A razão que se oculta nas razões
Vou propor uma reflexão que tem o seu quê de heterodoxa. Pretendo conduzir à discussão sobre o que está em causa quando discutimos a eutanásia, sem quase falar nela.
E começo por fazer uma constatação que nos abre a porta para a resposta que quero encontrar: por que se reúnem, no mesmo grupo, liberais e as esquerdas mais radicais, quando discutimos a despenalização do aborto ou o eugenismo ou a eutanásia? É que assim acontece, de facto. E bastará a resposta de que os extremos se tocam? Admitindo a verdade do aforismo, o que significaria isso?
É que, com efeito, tem sido assim sempre que estes assuntos, ditos ‘fracturantes’, aparecem.
Afinal, o que está, de facto, em causa?
Simplesmente o desejo de combater a ordem estabelecida? O desejo de afirmar a liberdade individual? Parece-me insuficiente essa resposta simples, pois nenhuma esquerda que se preze propõe, por exemplo, a título do direito ao exercício da liberdade, o fim dos impostos ou a liberdade de escolha nesta matéria. Então, porquê essa posição comum em matérias relacionadas com a vida humana?
Pois bem, está, precisamente, na formulação da última pergunta a resposta. É, com efeito, perante a vida humana que estas posições tão díspares se unem.
Mas, em quê?
Na consideração de que a vida humana não se define com os limites. Esse é, de facto, o dado comum: a recusa da imperfeição, do limite, que, afinal, deveria ser considerado e aceite como dado inerente à vida humana. E vejam que é isso, realmente, o que distingue quem defende e quem é contra a legitimidade da eutanásia: a definição e a atitude perante a vida humana e o reconhecimento dos limites da intervenção sobre ela. Não é um dado marginal quanto às concepções que nos estruturam. É essencial. Dele resultam consequências mais ou menos graves conforme a coerência de quem as sustenta. Bem certo que, para não exporem facilmente o absurdo da sua posição, os defensores da eutanásia e afins blindam-se e criam auto-limites, mas que não passam de expedientes e distracções. Na realidade, a questão é que, para os que, por motivos liberais ou radicais, se situam na defesa da eutanásia, do aborto, do eugenismo, o limite, a imperfeição, não fazem parte da definição da vida humana.
Por isso, a eutanásia é a saída para um vida que se apresenta com limites, por já não se definir como vida humana. Supõem um ser humano que, na verdade, não existe e nunca existirá: um ser humano ilimitado, sem imperfeições. É o mito, feito realidade, do paraíso perdido, com o condimento de se tentar mundanizar esse paraíso. Assim, liberais e radicais unem-se por recusarem tudo o que significa limitar a vida humana sonhada, mas nunca existente, ainda que tenham a ilusão de que quando a vida não dói, não está limitada.
Assim, esta discussão deve centrar-nos no que é importante: o ser humano deve ser recuperado, voltar a descobrir-se como um ser a caminho, um ser a fazer-se, a progredir e nunca concluído nem definitivamente feito. E é isso que une aqueles que, mesmo partindo de convicções religiosas diversas, estão irmanados numa fonte semelhante: a de conceber que cada ser humano deve ser respeitado, mesmo quando extremamente frágil, mesmo quando a sua infelicidade parece pedir o fim. Perante esse sofrimento, a resposta pode ser diversa nas suas concretizações, mas semelhante no seu intuito – conduzir o homem a assumir como sua a limitação que vive e a fugir de viver sempre uma vida sem limites que não é, nem nunca foi ou será, a sua.
No último reduto, a discussão sobre estes assuntos que colocam a sociedade na tensão máxima resulta da interrogação radical sobre o que é, afinal, o Homem; se um ser sem limites ou se um fazer-se na limitação. É esse o drama da liberdade humana: não poder pensar-se senão em determinadas condições. Liberdade sem condicionamentos não é liberdade de homem. Não existe…
Artigo publicado no semanário, Correio do Vouga
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