Se nos dedicássemos a perguntar que dimensão da Jesus Cristo se sublinha, com a celebração do Natal, as vozes seriam quase unânimes em considerar que esta reforça a sua humanidade, diante dos riscos de docetismo ou de gnosticismo que sempre tentam a fantasia religiosa menos cuidadosa. Contudo, a história não parece confirmar esta leitura, como muito bem recorda o reconhecido divulgador da exegese bíblica, Ariel Alvarez Valdés, num dos seus livros dedicados aos enigmas da Bíblia.
Na verdade, é de todos sabido que a grande festa cristã é e sempre foi a Páscoa, ocupando a centralidade da liturgia, desde os primeiros tempos do cristianismo. Teremos de aguardar pelo século IV para ver fixada a festa da natividade do Senhor, na época de Papa Júlio I (que pontificou entre 337 e 352). E as circunstâncias em que tal se operou é que nos obrigam a corrigir a convicção acima denunciada. Na verdade, o pontificado de Júlio I decorre em pleno período de propagação da heresias arianas, promovidas por Ário, um Bispo do Norte de África, nascido no território da actual Líbia, em meados do século III, que defendia que Jesus Cristo não era Deus, por ser impossível a Deus gerar um filho, tendo sido apenas adoptado por Deus. Estes traços eram reforçados pelas teses adopcionistas e subordinacionistas de que Ário dependia, que afirmavam que esta quase-divindade de Jesus Cristo lhe era conferida apenas por ocasião da sua ressurreição.
Perante um tal quadro, a sabedoria da Igreja vislumbrou a necessidade de sublinhar que a unicidade de Jesus Cristo não se manifestara, apenas, após a ressurreição, mas estivera presente desde o primeiro momento.
Neste contexto, após tentativas anteriores de fixar a data do nascimento do Filho de Deus em momentos como 20 de Abril (S. Clemente de Alexandria), 6 de Janeiro (S. Epifânio) ou outros, ainda, a Igreja do tempo de Júlio I, pretendendo fazer a recepção das definições de Niceia (concílio que ocorrera em 325), tomou como data a de uma festa levada por Aureliano para Roma, no século III, dedicada ao «sol não vencido», «sol invicto», vincando, deste modo, que, desde a infância, a divindade de Jesus estava presente.
A pedagogia evidenciada pela Igreja, em todo este percurso, é particularmente actual e desafiante. Vivemos tempos de novos adopcionismos, que pretendem reduzir Jesus Cristo à dimensão de um herói, esgotando os humanos no rasteiro horizonte da cronologia, tornando vãs a fé e a esperança. Tempos que interpelam a que se fixem nas agendas comuns as datas que permitam continuar a dizer que ainda não vale tudo, porque algo maior há que buscar.
Luís Silva
(Publicado no Correio do Vouga)
Eugenismo Bioética Educação Teologia Ecumenismo Ciência e Religião Bem-nascido... Mal-nascido...
sábado, dezembro 17, 2011
domingo, novembro 27, 2011
A fé em tempos de crise
Estamos em tempo de advento. Não apenas porque a liturgia nos coloca nesse dinamismo, nos quatro domingos antes do Natal, em atitude de recordação (olhando para o passado) do tempo de espera da encarnação.
Sem ocultar esse dinamismo, falar de advento deve recordar-nos, antes, que a fé cristã nos coloca em tensão para o futuro, o que confere à nossa primeira afirmação, um novo sentido, tão urgente e relevante, nestes tempos de crise, marcados pela neblina que parece abater-se sobre a esperança. Na verdade, se nos interrogarmos, com atitude disponível para ouvir a resposta, sobre o que é a fé cristã, não poderemos, de modo algum, aceitar que ela se define, primeiramente, como crença num conjunto de verdades, mais ou menos obscuras e de difícil compreensão. A fé, a ser assim, seria algo próximo do esoterismo, incapaz de fecundar a vida, a existência humana. Não sou eu que o afirmo, simplesmente. Valerá, aliás, a pena recordar afirmações de Joseph Ratzinger (actual papa Bento XVI), em Dezembro de 1969: «o que quer dizer, à luz da Bíblia, «ter fé»? E constatamos que não significa um sistema de meias verdades, mas sim uma decisão sobre a existência – a vida vivida na perspectiva de um futuro que Deus nos concede mesmo para lá das fronteiras da morte. Esta direcção é que dá à vida o seu peso e a sua medida, as suas prioridades e, por isso mesmo, a sua liberdade. Com certeza que uma vida vivida na fé parece mais uma escalada de montanha do que um sonho à lareira, mas aquele que se empenha nessa viagem sabe e experimenta sempre mais que vale a pena viver a aventura para a qual é convidado pela fé.»
A fé é, assim, antes de mais, uma decisão pelo sentido da existência, preparando, no hoje, um futuro que se antecipou na História. Esta mesma história vem demonstrando que o apagamento desta tensão para o futuro, inerente à fé cristã, tem contribuído, de modo decisivo, para a condição angustiada das sociedades modernas, incapazes de construir um futuro feito de esperança, mas antes vazio e vão (cheio de vaidade – vanitas, em latim, de que deriva «vaidade», quer dizer «vazio, vão»). É o mesmo Ratzinger que o confirma: «O fenómeno curioso do nosso tempo é que, no preciso momento em que se consuma o sistema do pensamento moderno, nesse mesmo momento tornar-se-á patente a sua insuficiência por incorrer necessariamente no relativismo.»
Estou certo de que a História fará justiça a Bento XVI por ter escolhido o combate contra o relativismo como o maior desafio do seu pontificado. Confirmam esta preocupação a encíclica «caritas in veritate», que inverte o adágio Paulino «a verdade na caridade», sublinhando, assim, a importância da verdade, contra os sentimentalismos efémeros e que nivelam a verdade e a opinião, com os resultados que a crise actual permite verificar, assim como os pedidos repetidos de correspondência à verdade, junto dos grandes líderes mundiais, sejam políticos, económicos, religiosos, ou outros.
É que Bento XVI sabe, e tem-no repetido, que é a busca da verdade que abre o homem ao amanhã. Sem essa busca, que abre ao futuro, o homem basta-se com o que já é e conquistou, acomodando-se. É a tensão pela descoberta da verdade que o envia para além de si, que o faz transcender-se.
