Foi notícia e conteúdo de discussão dos últimos dias a proposta do Ministério da Saúde que defende que o Código Deontológico dos Médicos deverá ser modificado, para se adequar à legislação respeitante ao abortamento voluntário. O argumento que suportava tal proposta era o de que não teria cabimento que o conjunto de normas que regem a profissão médica não espelhasse as leis do Estado.
As reacções não se fizeram esperar, de ambos os quadrantes, favoráveis e desfavoráveis à intenção ministerial.
Pois bem, não nos interessará, neste momento, a discussão política que se vislumbra, de imediato, em tal orientação, mas sim perceber os sintomas que este ‘quadro clínico’ permite descortinar.
Numa primeira e ainda epidérmica reflexão é de notar que, muito para além dos conteúdos em discussão que iremos observar, está, à partida, aqui, em causa um problema de relação institucional que, a ser resolvido como o propõe o Ministério da Saúde, porá seriamente em causa um princípio tantas vezes mencionado mas mais vezes ainda esquecido, e que dá pelo nome de ‘subsidiariedade’. Com ele se assegura que as instâncias mais próximas dos cidadãos se organizem autonomamente, sem que as instâncias superiores devam, abusivamente, ingerir ou interferir na sua organização legitimamente autónoma. Veja-se o que seria o Estado imiscuir-se, por exemplo, nas decisões de uma família determinada ou numa instituição particular concreta ou, ainda, nas organizações religiosas, ou outras, desde que o exercício da autonomia destas não coloque em risco ou em causa as demais organizações! Pois bem, tal ingerência não poderá suceder porque assim o estabelece o princípio da subsidiariedade. O mesmo que, por exemplo, na organização União Europeia, continua a garantir a independência dos Estados, apesar da sua coligação política, económica, institucionalizada.
Ora, para além desta imediata linha de reflexão, genialmente sustentada pelo Bastonário da Ordem, e difundida através de programa de rádio transmitido em hora de ponta, importa ir mais longe e observar os conteúdos em discussão.
A sugestão (queremos acreditar que mais não é do que isso!), formulada pelo detentor da pasta da Saúde, e que passaria por retirar do código deontológico médico o parágrafo 2 do artigo 47, que afirma que «constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia», retoma uma repetida tentativa de fazer coincidir a ética com o direito, confusão que muitos querem recuperar, não em benefício do direito, mas em prejuízo da ética. Na verdade, se tal identificação poderia ser ambicionada, em nosso entender, só vemos que o pudesse ser na medida em que o direito procurasse fazer-se coincidir com a ética. Contudo, sabendo nós que, em épocas de pluralismo, tal poderia ressuscitar fantasmas adormecidos, é de toda a premência que, perante tal impossibilidade, se assegure a distinção que garante a força de ambos. Na verdade, contudo, o direito, mesmo para os que o querem entender como um mero reflexo das práticas sociais estabelecidas (uma linha de entendimento designada como ‘positivismo jurídico’, em que as leis não apontam horizontes, mas apenas regulam os comportamentos existentes), não deixa de ter no seu horizonte uma determinada ética comum. Senão, como entenderíamos que a nossa constituição da república portuguesa estabelecesse, no seu artigo 24, parágrafo 1, que «a vida humana é inviolável»? Que referendo assim o estabeleceu senão a força da moral comum que estabelece, sem que seja necessário submetê-lo a discussão democrática, que a vida de cada um merece todo o respeito?
Contudo, na maioria das vezes, o direito configura-se como a mera regulação das práticas, eximindo-se a pronunciar-se sobre o que será bem ou mal. O seu terreno é o da licitude.
Pois bem, o terreno do código deontológico médico não nos parece ser simplesmente este do lícito ou ilícito, mas sim o da ética, como aponta o seu artigo 1º: «A Deontologia Médica é o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessária adequação histórica na sua formulação, o Médico deve observar e em que se deve inspirar no exercício da sua actividade profissional.» Sendo assim, não nos parece lícito que, sem atenção à legítima autonomia das ordens profissionais (em claro desrespeito para com o princípio da subsidiariedade) e confundindo ética com direito, se venha propor ou impor que se mude o que deve ou não deve ser feito em nome do que se faz. Levando ao absurdo seria admitir que determinado comportamento é legítimo e bom porque existe. As consequências de tal perspectiva absolutizada redundariam no fim de qualquer garantia de convivência social.
Em última instância, a proposta que estamos a analisar é a ponta de um iceberg profundo que procura silenciar todo e qualquer horizonte mais amplo do que a efemeridade de cada momento e circunstância. Dito de um modo mais simples: tal sugestão reflecte a tentativa de fazer falir qualquer noção de bem, de verdade, ou mesmo de belo, que possam servir de critério de discernimento. Tudo se reduz ao hoje, ao já, ao agora, à opinião, às maiorias emocionadas e afectivamente conduzidas. Como muitos descrevem, estes são os traços definidores de uma sociedade pós-moderna, órfã da verdade, porque adoptada pela mera opinião, bastarda da beleza porque rendida à fugacidade da mera procura de novas modas, mesmo que horrendas, vazia de sentido de bem porque anestesiada pelo útil.
