segunda-feira, julho 07, 2025

Sabes, leitor... | 19 | Marca de água do livro de Grégor Puppinck, 'Objeção de consciência e direitos humanos'

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Grégor Puppinck, Objeção de consciência e direitos humanos, Cascais, Princípia Editora, 2021.

Cheguei a Grégor Puppinck pela mão de Gabriele Kuby que o cita a partir de ‘Os direitos do homem desnaturado’, livro que será uma das minhas próximas leituras. ‘Desnaturado’ não tem, aqui, o sentido com que o utilizamos, coloquialmente, mas entendido como ‘desvinculado da sua natureza’, aludindo à ideia de um progressivo afastamento das leis em relação ao ‘direito natural’ e ao vínculo que as referências da natureza humana objetivamente nos apontam.

Gabriele Kuby refere-o no seu livro ‘a geração abandonada’, em que encontro uma mesma matriz que neste: são ambos livros corajosos e construídos com enorme coerência e lógica. Características que escasseiam, nestes tempos propensos a discursos de ‘enguia’, ambíguos e sem argumentação sólida e coerentemente sustentada. Não é assim nestes dois livros.

Com efeito, Grégor Puppinck, jurista e diretor do European Center fo Law and Justice (ECLJ), mostra-se um jurista corajoso, na senda do que vem sendo a sua atitude perante o rumo que o direito vem tomando, pela mão de legisladores que parecem ir fazendo declinar a sua função de manter a lei sob a tensão da busca do bem, deixando-o, antes, sucumbir à pressão de um individualismo que vai tornando a sociedade um espaço de convivência de mónadas. (Esta frase é minha, mas penso retratar, fielmente, a ideia de Puppinck).

Para isso vem alertando este eminente doutor em Direito, cujo reconhecimento tem superado fronteiras, sendo solicitado o seu contributo para a redação de pareceres a pedido de Estados ou organizações internacionais. A título de exemplo, recordo que este é o autor de parte da resolução assumida pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre a ‘Salvaguarda dos direitos humanos em relação com a religião e as convicções, e proteção das comunidades religiosas da violência’, aprovada em 24 de abril de 2013 (tal é referido na nota 111 da página 66). Aliás, em nota publicada no ECLJ [https://eclj.org/writers/gregor-puppinck], é recordado que, ‘em 2016, foi nomeado membro do Painel de Peritos sobre Liberdade de Religião ou Crença da OSCE/ODIHR, cuja função é dar suporte aos Estados participantes da OSCE na implementação de seus compromissos sobre o direito à liberdade de religião ou crença’, e que recebeu diversos prémios, merecendo destaque o prémio ‘Humanisme Chrétien’, em 2016, pelo livro "A família, os direitos do Homem e a vida eterna’, também publicado na Princípia Editora, e o prémio ‘Anton Neuwirth’, em 2014, prémio que homenageia um destacado médico eslovaco (que viveu entre 1921 e 2004), que se insurgiu contra o totalitarismo comunista, tendo estado envolvido na célebre ‘revolução de veludo’ que conduziu à democracia a ‘Checoslováquia’ que veio a dividir-se em dois Estados: República Checa e Eslováquia.

São públicas e reconhecidas as suas intervenções, nos mais diversos areópagos, alertando para os riscos, para a coesão social, do progressivo relativismo que vai entranhando as legislações nacionais, a pretexto de reivindicações que, sob a capa da liberdade de pensamento, de consciência e de religião, expressam, afinal, conveniências pessoais. Mas há genuínas reivindicações de objeção de consciência e de liberdade de pensamento e religião.