«Houve seres humanos que tiraram a vida a si próprios para não terem de morrer, como bem formula Emmanuel Mounier. Esta é uma contradição que, no entanto, põe de modo inaudito perante os nossos olhos a específica condição humana: sem futuro, até o presente se torna insuportável para os homens - aliás, por esta razão é que não ousamos, na maior parte das vezes, revelar aos doentes incuráveis a verdade sobre o seu estado, porque nada é mais difícil de suportar para os homens do que a ausência de futuro.»
Estamos em advento («aproximar-se de…, chegar a…») se não perdermos a fé. Ela é a condição de realização do Homem, sem a qual o futuro se some nas utopias que mais não são do que projecções do presente, que se esfumam como tantos moinhos de vento que o homem perseguiu, até hoje. Em tempos de crise, é urgente recuperar o sentido de advento, de caminho consistente em direcção ao Amanhã definitivo, legitimação de toda a real esperança.
Luís Silva
Sem ocultar esse dinamismo, falar de advento deve recordar-nos, antes, que a fé cristã nos coloca em tensão para o futuro, o que confere à nossa primeira afirmação, um novo sentido, tão urgente e relevante, nestes tempos de crise, marcados pela neblina que parece abater-se sobre a esperança. Na verdade, se nos interrogarmos, com atitude disponível para ouvir a resposta, sobre o que é a fé cristã, não poderemos, de modo algum, aceitar que ela se define, primeiramente, como crença num conjunto de verdades, mais ou menos obscuras e de difícil compreensão. A fé, a ser assim, seria algo próximo do esoterismo, incapaz de fecundar a vida, a existência humana. Não sou eu que o afirmo, simplesmente. Valerá, aliás, a pena recordar afirmações de Joseph Ratzinger (actual papa Bento XVI), em Dezembro de 1969: «o que quer dizer, à luz da Bíblia, «ter fé»? E constatamos que não significa um sistema de meias verdades, mas sim uma decisão sobre a existência – a vida vivida na perspectiva de um futuro que Deus nos concede mesmo para lá das fronteiras da morte. Esta direcção é que dá à vida o seu peso e a sua medida, as suas prioridades e, por isso mesmo, a sua liberdade. Com certeza que uma vida vivida na fé parece mais uma escalada de montanha do que um sonho à lareira, mas aquele que se empenha nessa viagem sabe e experimenta sempre mais que vale a pena viver a aventura para a qual é convidado pela fé.»
A fé é, assim, antes de mais, uma decisão pelo sentido da existência, preparando, no hoje, um futuro que se antecipou na História. Esta mesma história vem demonstrando que o apagamento desta tensão para o futuro, inerente à fé cristã, tem contribuído, de modo decisivo, para a condição angustiada das sociedades modernas, incapazes de construir um futuro feito de esperança, mas antes vazio e vão (cheio de vaidade – vanitas, em latim, de que deriva «vaidade», quer dizer «vazio, vão»). É o mesmo Ratzinger que o confirma: «O fenómeno curioso do nosso tempo é que, no preciso momento em que se consuma o sistema do pensamento moderno, nesse mesmo momento tornar-se-á patente a sua insuficiência por incorrer necessariamente no relativismo.»
Estou certo de que a História fará justiça a Bento XVI por ter escolhido o combate contra o relativismo como o maior desafio do seu pontificado. Confirmam esta preocupação a encíclica «caritas in veritate», que inverte o adágio Paulino «a verdade na caridade», sublinhando, assim, a importância da verdade, contra os sentimentalismos efémeros e que nivelam a verdade e a opinião, com os resultados que a crise actual permite verificar, assim como os pedidos repetidos de correspondência à verdade, junto dos grandes líderes mundiais, sejam políticos, económicos, religiosos, ou outros.
É que Bento XVI sabe, e tem-no repetido, que é a busca da verdade que abre o homem ao amanhã. Sem essa busca, que abre ao futuro, o homem basta-se com o que já é e conquistou, acomodando-se. É a tensão pela descoberta da verdade que o envia para além de si, que o faz transcender-se.
«Houve seres humanos que tiraram a vida a si próprios para não terem de morrer, como bem formula Emmanuel Mounier. Esta é uma contradição que, no entanto, põe de modo inaudito perante os nossos olhos a específica condição humana: sem futuro, até o presente se torna insuportável para os homens - aliás, por esta razão é que não ousamos, na maior parte das vezes, revelar aos doentes incuráveis a verdade sobre o seu estado, porque nada é mais difícil de suportar para os homens do que a ausência de futuro.»
Estamos em advento («aproximar-se de…, chegar a…») se não perdermos a fé. Ela é a condição de realização do Homem, sem a qual o futuro se some nas utopias que mais não são do que projecções do presente, que se esfumam como tantos moinhos de vento que o homem perseguiu, até hoje. Em tempos de crise, é urgente recuperar o sentido de advento, de caminho consistente em direcção ao Amanhã definitivo, legitimação de toda a real esperança.
Luís Silva
quarta-feira, novembro 02, 2011
A esperança contra o sonambulismo
Os tempos não estão fáceis para quem ainda quer ousar pensar. Vivemos tempos de vertigem, que pedem persistência e resistência. As mais inusitadas decisões são-nos apresentadas como fatalidades e os seus opostos considerados como passadistas e superados.
Querem fazer-nos crer que nada mais resta do que aceitar o rumo de uma história que parece movida pela força trágica de um destino invencível.
Nada mais errado do que deixar-se abater por esta convicção generalizada, que atrofia a liberdade e amarfanha a humanidade que subsiste em cada um.
Parecemos personagens de «o senhor das moscas», obra de Golding que retrata o naufrágio de um grupo de alunos de uma academia militar que se refugia numa ilha, perdida no oceano. Nos primeiros tempos, todos os náufragos parecem reunir-se em torno da esperança de que alguém virá salvá-los. Porém, o passar do tempo vai arrefecendo a esperança, e começa a emergir um grupo, liderado pelo terrível Jack, que desiste de esperar e começa a viver o dia-a-dia sem amanhã. Sem futuro, este grupo passa a viver do prazer de comer e de caçar javalis, revoltando-se contra os que continuam a entender que devem manter acesa a chama da esperança de que ainda virão a ser salvos da ilha. Nesta voragem de fruir do presente, o grupo dos que perderão a esperança começa a viver uma submissão cega ao líder, Jack, que vive para o prazer de cada momento, iniciando uma perseguição mortal aos que resistem.
