados mostram que todas estas pessoas não tiveram e morrer um sofrimento atroz, nem excruciante, nem intolerável. Por isso pergunto: porque é que não tiveram um morrer violento? O que terá, realmente, feito a diferença na doença e na morte destas pessoas? Na minha opinião existiram três fatores determinantes: fé, samaritanos e cuidados de saúde.’ (p. 117)

‘A fé de cada uma destas pessoas foi um raio de luz na escuridão. Mudou tudo. E foi graças a estas pessoas que eu creio que todos temos fé. Creio que todos ao longo da vida temos admiráveis coincidências, encontros felizes, acasos de sorte ou o que lhe queiramos chamar. Eu chamo a estes acontecimentos singulares «instantes de fé». Tecem uma série de redes de reconhecimento e ligação nas profundezas de cada ser humano.’ (p. 119)

‘Todos faríamos bem em fazer da história destas pessoas sementes para o caminho.’ (p. 119)

‘Foram eles [os samaritanos], com a sua amável presença, com as suas palavras serenas, com os seus gestos de ternura, que tornaram a morte do outro não apenas uma história, mas sim uma memória com identidade.’ (pp. 119-120)

‘[…] são cada vez mais os meus doentes com doença oncológica a morrer tragicamente sozinhos. Isto radiografa uma desumanidade cortante, em crescendo no nosso país. […] Contudo, recentemente, em Portugal, surgiram as cidades/comunidades compassivas – uma nova esperança para quem precisa e está só.’ (p. 120-121)

‘Sofrimento intolerável só existe quando ninguém cuida. Por isso, escrever este livro foi a forma que encontrei para partilhar um modo de morrer, pois existem diversas formas de morrer. Eu escolhi contar a morte natural acompanhada por acreditar que vale a pena morrer assim. «Valeu a pena» foram as últimas palavras que eu ouvi do meu pai quando se abandonou à transcendência e, serenamente, se deixou ir. Três palavras de esperança, três sementes para o caminho…’ (p. 122)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

  (‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião) Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Ru...