É por esses e pela exigência de clarificar os conceitos que se torna incontornável a leitura destas páginas que, sucintamente, apresentaremos, de seguida.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

A impressão que logo nos é deixada pela leitura das primeiras páginas do livro aqui em análise é a de que a questão é um verdadeiro nó górdio, nas sociedades contemporâneas. Dois grupos opostos tenderão a simplificar o assunto, arrumando-o, por um lado, sob a capa de que a lei positiva tudo determina (logo, ficando reduzido de sentido falar de objeção de consciência), ao mesmo tempo que os seus opositores radicais afirmarão que sempre e em qualquer circunstância, o sujeito individual deverá ver protegidos os seus interesses e opiniões.

É porque as tendências estão a ser ‘sugadas’ por estes dois remoinhos que a leitura deste livro se afigura como um quase ‘dever de consciência’.

Grégor Puppinck revela-nos, neste seu Objeção de consciência e direitos humanos, um pensamento muito bem articulado, claro, fino e profusamente ilustrado com casos e referências que fazem deste livro um ‘lugar’ a revisitar, vezes sem conta. Muitas são as citações de decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, da Comissão Europeias dos Direitos Humanos (extinta em 1999), do Comité Europeu dos Direitos Sociais e de outras jurisdições.

Perante as diversas decisões descritas, Puppinck evidencia uma tripla preocupação: a rigorosa precisão dos conceitos (como jurista de elevado quilate, define, com clareza, os diversos conceitos em jogo, com erudição que não é, contudo, resultante de intenção de evidenciar atitude de academismo hermético, mas reveladora de uma preocupação em efetivamente clarificar o assunto em análise, antecipando questões e buscando respostas que o leitor sente emergirem em profundo respeito para consigo, como se o autor estivesse em diálogo vivo com a sua leitura), a busca da coesão interna do discurso, denunciando, quando considera necessário, incoerências nas próprias decisões internacionais e, por fim, um registo proléptico, antecipador das consequências das opções tomadas pelas instâncias internacionais nas suas decisões.

À luz deste último vetor que acabamos de enunciar, registe-se que se constata uma crítica omnipresente, neste livro, à tendência relativista, subjetivista de influência liberalizante, seguida na argumentação adotada por muita da jurisprudência internacional. Com efeito, Puppinck, à medida que vai desenvolvendo o seu pensamento, deixa transparecer que a jurisprudência internacional foi deixando cair para segundo plano uma fundamentação assente no reconhecimento de um bem objetivo, que o sujeito valora e reconhece, respeitando a sua anterioridade (do bem objetivo em relação ao próprio sujeito), tendendo a fundamentar as suas decisões no dever de garantir a convivialidade e o pluralismo, favorecendo um progressivo relativismo que comporta o risco de incorrer na arbitrariedade.

É a esta luz que, à medida que progride na sua análise, Puppinck vai evidenciando os riscos de se ir optando por uma fundamentação que se desloca do âmbito da objetividade dos bens em proteção para a subjectivização dos fundamentos, levando-o a defender que ‘a transformação cultural ocorrida na sociedade ocidental alterou o fundamento da liberdade de consciência e de religião, fazendo emergir um novo fundamento (coletivo) que tende a substituir o fundamento (pessoal) da dignidade; trata-se do ideal de sociedade democrática, pluralista e liberal. Contudo, uma vez que a conceção que cada pessoa tem da sociedade orienta a sua atitude em relação à objeção de consciência, a fonte do direito à liberdade de religião e de consciência, que é absoluta quando se fundamenta na dignidade humana, torna-se relativa e contingente quando decorre do ideal de sociedade democrática, porque este ideal não assenta numa ontologia, mas na vontade de coexistência, que é essencialmente prática.’ (p. 134)

E adivinham-se as consequências: ‘o que esta reflexão pretende, ao colocar-se entre o positivismo e o subjetivismo, é procurar a objetividade da justiça, um esforço que poderá parecer inglório numa sociedade que renunciou, pelo menos parcialmente, à convicção pública de que existe um bem objetivo; mas recusar-se a fazê-lo seria renunciar à racionalidade da justiça e resignar-se à sua arbitrariedade.’ (p. 12)

A leitura desta obra, fácil e contagiante (li-a, entre os dias 15 e 18 de abril de 2025), lança reptos e interpela o leitor. A objeção de consciência deve ser interpretada, não como um ‘favor’ que nos faz o Estado, mas, quando exercida em resposta a um dever de consciência (pelo que se impõe distingui-la da ideia de conveniência pessoal) por significativa mole de cidadãos, como um sinal de que a legitimação coletiva possa estar a incidir sobre objetos que, na sua natureza, não devam ser reconhecidos como bens em si, mas, provavelmente, como ‘males tolerados’ que deveriam ser repensados.

Em tempos em que os desejos tendem a ser identificados com direitos, mas em que, por influência de sinal contrário, os tiques totalitários também se fazem sentir, uma leitura como a desta obra ajudará a precisar os atos merecedores de objeção e o alcance de proteger esse direito fundamental a não ser impedido de seguir a sua consciência, seja positivamente (permitindo realizar [ou não] os atos que, em consciência, se sente deve fazer), seja negativamente (não sendo obrigado a realizar o que, em consciência, se reconhece como mal).

Mas, caro leitor, siga a sua consciência e aja em coerência: até no que concerne à possibilidade de não ler este livro… Ao fazê-lo, já estará a justificar a legitimidade de ele ter sido escrito.

Na mesma página que o autor (citações)

‘«Se a consciência tem direitos é porque pressupõe deveres. Nos nossos dias, porém, no espírito da maioria das pessoas, os direitos e a liberdade de consciência só servem para dispensar a consciência.»’

John Henry Newman, ‘Carta ao duque de Norfolk» (Citação em epígrafe), p. 9

‘O direito à objeção de consciência apresenta-se como um monstro jurídico cada vez mais reivindicado, em consequência do crescente pluralismo da sociedade e da desconexão entre a lei e a moral. Testemunha da amplitude do fenómeno, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é regularmente interpelado por casos de pessoas que, em nome da sua consciência, se recusam a cumprir o serviço militar, a jurar sobre a Bíblia, a celebrar uniões entre pessoas do mesmo sexo, a autorizar a caça nas suas terras, a colaborar com a prática de abortos, a vacinar os filhos ou ainda a permitir que os filhos frequentem aulas de disciplinas obrigatórias como Ética, Religião e Educação Sexual; foram ainda apresentados ao seu pretório casos que dizem respeito a recusa de transfusões de sangue, de pagamento de impostos, de assistência a atividades religiosas e ainda de acatar a proibição do uso de vestes e símbolos religiosos.’ (pp. 11-12)

‘Impõe-se, pois um esclarecimento da noção de objeção de consciência, que não visa alargar o seu domínio de aplicação ao ponto de a tornar indefensável, mas pelo contrário, defini-la melhor a fim de poder ser garantida numa dimensão justa.’ (p. 12)

‘O que esta reflexão pretende, ao colocar-se entre o positivismo e o subjetivismo, é procurar a objetividade da justiça, um esforço que poderá parecer inglório numa sociedade que renunciou, pelo menos parcialmente, à convicção pública de que existe um bem objetivo; mas recusar-se a fazê-lo seria renunciar à racionalidade da justiça e resignar-se à sua arbitrariedade.’ (p. 12)

‘Depois de clarificar alguns conceitos relativos à noção de objeção de consciência – nomeadamente, os conceitos de consciência, convicções, objeção, e foro interno e externo -, este estudo identifica casos de objeção de consciência reconhecidos pelo direito positivo, quer do ponto de vista do dever de objeção, quer do ponto de vista do direito de objeção. A partir desses casos, passa ao esclarecimento das distinções que permitem caraterizar vários tipos de objeções, bem como identificar critérios de avaliação do respeito que cada um deles merece. Finalmente, com base nestes critérios, o estudo aponta os direitos e as obrigações do Estado face aos diferentes tipos de objeções.’ (p. 13)

‘A consciência não é o conjunto das convicções pessoais de um indivíduo, mas a origem prática delas, ou seja, a fonte da qual provêm. A consciência tem uma função psicológica e moral muito específica: emitir, por meio da razão, juízos acerca da moralidade de situações concretas; tem por isso a faculdade de julgar as normas sociais e religiosas.’ (pp. 15-16)

‘Para São Tomás de Aquino, a consciência moral é «uma aplicação da ciência ao ato», isto é, um ato realizado com ciência, cum scientia. Já Immanuel Kant chama-lhe «a expressão da razão prática», ou seja, o meio pelo qual cada pessoa exerce a sua razão nas situações concretas, práticas, com vista ao bem. É possível distinguir, ainda, a posse do sentido moral, que é designada por «consciência habitual», da sua utilização em cada circunstância particular, que é designada por «consciência atual».’ (p. 17)

‘Estes princípios fundamentais da moral – fazer o bem e evitar o mal – estão presentes em todas as pessoas: são a consciência habitual, também chamada «sindérese». Para Cícero, estes princípios da moral, reconhecidos como universais, são uma lei inata, que não se pode perder; para Séneca, são «um espírito divino [que reside dentro de nós], que observa e rege os nossos atos, bons e maus». Por sua vez, tanto os gregos como os judeus falam do «coração» para designar a consciência como fonte da vida moral.’ (p. 17)

‘[…] cada pessoa é moralmente responsável não apenas perante a própria consciência, mas também pela própria consciência, garantindo-lhe uma formação adequada.’ (p. 19)

‘Mas o ignorante é responsável pela má formação da sua consciência.’ (nota 10, página 19)

‘A consciência moral não é, pois, um ato arbitrário, mas um ato de conhecimento do bem; não produz a obrigação moral, mas reconhece-a (com risco de erro), à luz da sindérese, à qual via buscar a sua autoridade.’ (p. 19)

‘Antes de serem vinculativas, as leis têm uma função pedagógica, que consiste em mostrar aos indivíduos o bem que deve ser procurado e em suscitar neles o desejo desse bem, ou seja, a sua adesão, a fim de que apliquem as normas sociais de forma consciente e voluntária, realizando assim o bem que têm em comum com a sociedade. Inversamente, uma norma que seja considerada, em consciência, contrária ao verdadeiro bem não pode ser desejada, mas deve ser rejeitada e não terá outra autoridade que não seja a força da vontade de quem a prescreveu; será então recebida como violência por aquele cuja consciência reconhece nela um mal. A verdadeira origem da nossa autonomia pessoal é a transcendência do bem percebido pela nossa consciência pessoal.’ (p. 21)

‘A lei retira a sua força da inteligência de quem obedece ou da vontade de quem manda? Normalmente, de ambas em simultâneo. Esta pergunta remete para a distinção clássica entre direito (jus) e lei (lex): o jus (direito) é conforme à justiça, enquanto a lex (lei) é promulgada pela autoridade para garantir a realização da justiça, mas pode afastar-se dela. Quando lei garante o direito, retira a sua força da inteligência daquele que reconhece o bem e lhe obedece; quando, porém, a lei não garante o direito, a sua força é apenas a da vontade de quem manda, e a lei torna-se uma violência para aquele cuja inteligência reconhece nela um mal.’ (nota 12, p. 21)

‘[…] Hitler queria «libertar o homem dessa aviltante quimera a que dão o nome de consciência ou moral», e um dos slogans do regime nazi afirmava que «a consciência dos alemães chama-se Adolf Hitler».’ (p. 22)

‘As convicções não são […] opiniões arbitrárias ou fantasistas, mas sim a expressão de um imperativo interior na pessoa. As prescrições da consciência são convicções sobre o que convém fazer ou deixar de fazer.’ (p. 23)

‘As convicções não são as únicas expressões da consciência; de facto, quando esta permanece na incerteza, limitando-se a opinar em favor deste ou daquele juízo que lhe parece ser provavelmente verdadeiro, tem uma opinião. A consciência pode ainda permanecer na dúvida; nesse caso, a pessoa suspende o seu juízo. Nem a opinião nem a dúvida são convicções. Finalmente, uma pessoa pode ainda não ter adquirido o uso da razão (é o caso das crianças), ou tê-lo perdido (por efeito das paixões ou de uma enfermidade), e, nesses casos, os seus juízos também não merecem ser classificados como convicções.’ (p. 24)

‘[…] o foro interno releva do ser da pessoa e o foro externo do seu agir’. (p. 26)

‘A objeção

«Perante uma pessoa que nos incita a [fazer] aquilo que a nossa inteligência ajuíza ser mau, a nossa consciência ergue-se, em nome da própria verdade do bem, que é o fundamento da obrigação moral», e prescreve-nos que não realizemos esse ato. A consciência individual opõe-se ao cumprimento de uma ordem que a pessoa ajuíza ser má, interpondo-se entre essa ordem e o seu cumprimento; a consciência objeta, colocando-se diante da ordem para servir como obstáculo à sua realização.’ (p. 27)

‘Para compreender a objeção de consciência, é preciso compreender claramente a diferença fundamental entre, por um lado, ser impedido de agir segundo a própria consciência e, por outro, ser forçado a agir contra a própria consciência. Esta diferença – que é muito simples – está relacionada com outra, que é fundamental, e que separa o facto de um sujeito realizar positivamente um ato que a sua consciência lhe prescreve do facto de um sujeito se abster de realizar um ato que a sua consciência lhe proscreve.’ (p. 28)

‘[…] a consciência só é objeto de direitos porque impõe deveres à pessoa. Este duplo aspeto aparece com grande nitidez no regime da objeção de consciência, objeção esta que deve ser apreendida como um dever, antes mesmo de ser eventualmente reconhecida como um «direito».’ (p. 38)

‘[…] os agentes nazis em Nuremberga […] foram condenados por terem preferido acatar as ordens das autoridades públicas a obedecer àquilo que a sua própria consciência pessoal deveria ter-lhes prescrito que fizessem.’ (p. 41)

‘Assim, antes de ser, eventualmente, um direito, a objeção de consciência é essencialmente um dever moral e jurídico, que impõe a uma pessoa ou a um grupo de pessoas a obrigação de se recusarem a executar uma ordem injusta. Contudo, a par do dever de objeção, foi progressivamente reconhecido um direito à objeção de consciência, a fim de que os objetores pudessem seguir as prescrições da respetiva consciência sem perder a vida, a liberdade ou o trabalho.’ (p. 42)

‘Uma objeção de consciência poder ser reconhecida pelo legislador ou o juiz tendo em consideração o seu objeto ou a convicção do sujeito; ou seja, pode ser classificada como objetiva ou como subjetiva.’ (p. 46)

‘É interessante notar que, de acordo com a abordagem liberal, o reconhecimento do direito à objeção de consciência nos ordenamentos nacionais não resulta de uma superior consideração pela consciência, como instrumento capaz de reconhecer o que é bom e justo – pois isso implicaria pôr em causa a ordem que é alvo da objeção -, mas da renúncia à ideia de que a consciência humana seja capaz de se pronunciar sobre a integralidade do bem. Dito de outro modo, a objeção liberal e subjetiva é uma consequência do relativismo.’ (p. 48)

‘[…] num aparente paradoxo, quando a promoção do direito à objeção de consciência se funda numa conceção subjetiva da consciência, está a participar de uma desvalorização da apreciação social da consciência pessoa; a situação inverte-se quando estamos a falar do reconhecimento da objeção objetiva e do dever de objeção, que não têm como fundamento último o respeito pela consciência, mas o bem percecionado pela consciência. Significa isto que uma pessoa que reclame o benefício da objeção de consciência deve usar de prudência quando decide colocar-se num ou noutro terreno.’ (p. 48)

‘[…] o legislador [em França] dotou a despenalização o aborto, ocorrida em 1975, de uma cláusula segundo a qual «nenhum médico é obrigado a praticar uma interrupção voluntária da gravidez»; e que afirma, na segunda alínea, que «nenhuma parteira, enfermeiro ou enfermeira, auxiliar médico ou outro é obrigado a participar numa interrupção da gravidez». À época, Simone Veil, a promotora da lei, afirmava: «É evidente que nenhum médico ou auxiliar médico será jamais obrigado a participar». Esta cláusula de consciência adquiriu posteriormente valor constitucional em França.’ (p. 61)

‘Com base na própria filosofia do conceito de objeção de consciência e na jurisprudência do TEDH, propomo-nos distinguir diversas situações, consoante:

- a recusa em agir seja apresentada por uma pessoas razoável;

- a objeção tenha origem em simples conveniências pessoais ou num imperativo de consciência;

- a objeção de consciência obedeça a imperativos de natureza moral ou religiosa;

- a proximidade entre o ato ao qual se objeta e o conteúdo da convicção.’ (p. 86)

‘Note-se que a tarefa de julgar se uma objeção é verdadeiramente justa e moral se torna muito problemática numa sociedade que, em nome do relativismo e do subjetivismo, renunciou, pelo menos em parte, à convicção de que existe um bem objetivo; contudo, a recusa em fazer este esforço equivaleria a renunciar à racionalidade da justiça e a resignar-se à arbitrariedade.’ (p. 104)

‘No que diz respeito ao aborto e à eutanásia, é relativamente fácil demonstrar a inexistência de um verdadeiro direito fundamental, porque uma pessoa não pode abortar ou praticar a eutanásia livremente, isto é, cm a mesma liberdade com que pode exprimir as suas opiniões ou andar de um lado para o outro. A existência do feto opõe-se a isso. A resolução adotar em França pelos membros do Parlamento no 40.º aniversário da Lei Veil é, aliás, reveladora: embora apresente o aborto como um direito universal no primeiro artigo, recomenda a sua prevenção no segundo artigo; ora, se o aborto fosse efetivamente um direito fundamental, seria absurdo e injusto tentar evitar que fosse praticado. É precisamente porque é tolerada como um mal menor que esta prática deve ser alvo de uma política eficaz de prevenção.’ (p. 117)

‘[…] de acordo com a abordagem à liberdade de consciência fundada na dignidade humana, o direito ao respeito por esta liberdade não é concedido pelo Estado, mas apenas enquadrado por ele, já que o mesmo direito tem origem fora da vida social, é um direito que cada pessoa possui por natureza.’ (p. 125)

‘A transformação cultural ocorrida na sociedade ocidental alterou o fundamento da liberdade de consciência e de religião, fazendo emergir um novo fundamento (coletivo) que tende a substituir o fundamento (pessoal) da dignidade; trata-se do ideal de sociedade democrática, pluralista e liberal. Contudo, uma vez que a conceção que cada pessoa tem da sociedade orienta a sua atitude em relação à objeção de consciência, a fonte do direito à liberdade de religião e de consciência, que é absoluta quando se fundamenta na dignidade humana, torna-se relativa e contingente quando decorre do ideal de sociedade democrática, porque este ideal não assenta numa ontologia, mas na vontade de coexistência, que é essencialmente prática.’ (p. 126)

‘Convém […] ter presente que a objeção de consciência não é apenas uma modalidade do exercício da liberdade de consciência – é, também, e antes de mais, um testemunho pessoal e um sinal de alerta para o conjunto da sociedade. Quando muitas pessoas se recusam a praticar determinado ato, as autoridades públicas não devem procurar coagi-las, mas interrogar-se sobre as causas dessa recusa, porque último juiz e testemunha da justiça não é a lei positiva, mas a consciência pessoal.’ (p. 134)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'


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