Se tal proposta vingar, não será apenas a profissão médica que sairá perdedora. Os próprios supostos vencedores desta batalha perderão na guerra da vida, pois também alguém, um dia, poderá considerá-los já não merecedores da inviolabilidade que só a ética pode assegurar.
Luís Silva
As reacções não se fizeram esperar, de ambos os quadrantes, favoráveis e desfavoráveis à intenção ministerial.
Pois bem, não nos interessará, neste momento, a discussão política que se vislumbra, de imediato, em tal orientação, mas sim perceber os sintomas que este ‘quadro clínico’ permite descortinar.
Numa primeira e ainda epidérmica reflexão é de notar que, muito para além dos conteúdos em discussão que iremos observar, está, à partida, aqui, em causa um problema de relação institucional que, a ser resolvido como o propõe o Ministério da Saúde, porá seriamente em causa um princípio tantas vezes mencionado mas mais vezes ainda esquecido, e que dá pelo nome de ‘subsidiariedade’. Com ele se assegura que as instâncias mais próximas dos cidadãos se organizem autonomamente, sem que as instâncias superiores devam, abusivamente, ingerir ou interferir na sua organização legitimamente autónoma. Veja-se o que seria o Estado imiscuir-se, por exemplo, nas decisões de uma família determinada ou numa instituição particular concreta ou, ainda, nas organizações religiosas, ou outras, desde que o exercício da autonomia destas não coloque em risco ou em causa as demais organizações! Pois bem, tal ingerência não poderá suceder porque assim o estabelece o princípio da subsidiariedade. O mesmo que, por exemplo, na organização União Europeia, continua a garantir a independência dos Estados, apesar da sua coligação política, económica, institucionalizada.
Ora, para além desta imediata linha de reflexão, genialmente sustentada pelo Bastonário da Ordem, e difundida através de programa de rádio transmitido em hora de ponta, importa ir mais longe e observar os conteúdos em discussão.
A sugestão (queremos acreditar que mais não é do que isso!), formulada pelo detentor da pasta da Saúde, e que passaria por retirar do código deontológico médico o parágrafo 2 do artigo 47, que afirma que «constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia», retoma uma repetida tentativa de fazer coincidir a ética com o direito, confusão que muitos querem recuperar, não em benefício do direito, mas em prejuízo da ética. Na verdade, se tal identificação poderia ser ambicionada, em nosso entender, só vemos que o pudesse ser na medida em que o direito procurasse fazer-se coincidir com a ética. Contudo, sabendo nós que, em épocas de pluralismo, tal poderia ressuscitar fantasmas adormecidos, é de toda a premência que, perante tal impossibilidade, se assegure a distinção que garante a força de ambos. Na verdade, contudo, o direito, mesmo para os que o querem entender como um mero reflexo das práticas sociais estabelecidas (uma linha de entendimento designada como ‘positivismo jurídico’, em que as leis não apontam horizontes, mas apenas regulam os comportamentos existentes), não deixa de ter no seu horizonte uma determinada ética comum. Senão, como entenderíamos que a nossa constituição da república portuguesa estabelecesse, no seu artigo 24, parágrafo 1, que «a vida humana é inviolável»? Que referendo assim o estabeleceu senão a força da moral comum que estabelece, sem que seja necessário submetê-lo a discussão democrática, que a vida de cada um merece todo o respeito?
Contudo, na maioria das vezes, o direito configura-se como a mera regulação das práticas, eximindo-se a pronunciar-se sobre o que será bem ou mal. O seu terreno é o da licitude.
Pois bem, o terreno do código deontológico médico não nos parece ser simplesmente este do lícito ou ilícito, mas sim o da ética, como aponta o seu artigo 1º: «A Deontologia Médica é o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessária adequação histórica na sua formulação, o Médico deve observar e em que se deve inspirar no exercício da sua actividade profissional.» Sendo assim, não nos parece lícito que, sem atenção à legítima autonomia das ordens profissionais (em claro desrespeito para com o princípio da subsidiariedade) e confundindo ética com direito, se venha propor ou impor que se mude o que deve ou não deve ser feito em nome do que se faz. Levando ao absurdo seria admitir que determinado comportamento é legítimo e bom porque existe. As consequências de tal perspectiva absolutizada redundariam no fim de qualquer garantia de convivência social.
Em última instância, a proposta que estamos a analisar é a ponta de um iceberg profundo que procura silenciar todo e qualquer horizonte mais amplo do que a efemeridade de cada momento e circunstância. Dito de um modo mais simples: tal sugestão reflecte a tentativa de fazer falir qualquer noção de bem, de verdade, ou mesmo de belo, que possam servir de critério de discernimento. Tudo se reduz ao hoje, ao já, ao agora, à opinião, às maiorias emocionadas e afectivamente conduzidas. Como muitos descrevem, estes são os traços definidores de uma sociedade pós-moderna, órfã da verdade, porque adoptada pela mera opinião, bastarda da beleza porque rendida à fugacidade da mera procura de novas modas, mesmo que horrendas, vazia de sentido de bem porque anestesiada pelo útil.
Se tal proposta vingar, não será apenas a profissão médica que sairá perdedora. Os próprios supostos vencedores desta batalha perderão na guerra da vida, pois também alguém, um dia, poderá considerá-los já não merecedores da inviolabilidade que só a ética pode assegurar.
Luís Silva