Um a um, os que tinham alguma réstia de esperança vão sucumbindo, seja por desistirem, seja às mãos dos que já não acreditam que haja futuro fora da ilha. Até que só restará Ralph, o líder dos que mantém acesa a chama da esperança. Inicia-se uma última perseguição, que põe a ilha a ferro e fogo. Tudo arde e Ralph vai-se escondendo como pode e consegue. Até que é descoberto e perseguido pelos caçadores, que o seguem até às areias da praia, onde tudo parece estar acabado. Nesse momento, porém, os perseguidores despertam da sua cegueira ao descobrirem que, ali mesmo, encontram-se os helicópteros dos que vêm salvá-los.
- «O que fizestes?» – é a pergunta com que se encerra o drama, ficando a ecoar aos ouvidos como recuperação da consciência que andara adormecida e que inaugura o reconhecimento do sem-sentido de tudo o que fora feito até ali.
É a interrogação que muitos querem silenciar, pretendendo adormecer-nos sossegados enquanto o mundo arde.
Confesso que é frequente ocorrer-me a recordação deste enredo quando me deparo com a indiferença com que se fala dos números do aborto, como se de mera estatística fosse. E ainda que fossem só dados estatísticos já não seriam pouco. Na verdade, após a mudança da legislação, decorrente do referendo de 11 de Fevereiro de 2007, realizaram-se, até Dezembro de 2010, 62254 abortamentos a pedido da mulher. Se tivermos em conta que nasceram, em 2010, cerca de 101 mil crianças e que se realizaram, nesse mesmo ano, 18911 abortos a pedido da mulher, estaremos a falar de quase 20% de portugueses da espécie humana que poderiam nascer nesse ano e a quem tal não foi permitido.
- «O que fizestes?»
Muitos têm invocado que a mudança legislativa decorre de um processo imparável de progresso rumo à modernidade, como se fosse um caminho para diante. Porém, nada mais enganador. Na verdade, de moderno e de progresso nada têm estas decisões, antes são um retrocesso de mais de 2000 anos. Basta, com efeito, recordar que já o juramento de Hipócrates (no século V-IV a.C.) previa a proibição de «aplicar pessário em mulher para provocar aborto», permitindo supor que era uma prática existente. Também uma carta do século II d.C., dirigida a um desconhecido Diogneto, reconhecia que os cristãos «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos.» Era prática, entre os povos ditos clássicos, o infanticídio, o aborto, o abandono dos idosos. É o Cristianismo que, ao reconhecer a igual dignidade de todos os humanos, enquanto imagem e semelhança de Deus, afirma o carácter sacramental de cada vida humana e, por isso, merecedora de total respeito.
Pretender-se entregar à discricionariedade de alguém (seja o Estado, seja o partido, seja a mãe ou o pai, etc.) o poder de decidir se outrem merece ou não viver é retroceder não vinte ou cinquenta anos, mas dois mil. É deitar por terra as conquistas lentas da civilização ocidental, na qual puderam emergir a ciência e o reconhecimento dos direitos humanos. É regressar à barbárie. Com a agravante de se julgar que se está a escapar a ela, o que é ilusão maior e mais difícil de reconhecer e, por isso, de ultrapassar.
A história parecia ter-nos ensinado que é admissível errar uma vez, mas persistir no erro denuncia pouca sabedoria, pois, como dizia Cícero, «errar é humano, manter-se no erro é de néscio.»
Que resposta estaremos em condições de dar quando, finalmente, a consciência nos perguntar «o que fizestes?»? Ou lavaremos as mãos porque os outros é que fizeram por nós?
Luís Silva - professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)
Querem fazer-nos crer que nada mais resta do que aceitar o rumo de uma história que parece movida pela força trágica de um destino invencível.
Nada mais errado do que deixar-se abater por esta convicção generalizada, que atrofia a liberdade e amarfanha a humanidade que subsiste em cada um.
Parecemos personagens de «o senhor das moscas», obra de Golding que retrata o naufrágio de um grupo de alunos de uma academia militar que se refugia numa ilha, perdida no oceano. Nos primeiros tempos, todos os náufragos parecem reunir-se em torno da esperança de que alguém virá salvá-los. Porém, o passar do tempo vai arrefecendo a esperança, e começa a emergir um grupo, liderado pelo terrível Jack, que desiste de esperar e começa a viver o dia-a-dia sem amanhã. Sem futuro, este grupo passa a viver do prazer de comer e de caçar javalis, revoltando-se contra os que continuam a entender que devem manter acesa a chama da esperança de que ainda virão a ser salvos da ilha. Nesta voragem de fruir do presente, o grupo dos que perderão a esperança começa a viver uma submissão cega ao líder, Jack, que vive para o prazer de cada momento, iniciando uma perseguição mortal aos que resistem.
Um a um, os que tinham alguma réstia de esperança vão sucumbindo, seja por desistirem, seja às mãos dos que já não acreditam que haja futuro fora da ilha. Até que só restará Ralph, o líder dos que mantém acesa a chama da esperança. Inicia-se uma última perseguição, que põe a ilha a ferro e fogo. Tudo arde e Ralph vai-se escondendo como pode e consegue. Até que é descoberto e perseguido pelos caçadores, que o seguem até às areias da praia, onde tudo parece estar acabado. Nesse momento, porém, os perseguidores despertam da sua cegueira ao descobrirem que, ali mesmo, encontram-se os helicópteros dos que vêm salvá-los.
- «O que fizestes?» – é a pergunta com que se encerra o drama, ficando a ecoar aos ouvidos como recuperação da consciência que andara adormecida e que inaugura o reconhecimento do sem-sentido de tudo o que fora feito até ali.
É a interrogação que muitos querem silenciar, pretendendo adormecer-nos sossegados enquanto o mundo arde.
Confesso que é frequente ocorrer-me a recordação deste enredo quando me deparo com a indiferença com que se fala dos números do aborto, como se de mera estatística fosse. E ainda que fossem só dados estatísticos já não seriam pouco. Na verdade, após a mudança da legislação, decorrente do referendo de 11 de Fevereiro de 2007, realizaram-se, até Dezembro de 2010, 62254 abortamentos a pedido da mulher. Se tivermos em conta que nasceram, em 2010, cerca de 101 mil crianças e que se realizaram, nesse mesmo ano, 18911 abortos a pedido da mulher, estaremos a falar de quase 20% de portugueses da espécie humana que poderiam nascer nesse ano e a quem tal não foi permitido.
- «O que fizestes?»
Muitos têm invocado que a mudança legislativa decorre de um processo imparável de progresso rumo à modernidade, como se fosse um caminho para diante. Porém, nada mais enganador. Na verdade, de moderno e de progresso nada têm estas decisões, antes são um retrocesso de mais de 2000 anos. Basta, com efeito, recordar que já o juramento de Hipócrates (no século V-IV a.C.) previa a proibição de «aplicar pessário em mulher para provocar aborto», permitindo supor que era uma prática existente. Também uma carta do século II d.C., dirigida a um desconhecido Diogneto, reconhecia que os cristãos «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os recém-nascidos.» Era prática, entre os povos ditos clássicos, o infanticídio, o aborto, o abandono dos idosos. É o Cristianismo que, ao reconhecer a igual dignidade de todos os humanos, enquanto imagem e semelhança de Deus, afirma o carácter sacramental de cada vida humana e, por isso, merecedora de total respeito.
Pretender-se entregar à discricionariedade de alguém (seja o Estado, seja o partido, seja a mãe ou o pai, etc.) o poder de decidir se outrem merece ou não viver é retroceder não vinte ou cinquenta anos, mas dois mil. É deitar por terra as conquistas lentas da civilização ocidental, na qual puderam emergir a ciência e o reconhecimento dos direitos humanos. É regressar à barbárie. Com a agravante de se julgar que se está a escapar a ela, o que é ilusão maior e mais difícil de reconhecer e, por isso, de ultrapassar.
A história parecia ter-nos ensinado que é admissível errar uma vez, mas persistir no erro denuncia pouca sabedoria, pois, como dizia Cícero, «errar é humano, manter-se no erro é de néscio.»
Que resposta estaremos em condições de dar quando, finalmente, a consciência nos perguntar «o que fizestes?»? Ou lavaremos as mãos porque os outros é que fizeram por nós?
Luís Silva - professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)
terça-feira, julho 05, 2011
A verdade não se copia… desvenda-se na memória!
Muito se tem dito e repetido sobre o recente escândalo dos cem candidatos a juízes que foram apanhados a copiar.
Bem gostaria de poder pensar que este é um assunto circunscrito, que se resolverá com uma punição exemplar. Confesso, porém, ter poucas ilusões, quanto a isto, quer porque o assunto não é circunscrito, quer porque tudo leva a crer que a força da necessidade de ter mais juízes esteja a ser má conselheira.
Não é circunscrito, com efeito, porque mais de dez anos de docência, particularmente sensível a matérias de ética e moral, vêm-me demonstrando um progressivo crescimento da insensibilidade em relação à gravidade do falseamento de resultados de provas e exames. A busca do sucesso, a pressão da competição que parece legitimar todos os meios e a consolidação de um paradigma da irresponsabilidade têm promovido a ideia de que nada mais somos do que vítimas de uma sociedade cruel, na qual nada mais nos resta do que jogar com as regras do tabuleiro em que nos colocam.
Pois eu recuso-me à rendição e tenho-o afirmado, em múltiplos areópagos.
A começar pela intenção de não ceder a uma certa leitura marxista do indivíduo que o reduz a vítima de forças e estruturas sociais em que ele não seja mais do que um fantoche, na mão de forças invisíveis, omnipotentes, capazes de o manipular e instrumentalizar. Concebo, pelo contrário, uma sociedade que se constrói com as pessoas concretas e as suas decisões. E se nos rendermos a regras que supomos serem fatais, estaremos a negar a nossa condição de pessoas, contribuindo para a perpetuação de um certo modelo de sociedade que dizemos criticar, mas que subscrevemos, nas nossas escolhas e decisões. Seja na decisão de declarar os nossos verdadeiros rendimentos, seja no momento de afirmar a nossa condição de conjugalidade, seja no momento de um teste ou em qualquer outra ocasião em que nos seja pedido que nos submetamos à verdade, mesmo que ela seja dura.
O contrário da verdade é o esquecimento, a amnésia, a falta de memória. Assim entendiam os gregos, que a referiam como «alêtheia», a «ausência do esquecimento», a «não amnésia».
Curiosamente, uma sociedade que se sustenta na falta da verdade esquece-se de si, gira em torno de amnésias, sobre mentiras que conduzem a crises que deveriam desafiar a uma nova demanda, já não do Santo Graal, mas da verdade de cada um e de cada situação. Vivemos ilusões, convencidos de sermos mais do que, realmente, somos e podemos. Vivemos da fama que, curiosamente, se escreve com as consoantes de fumo. Ambos se esvanecem com um sopro…
Estamos, assim, perante um grave desafio que aqui denuncio: o de começarmos a perguntar-nos sobre o que podemos nós mesmos fazer – cada um de nós e não «alguém», «os outros», «o Estado» - para mudar esta forma de organizar a sociedade. O que cada um deveria fazer não será feito desse modo por nenhum outro.
A Igreja, nas suas reflexões sobre matérias sociais, recorda, a este propósito, a importância do princípio da subsidiariedade, quase tão difícil de pronunciar com correcção como de praticar. Este princípio sustenta que, quando determinada acção pode ser realizada por alguém ou por uma estrutura mais próxima das pessoas, não deve ser assumida por uma superior, sob pena de redundar numa situação injusta. Se eu posso, se eu devo fazer, não posso deixar de o fazer. Estaria a contribuir para a injustiça. A escolha é para inteligentes. Os outros sofrem de amnésia!
Luís Silva – professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)
Bem gostaria de poder pensar que este é um assunto circunscrito, que se resolverá com uma punição exemplar. Confesso, porém, ter poucas ilusões, quanto a isto, quer porque o assunto não é circunscrito, quer porque tudo leva a crer que a força da necessidade de ter mais juízes esteja a ser má conselheira.
Não é circunscrito, com efeito, porque mais de dez anos de docência, particularmente sensível a matérias de ética e moral, vêm-me demonstrando um progressivo crescimento da insensibilidade em relação à gravidade do falseamento de resultados de provas e exames. A busca do sucesso, a pressão da competição que parece legitimar todos os meios e a consolidação de um paradigma da irresponsabilidade têm promovido a ideia de que nada mais somos do que vítimas de uma sociedade cruel, na qual nada mais nos resta do que jogar com as regras do tabuleiro em que nos colocam.
Pois eu recuso-me à rendição e tenho-o afirmado, em múltiplos areópagos.
A começar pela intenção de não ceder a uma certa leitura marxista do indivíduo que o reduz a vítima de forças e estruturas sociais em que ele não seja mais do que um fantoche, na mão de forças invisíveis, omnipotentes, capazes de o manipular e instrumentalizar. Concebo, pelo contrário, uma sociedade que se constrói com as pessoas concretas e as suas decisões. E se nos rendermos a regras que supomos serem fatais, estaremos a negar a nossa condição de pessoas, contribuindo para a perpetuação de um certo modelo de sociedade que dizemos criticar, mas que subscrevemos, nas nossas escolhas e decisões. Seja na decisão de declarar os nossos verdadeiros rendimentos, seja no momento de afirmar a nossa condição de conjugalidade, seja no momento de um teste ou em qualquer outra ocasião em que nos seja pedido que nos submetamos à verdade, mesmo que ela seja dura.
O contrário da verdade é o esquecimento, a amnésia, a falta de memória. Assim entendiam os gregos, que a referiam como «alêtheia», a «ausência do esquecimento», a «não amnésia».
Curiosamente, uma sociedade que se sustenta na falta da verdade esquece-se de si, gira em torno de amnésias, sobre mentiras que conduzem a crises que deveriam desafiar a uma nova demanda, já não do Santo Graal, mas da verdade de cada um e de cada situação. Vivemos ilusões, convencidos de sermos mais do que, realmente, somos e podemos. Vivemos da fama que, curiosamente, se escreve com as consoantes de fumo. Ambos se esvanecem com um sopro…
Estamos, assim, perante um grave desafio que aqui denuncio: o de começarmos a perguntar-nos sobre o que podemos nós mesmos fazer – cada um de nós e não «alguém», «os outros», «o Estado» - para mudar esta forma de organizar a sociedade. O que cada um deveria fazer não será feito desse modo por nenhum outro.
A Igreja, nas suas reflexões sobre matérias sociais, recorda, a este propósito, a importância do princípio da subsidiariedade, quase tão difícil de pronunciar com correcção como de praticar. Este princípio sustenta que, quando determinada acção pode ser realizada por alguém ou por uma estrutura mais próxima das pessoas, não deve ser assumida por uma superior, sob pena de redundar numa situação injusta. Se eu posso, se eu devo fazer, não posso deixar de o fazer. Estaria a contribuir para a injustiça. A escolha é para inteligentes. Os outros sofrem de amnésia!
Luís Silva – professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)
domingo, maio 08, 2011
O que tem a dizer-nos a crise sobre o respeito pelos embriões humanos?
Crises económicas como aquela em que vivemos demonstram-nos que fomos demasiado longe e que deveríamos ter ouvido quem nos alertava, no tempo devido. Bem certo que Portugal viveu sempre a sombra de que alertar para caminhos a evitar soava a velho do Restelo, personagem camoniana tão pródiga de sentidos que pode ter sido responsável por nos termos tornado aventureiros sem norte, hoje desorientados e perdidos.
Mas é um facto que os tempos nos obrigam a um olhar crítico perante a ousadia de enveredar por caminhos ínvios que jamais deveríamos percorrer.
Vem esta introdução a propósito de uma intenção governativa, entretanto sumida nos desencantos da crise - mas que será, provavelmente, logo que haja oportunidade - de vir a acabar com qualquer impedimento à investigação em células estaminais embrionárias. Uma tal proposta, agora sossegada temporariamente, mas estranhamente abafada e pouco discutida, obriga a reflexão atenta e crítica.
Em primeiro lugar, importa desmontar o mito de que não haja outra solução para doenças de foro neurológico senão prosseguir por esta via. De facto, as investigações em células estaminais adultas têm obtido sucesso sem as implicações éticas que a investigação em embriões suscita.
Em segundo lugar, é necessário clarificar que a ética não é a arte de dizer «não» a todo o progresso, mas, pelo contrário, a arte de desafiar a encontrar outros caminhos menos perigosos e de consequências mais seguras. Apetece mesmo dizer que a ética é um progresso que rivaliza com o conservadorismo dos que pretendem ir pelo caminho mais imediato.
Na verdade, em terceiro lugar, discutir se deve haver limites e protocolos a seguir na investigação em embriões, da qual possa redundar a sua não viabilidade e destruição, é partir da pergunta sobre se pode ou não instrumentalizar-se um ser da espécie humana, identificado com um código genético único, distinto do dos seus progenitores, ou se ele é um mero material biológico de que pode fazer-se uso sem limites, nem qualquer dever de respeito. É o dilema que o grande filósofo do século XVIII, Immanuel Kant, resolvia com a distinção de que às coisas se atribui um preço, por serem da ordem dos meios, mas aos humanos, que são fim em si mesmos, reconhece-se uma dignidade, que é inviolável.
A interrogação a que tentamos atender não nos atira para uma resposta de foro religioso, como muitos pretenderam afirmar, na discussão que preparou os referendos de 1998 e 2007. Pelo contrário. Estamos diante de uma matéria de foro humanitário em que todos os contributos são bem-vindos, mas em que a substância em causa mais não é do que assunto lógico, como reconhecia o socialista italiano, Norberto Bobbio. Para este parlamentar italiano, a defesa da dignidade da vida não nascida não era matéria que ele quisesse entregar à exclusividade dos crentes, por nela reconhecer estar em causa o que há de mais genuinamente humano. Um embrião humano é, simplesmente, um humano na sua primeira fase, momento sem o qual não haverá etapas seguintes, contrariamente à ideia que «interrupção da gravidez» quer difundir. Por isso, não será mais do que discriminação deixar de lhe reconhecer direitos, só por motivo da sua idade.
O desafio está, assim, em descobrir outros modos de conseguir o mesmo fim que é o de poder encontrar soluções para doenças e enfermidades que desafiam a inteligência humana. Mas a história e esta crise demonstram que pode haver soluções que se tornam problemas. A ética é o despertar e o alerta antecipado perante soluções que nos conduzirão ao abismo. Enveredar pela investigação em embriões humanos sem qualquer limitação ou respeito pela sua dignidade de membro da espécie humana é fortalecer a força do poder sobre o sentido do respeito pelo que deve ser feito. Um conflito que muitos querem resolver dando sempre a precedência ao poder. Estaremos, porém, a consolidar os traços de uma sociedade insolidária, em que vence quem tem poder, enquanto quem é frágil e sem voz é preterido e esquecido.
Quantas lições podem encerrar-se numa crise que pareceria uma fatalidade!
Luís Silva
(Artigo publicado no Diário de Aveiro, na coluna «uma ideia de vida»)
Mas é um facto que os tempos nos obrigam a um olhar crítico perante a ousadia de enveredar por caminhos ínvios que jamais deveríamos percorrer.
Vem esta introdução a propósito de uma intenção governativa, entretanto sumida nos desencantos da crise - mas que será, provavelmente, logo que haja oportunidade - de vir a acabar com qualquer impedimento à investigação em células estaminais embrionárias. Uma tal proposta, agora sossegada temporariamente, mas estranhamente abafada e pouco discutida, obriga a reflexão atenta e crítica.
Em primeiro lugar, importa desmontar o mito de que não haja outra solução para doenças de foro neurológico senão prosseguir por esta via. De facto, as investigações em células estaminais adultas têm obtido sucesso sem as implicações éticas que a investigação em embriões suscita.
Em segundo lugar, é necessário clarificar que a ética não é a arte de dizer «não» a todo o progresso, mas, pelo contrário, a arte de desafiar a encontrar outros caminhos menos perigosos e de consequências mais seguras. Apetece mesmo dizer que a ética é um progresso que rivaliza com o conservadorismo dos que pretendem ir pelo caminho mais imediato.
Na verdade, em terceiro lugar, discutir se deve haver limites e protocolos a seguir na investigação em embriões, da qual possa redundar a sua não viabilidade e destruição, é partir da pergunta sobre se pode ou não instrumentalizar-se um ser da espécie humana, identificado com um código genético único, distinto do dos seus progenitores, ou se ele é um mero material biológico de que pode fazer-se uso sem limites, nem qualquer dever de respeito. É o dilema que o grande filósofo do século XVIII, Immanuel Kant, resolvia com a distinção de que às coisas se atribui um preço, por serem da ordem dos meios, mas aos humanos, que são fim em si mesmos, reconhece-se uma dignidade, que é inviolável.
A interrogação a que tentamos atender não nos atira para uma resposta de foro religioso, como muitos pretenderam afirmar, na discussão que preparou os referendos de 1998 e 2007. Pelo contrário. Estamos diante de uma matéria de foro humanitário em que todos os contributos são bem-vindos, mas em que a substância em causa mais não é do que assunto lógico, como reconhecia o socialista italiano, Norberto Bobbio. Para este parlamentar italiano, a defesa da dignidade da vida não nascida não era matéria que ele quisesse entregar à exclusividade dos crentes, por nela reconhecer estar em causa o que há de mais genuinamente humano. Um embrião humano é, simplesmente, um humano na sua primeira fase, momento sem o qual não haverá etapas seguintes, contrariamente à ideia que «interrupção da gravidez» quer difundir. Por isso, não será mais do que discriminação deixar de lhe reconhecer direitos, só por motivo da sua idade.
O desafio está, assim, em descobrir outros modos de conseguir o mesmo fim que é o de poder encontrar soluções para doenças e enfermidades que desafiam a inteligência humana. Mas a história e esta crise demonstram que pode haver soluções que se tornam problemas. A ética é o despertar e o alerta antecipado perante soluções que nos conduzirão ao abismo. Enveredar pela investigação em embriões humanos sem qualquer limitação ou respeito pela sua dignidade de membro da espécie humana é fortalecer a força do poder sobre o sentido do respeito pelo que deve ser feito. Um conflito que muitos querem resolver dando sempre a precedência ao poder. Estaremos, porém, a consolidar os traços de uma sociedade insolidária, em que vence quem tem poder, enquanto quem é frágil e sem voz é preterido e esquecido.
Quantas lições podem encerrar-se numa crise que pareceria uma fatalidade!
Luís Silva
(Artigo publicado no Diário de Aveiro, na coluna «uma ideia de vida»)
domingo, abril 03, 2011
A traição das palavras «felicidade», «liberdade» e «amor»
Alguém que se propusesse encontrar os termos mais importantes para definir o Cristianismo não ficaria longe de uma resposta definitiva ao deparar-se com as ideias de felicidade, liberdade e amor.
Não deixa, porém, de ser curioso que, se esse mesmo alguém envidasse esforços para definir o que se propôs construir a modernidade, que se afirmou por oposição ao Cristianismo, encontrasse como palavras definidoras de tal esforço as mesmas felicidade, liberdade e amor.
Mas, então, onde radica a distinção entre o uso que das mesmas palavras se faz, em contexto cristão ou no âmbito de uma sociedade secularizada?
Arrisco uma resposta.
É a amplitude do conceito que as palavras ocultam que gera o desencontro.
A modernidade, definida como espírito que começa a construir-se, a partir do século XVI, e que muitos caracterizam como sendo uma era da afirmação da autonomia, segmentou os conceitos. Entendo, por «segmentar», a ideia de que se fragmenta um conceito amplo e se toma apenas um segmento desses muitos fragmentos, resultando daí, afinal, um novo conceito, reduzido a uma parte de si.
Aplicando aos conceitos em análise, perceberemos melhor o alcance desta observação.
O Cristianismo é rico nas referências à felicidade, à liberdade, ao amor. Quem são os verdadeiros cristãos senão os bem-aventurados (os felizes), os que já não estão presos a nada nem por nada, os que amam porque já nada os detém em si mesmos?
Mas, para os ouvidos modernos, tais palavras soam a estranhas, pois, falar de felicidade, de liberdade, de amor, em pouco parece coincidir com estes conceitos. Na realidade, tal deve-se a que os novos conceitos de felicidade, liberdade e amor tomaram uma parte do conceito original, mas não retiveram o que eles tinham de mais sublime.
Assim, da felicidade ficou o sentimento de tensão que gera um qualquer prazer, que, por ser efémero, se desgasta com avidez e some o homem num corrupio de vertigens incessantes. Já não é feliz, neste novo conceito, o homem que procura engrandecer-se, combater os seus mais efémeros desejos em nome de um futuro maior. O futuro ainda não alcançado foi substituído pela convicção de que será um futuro nunca concretizado, redundando no medo de que fosse uma miragem jamais realizada. Tal medo aprisionou o homem na fugaz tentação de sentir-se feliz. Mas, ser feliz não é só sentir-se feliz. É ser… na felicidade.
Do mesmo modo, a liberdade, que se definia como a capacidade de saber escolher o melhor, capacidade que distinguia, claramente, o homem dos demais seres, porque estes não podiam senão deixar-se mover pelos instintos, ficou reduzida à capacidade de escolher. Ora, escolher, sem qualquer horizonte, com uma tal aleatoriedade que pode redundar na negação da própria escolha (como acontece no caso do suicida que, de forma supostamente livre, decide acabar em definitivo com a sua liberdade) é algo que tem muito de inumano, pois tudo o que o homem faz tem condicionamentos, está dependente de um horizonte, de um enquadramento… Uma liberdade que fosse pretendida como capacidade não condicionada seria tudo menos uma capacidade humana. E é de uma natureza deste tipo que a modernidade parece querer falar, ao supor que se pudesse decidir sem condicionamentos. Ora, tal é definir sem respeitar o definido. É, por isso, errar. E é de um erro que se trata quando se pretende, na modernidade, usar um conceito de liberdade que não tem verificação na realidade. O homem será sempre não livre enquanto continuar a supor que ser livre é, simplesmente, poder escolher. Porque ele não pode, simplesmente, escolher. Ele é, antes, livre se souber escolher o que de melhor se lhe afigura nas condições concretas.
Por fim, também com o amor o processo foi semelhante. Do amor como decisão que envolve o ser humano, no seu todo, resistiu, apenas, a dimensão emocional do amor. Amar é, neste novo conceito, sentir amor. Ora, quando o sentimento trai o olhar e parece sumir no nevoeiro, o amor, para o homem moderno, o amor acabou. Para o cristão, o amor está a crescer, a exigir que se envolvam as outras dimensões do homem que estavam sossegadas e adormecidas, enquanto o sentimento tornava óbvia a presença do amor. Amar o ser humano que pede, quando o seu olhar é brilhante e transparente e nele se reflecte o outro que eu sou, não é exigência de amor. Amar, quando o olhar do outro se oculta num rosto desfigurado ou matizado ou diferente, quando o sentimento não é de espontânea simpatia, torna-se exigência de amor e as demais dimensões do humano devem ser despertas. Ora, para o homem moderno, nesta hora, essas dimensões devem permanecer adormecidas e procurar-se um outro cenário em que, renovadamente, se tornem fulgurantes os sentimentos de «amor». Mas jamais haverá amor, enquanto este for o comportamento. Porque o que de humano ficará será, apenas, o fugaz, efémero, prazenteiro… O homem esgotar-se-á no presente de cada momento, sem memória, sem projecto; sem inteligência, sem vontade; sem outros nem tus, mas apenas «eus», sentires e afectos.
É por isto que felicidade, liberdade e amor são algo diferente do que se diz por aí.
Luís Silva
Não deixa, porém, de ser curioso que, se esse mesmo alguém envidasse esforços para definir o que se propôs construir a modernidade, que se afirmou por oposição ao Cristianismo, encontrasse como palavras definidoras de tal esforço as mesmas felicidade, liberdade e amor.
Mas, então, onde radica a distinção entre o uso que das mesmas palavras se faz, em contexto cristão ou no âmbito de uma sociedade secularizada?
Arrisco uma resposta.
É a amplitude do conceito que as palavras ocultam que gera o desencontro.
A modernidade, definida como espírito que começa a construir-se, a partir do século XVI, e que muitos caracterizam como sendo uma era da afirmação da autonomia, segmentou os conceitos. Entendo, por «segmentar», a ideia de que se fragmenta um conceito amplo e se toma apenas um segmento desses muitos fragmentos, resultando daí, afinal, um novo conceito, reduzido a uma parte de si.
Aplicando aos conceitos em análise, perceberemos melhor o alcance desta observação.
O Cristianismo é rico nas referências à felicidade, à liberdade, ao amor. Quem são os verdadeiros cristãos senão os bem-aventurados (os felizes), os que já não estão presos a nada nem por nada, os que amam porque já nada os detém em si mesmos?
Mas, para os ouvidos modernos, tais palavras soam a estranhas, pois, falar de felicidade, de liberdade, de amor, em pouco parece coincidir com estes conceitos. Na realidade, tal deve-se a que os novos conceitos de felicidade, liberdade e amor tomaram uma parte do conceito original, mas não retiveram o que eles tinham de mais sublime.
Assim, da felicidade ficou o sentimento de tensão que gera um qualquer prazer, que, por ser efémero, se desgasta com avidez e some o homem num corrupio de vertigens incessantes. Já não é feliz, neste novo conceito, o homem que procura engrandecer-se, combater os seus mais efémeros desejos em nome de um futuro maior. O futuro ainda não alcançado foi substituído pela convicção de que será um futuro nunca concretizado, redundando no medo de que fosse uma miragem jamais realizada. Tal medo aprisionou o homem na fugaz tentação de sentir-se feliz. Mas, ser feliz não é só sentir-se feliz. É ser… na felicidade.
Do mesmo modo, a liberdade, que se definia como a capacidade de saber escolher o melhor, capacidade que distinguia, claramente, o homem dos demais seres, porque estes não podiam senão deixar-se mover pelos instintos, ficou reduzida à capacidade de escolher. Ora, escolher, sem qualquer horizonte, com uma tal aleatoriedade que pode redundar na negação da própria escolha (como acontece no caso do suicida que, de forma supostamente livre, decide acabar em definitivo com a sua liberdade) é algo que tem muito de inumano, pois tudo o que o homem faz tem condicionamentos, está dependente de um horizonte, de um enquadramento… Uma liberdade que fosse pretendida como capacidade não condicionada seria tudo menos uma capacidade humana. E é de uma natureza deste tipo que a modernidade parece querer falar, ao supor que se pudesse decidir sem condicionamentos. Ora, tal é definir sem respeitar o definido. É, por isso, errar. E é de um erro que se trata quando se pretende, na modernidade, usar um conceito de liberdade que não tem verificação na realidade. O homem será sempre não livre enquanto continuar a supor que ser livre é, simplesmente, poder escolher. Porque ele não pode, simplesmente, escolher. Ele é, antes, livre se souber escolher o que de melhor se lhe afigura nas condições concretas.
Por fim, também com o amor o processo foi semelhante. Do amor como decisão que envolve o ser humano, no seu todo, resistiu, apenas, a dimensão emocional do amor. Amar é, neste novo conceito, sentir amor. Ora, quando o sentimento trai o olhar e parece sumir no nevoeiro, o amor, para o homem moderno, o amor acabou. Para o cristão, o amor está a crescer, a exigir que se envolvam as outras dimensões do homem que estavam sossegadas e adormecidas, enquanto o sentimento tornava óbvia a presença do amor. Amar o ser humano que pede, quando o seu olhar é brilhante e transparente e nele se reflecte o outro que eu sou, não é exigência de amor. Amar, quando o olhar do outro se oculta num rosto desfigurado ou matizado ou diferente, quando o sentimento não é de espontânea simpatia, torna-se exigência de amor e as demais dimensões do humano devem ser despertas. Ora, para o homem moderno, nesta hora, essas dimensões devem permanecer adormecidas e procurar-se um outro cenário em que, renovadamente, se tornem fulgurantes os sentimentos de «amor». Mas jamais haverá amor, enquanto este for o comportamento. Porque o que de humano ficará será, apenas, o fugaz, efémero, prazenteiro… O homem esgotar-se-á no presente de cada momento, sem memória, sem projecto; sem inteligência, sem vontade; sem outros nem tus, mas apenas «eus», sentires e afectos.
É por isto que felicidade, liberdade e amor são algo diferente do que se diz por aí.
Luís Silva
sexta-feira, fevereiro 25, 2011
Três sugestões para democratizar a democracia
De cada vez que o povo é chamado às urnas, é tal a distância do povo em relação ao acto que mais parece que alguém confundiu os termos e pensa tratar-se de algum enterro. E, se é inquietante este afastamento, não o é menos que os decisores políticos não retirem deste tremendo sinal as suas implicações.
Na verdade, considero que a abstenção resulta de um profundo sentimento de que já não vale a pena e, por isso, denuncia a existência de um vulcão adormecido que, tal como os verdadeiros, se não tiver pequenos géiseres e fumarolas que permitam libertar a energia acumulada, rebentará, mais cedo do que tarde, com uma violência descontrolada. Que o digam as recentes convulsões no Norte de África!
Neste sentido, vale a pena começar por recordar que o que mais conduz à percepção de que não vale a pena é a mentira e a falta de inteligência na interpretação dos sinais que se dão.
Para a convicção de que a mentira está instalada na democracia portuguesa contribui, no meu entendimento, a discrepância entre o que se preconiza como princípios da democracia e o que, de facto, se concretiza.
Na realidade, são apontados como principais marcas da democracia três pilares estruturantes, a saber:
- que o povo é que decide – por isso se lhe chama democracia (demos [povo]+cratia [poder]);
- que a cada eleitor corresponde um voto;
- que os poderes (legislativo, executivo e judicial) são separados (marca que se deve ao iluminado pensador francês do tempo da revolução gaulesa, Montesquieu);
Enunciados deste modo, tais pilares parecem ser a garantia de um regime perfeito, contudo, há deficiências congénitas no nosso sistema que impedem que vejam a luz do dia, o que é notado pelo povo, mesmo que ele não entenda bem o mecanismo que está na base do seu sentimento de que o estão a enganar.
Assim, basta recordar que, para que o povo seja, de facto, quem decide, deve ser-lhe dada a oportunidade de que, da sua decisão, resultem consequências efectivas no órgão de soberania que o representa. Tal parece, no entanto, não se verificar, na medida em que, se alguém entender que nenhum dos candidatos sufragáveis corresponde às suas expectativas, e decidir deixar o voto em branco ou nulo (para evitar que o voto branco seja preenchido criminosamente por alguém presente na mesa de voto), tal decisão não tem nenhuma repercussão na composição do parlamento. Ora, tal conduz a uma noção de que, se não há identificação com nenhum candidato, melhor é não comparecer.
Seria outra a postura se os votos brancos e nulos significassem percentagem correspondente de lugares vazios no parlamento. O povo compareceria e os políticos seriam mais exigentes consigo próprios.
O segundo princípio também não encontra reflexo no nosso sistema eleitoral. Na verdade, o voto de um eleitor de Aveiro, que elege 16 deputados, vale mais do que o de um eleitor de Vila Real, que pode eleger 5 deputados. O sistema é tão oblíquo que o único benefício que poderia advir deste sistema está sumido, na medida em que cada deputado, nas matérias decisivas, está sujeito a disciplina de voto, pelo que não pode representar o círculo eleitoral pelo qual, de forma diferenciada, fora eleito. Acresce a isto uma curiosidade também pouco constatada: um partido pode ter maioria absoluta sem ser eleito pela maioria dos votos válidos (coisa estranha esta, também!) e outro pode ter mais deputados sem ser mais votado… Veja-se, por exemplo, como, nas últimas legislativas, uma diferença de apenas 0,62% entre o CDS e o Bloco de Esquerda significou uma diferença de cinco deputados, na Assembleia da República.
A única solução, para eliminar tamanha confusão pouco democrática, passaria, necessariamente, por acabar, de uma vez, com o sistema misto (de que nada resulta de democraticamente relevante), substituindo-o por um outro em que o cálculo dos deputados fosse feito a partir do total nacional, de acordo com as listas previamente definidas e ordenadas.
Por fim, o terceiro pilar, tantas vezes definido como o garante do sistema democrático: a separação de poderes. