sábado, maio 24, 2008

A emergência da ética face aos desafios do pluralismo e do relativismo

(Conferência proferida no Hotel Imperial, Aveiro, a pedido da Associação de Médicos Católicos – Aveiro)

Os motivos do título

Perante o título que, propositadamente, nos é proposto sem qualquer pontuação, vislumbro, num relance imediato, três entoações que nos farão divergir quanto à linha de pensamento a prosseguir:
1. - Uma que o lerá com ironia – A emergência da ética face aos desafios do pluralismo e do relativismo?! Coisa de tempos idos!
Neste sentido se situam afirmações recentes de um dos membros do governo do nosso Estado que sustentava que ‘um país como Portugal poderia prescindir do seu Conselho Nacional de Ética, considerando que seria suficiente, para cada problema, apresentar soluções contraditórias entre as quais se poderia escolher’ [Segundo Michel RENAUD, Brotéria (Janeiro 2008)]. Afirmações que, no meu entendimento, denunciam a presença cada vez mais difundida de um paradigma pragmatista e utilitarista, sobre o qual poderemos, em momento posterior de discussão, reflectir.
2. - Uma outra que o lerá em tom catastrofista – A emergência da ética face aos desafios do pluralismo e do relativismo? Uma urgência ainda que uma causa perdida.
É aquela que tem imperado entre, por exemplo, aqueles que, pertencendo a uma matriz que fora dominante, se sentem como que submersos numa onda sufocante que cilindra as suas mais basilares convicções. Uma tentação que poderá tomar conta de nós, católicos, na medida em que sentimos desaparecer do horizonte colectivo aqueles traços que, implícitos na denúncia da sua proveniência, explicitavam as convicções com que nós próprios nos identificamos. Tal postura, porque suportada numa atitude defensiva, é caldo para a emergência de uma conduta fundamentalista, integrista, incapaz do diálogo e do encontro construtivo com o outro.
3. - Finalmente, a terceira forma de leitura: A emergência da ética face aos desafios do pluralismo e do relativismo? O resultado de uma oportunidade única.
Esta será a nossa postura e aquela que, no nosso entendimento, mais capaz será de promover o desenvolvimento efectivo da reflexão.
Para que tal postura possa ser adoptada, importa, no entanto, começar por defender que em cada era da história, coexistem diversos paradigmas lógicos que estruturam toda a cultura epocal, sendo, no entanto, certo que haverá traços que permitirão caracterizar um determinado paradigma como sendo prevalecente e específico dessa mesma época. Só na medida em que fizermos este exercício e soubermos descortinar as suas raízes profundas poderemos contribuir para a superação dos seus limites, tarefa que penso constituir para todos os que estamos aqui um desiderato comum.

Os traços característicos de uma era a que muitos atribuem a designação de pós-moderna

Considero, como tese que submeto à vossa consideração, que a crise de valores (que melhor seria considerar ‘crise de hierarquia de valores’, pois julgo ser entre nós aceite que não existem comportamentos e atitudes que não visem valores. O que estará em causa é a ordem de prioridade e de valorização que é conferida aos fins. Na hierarquia de valores está, de facto, a questão da crise ética contemporânea, para a qual contribuirá a conjuntura que passo a enunciar) tão frequentemente denunciada (a própria SEDES, recentemente, se refere a ela) nasce de uma sociologização da cultura e da verdade, uma pretensão que tem a sua origem mais distante no próprio pensamento positivista de Augusto Comte, que prognosticava que, no terceiro estádio do pensamento (Os anteriores eram o teológico e o metafísico), se implantaria um modelo em que a objectividade científica se imporia e, como marca definidora de tal objectividade, a capacidade de interpretar e prever os comportamentos sociais. A ciência por excelência seria a sociologia, que, para vingar nessa condição estatutária, deveria encontrar métodos capazes de objectivar a sua leitura do social. Entre nós, mais de dois séculos volvidos sobre esta pretensão, esta posição foi sendo secundada por autores que marcam a cultura portuguesa actual, redundando uma tal leitura numa equiparação da verdade à opinião e da ciência ao senso comum. Como defende Boaventura de Sousa Santos, se a modernidade provocou uma ruptura epistemológica – reservando a poucos o acesso à verdade que a ela só podiam aceder por métodos muito exigentes, a pós-modernidade rompeu com essa ruptura (fez a ruptura da ruptura epistemológica) e devolveu ao senso comum a verdade de que fôra privado.
Esta sociologização da verdade científica alargou-se à epistemologia, arvorando a sociologia em modelo de toda a ciência. Uma tal defesa, que ganhou direitos de cidadania na própria organização de muitas da faculdades de universidades portuguesas, foi assumindo lugares de privilégio entre a sociedade, por via do recurso permanente à técnica/metodologia que é apanágio daquela ciência – a estatística.
Pelas estatísticas vendem-se produtos, nichos de mercado, correntes artísticas, políticos e, mesmo, valores ético-morais.
Aqui reside, em meu entender, o grande busílis da discussão ética, hoje, e que, mais do que uma postura defensiva, obriga a uma atitude de leitura crítica bem estruturada, que deverá começar por denunciar que uma tal opção metodológica terá resultados que, antes de serem éticos, são mesmo lógico-antropológicos.
Explico-me.
Não sou o primeiro a considerar que a crise notada nas sociedades pluralistas é, antes de ética, crise de pensamento. Isto é, o que está ausente dos discursos é a sua coerência, a organização lógica que fôra marca distintiva da modernidade e de todas as épocas precedentes a esta que designamos como pós-moderna. É, aliás, esta uma das distinções da pós-modernidade: colocar em crise o pensamento, rendendo-se à emotividade. Se a modernidade vivera na procura da iluminação racional, a pós-modernidade afunda-se no usufruto, na fruição. Sem dúvida, um tal resultado é uma fortíssima crítica a um modelo de humano que a modernidade construíra isento de sentimento e de compaixão. A modernidade construíra um homem puramente racional, que construía na sua mente um mundo que devia caber nas categorias por si estruturadas. Ora, a pós-modernidade reage a isto e, face a tal edifício lógico, hermético, blindado, estilhaça a Razão com a invocação da emoção.
Perante estas notas, a verdadeira tarefa que nos caberá será a de garantir que um tal resultado do efeito pendular da história não redunde na crise definitiva do ser humano, do homo sapiens, aquele que se define por se colocar frente ao mundo que sempre ele soube interpretar, ler para saber gerir e utilizar. Um mundo que nunca foi para si mera sucessão de imagens face às quais se rendeu. O homem sempre se definiu por procurar interpretar mais e melhor a verdade do mundo. Quando o homem não procurou a verdade do mundo e deixou de distinguir o bem do mal, a fera da presa, o veneno do antídoto, sucumbiu à sua própria ignorância.
Pois bem, desta postura ilógica, que, a permanecer, resultará no próprio fim do ser humano, redundará, como epifenómeno, a derrota de todas as expressões humanas que necessitam do horizonte da verdade, como salvaguarda de vigor interno.
Entre estas expressões, a ética será, seguramente, uma das suas primeiras vítimas.
Em suma, o quadro traçado não visa causar sensação de derrota antecipada dos que defendem a importância da ética (como se esta valesse como mero fim em si mesma, uma vez que me parece ter ficado evidente que a derrota da ética é a própria derrota do homo sapiens) mas sim desafiar a que se evidenciem tais elos, como forma de combater a raiz da dissolução de uma hierarquia de valores que coloca na base a busca do bem como expressão da verdade do humano. O primeiro combate não é, assim, exclusivamente o da defesa de determinados valores ético-morais, mas sim o da sustentação de que a verdade deve continuar a ser um horizonte necessário. E saiba-se que esta é uma batalha que já começou a travar-se nos meandros da epistemologia. Em surdina, verifica-se uma retoma da afirmação de que a verdade deverá ser procurada nas ditas ciências duras, em detrimento da já referida sociologização da ciência. Recordo, a título de exemplo, uma disputa entre BSS e AMB, que, mais do que importar por prenunciar eventual vitória ou derrota de uma das partes, vale por permitir constatar a não inelutabilidade perante um eventual determinismo histórico a que estariam condenadas as éticas assentes na invocação de valores absolutos.
Vem-me à memória, neste contexto, uma obra, transposta para o cinema, e que nos permitirá perceber a profundidade do que aqui defendemos. Trata-se de ‘O senhor das moscas’, uma história um pouco violenta mas que nos retrata que, quando a esperança falece, as relações interpessoais se degradam progressivamente, o respeito para com o outro vai-se debilitando, ao ponto de se concluir que os que ainda invocam os motivos para se continuar a esperar a libertação devem ser perseguidos. A ironia, nesta história, é que os miúdos são salvos da ilha pelos mesmos motivos pelos quais tinham iniciado a perseguição: o fogo, que era o sinal da esperança mas que, a partir de certa altura, fôra utilizado para perseguir os que ainda diziam que valia a pena. No momento em que tudo parecia desabar e que a ausência da verdade e da ética pareciam vencer, os miúdos são socorridos por elementos da força aérea que fecham o filme com uma interrogação: o que fizestes?

Todo este excurso deverá lançar-nos alguns reptos que julgo deverem ser tidos em conta e que poderão servir de mote à nossa discussão:
- a atitude correcta numa sociedade plural não deverá ser, nunca, a de uma defesa isolada, privatizada. Tal postura redundará num reconhecimento de que a nossa proposta não merecerá ser formulada no espaço público, denunciando que os primeiros a não depositar nela confiança são os próprios proponentes. Mais ainda, tal atitude faz supor que se considera que pluralismo é sinónimo de sincretismo, mistura indiferenciada, um erro que conduz ao relativismo que trouxemos para título sem que, no entanto, em nosso entender, deva ser abordado do mesmo modo que o pluralismo. Este faz supor a coexistência construtiva de diversidades que dialogam. Aquele funde e anula as diversidades conduzindo a um estéril monólogo ou extinguindo, mesmo, qualquer encontro. Evoco para aqui o pensamento de Hans Küng que, situando-se no âmbito do diálogo inter-religioso, adopta um modelo a que ele chama de modelo do «abraço». Num abraço, as identidades permanecem, crentes no valor do que são, mas sem se negarem nem anularem o outro.
Em meu entender, esta é a postura digna de ser adoptada por nós, que nos identificamos com uma estruturação axiológica fundamentada e que encontra múltiplos interlocutores. Para com eles, não deverá nem anular-se nem impor-se como única, mas disposta ao encontro, rumo à verdade que deverá sempre ter-se presente, no horizonte comum a todos.
Mais ainda, tal postura só será, enfim, possível, se estiver em atitude de descoberta do que é essencial, demarcando-o do que é acessório. Recordemos que esta é mesmo a proposta feita pelo Vaticano II para se referir às condições do diálogo inter-religioso, âmbito de grande fecundidade para a nossa discussão. Ali, em concreto no documento Unitatis Redintegratio, considera-se que este diálogo, este encontro, este ‘abraço’, só é possível se for adequadamente feita uma hierarquia das verdades que centraliza no essencial e periferize (Secundarize) o que não é tão fundamental. Uma postura crucial em tempos de pluralismo.

Termino com uma nota.
A sociologização da verdade, a que me referi, anteriormente, ganha rosto de positivismo jurídico, nos tempos mais recentes. O que é isto? Nada mais do que o desdobramento do que eu dissera mais acima: como não existe nem se visa a busca da verdade, tudo se reduz às práticas sociais. Assim também no âmbito da lei, que deixa de ser pedagógica e condutora dos comportamentos, rumo a um horizonte desejado e esperado, para se bastar em regular os comportamentos verificados na ordem social estabelecida. Pois bem, tal prática encaminha a ética para a condição de um mero discurso formal sem conteúdo acerca das possibilidades do agir, sem, no entanto, se interrogar sobre que bem deverá visar esse mesmo agir. Pois bem, isto é extremamente desafiante para organizações como esta, que deverão continuar a interrogar sobre o conteúdo explícito da ética, que deverá continuar a procurar o cuidado para com o mais frágil, o mais débil, enquanto eles são expressão da nossa comum condição de humanos finitos e limitados. É que, com efeito, a sociologização da verdade nasce da convicção última de que não se deverá buscar a verdade fora e para além do que o homem conquista porque ele, de algum modo, é a medida de todas as coisas, perspectiva que acaba por negar a finitude do humano. Fácil é ver que as éticas que ainda apelam para a atenção ao frágil (em particular as que se fundamentam numa visão religiosa da existência que sabe que o homem é caduco, finito, relativo perante o absoluto) têm, neste terreno, um papel insubstituível, enquanto impedem a alienação do homem numa visão de si errónea, excêntrica e com consequências à vista de todos.

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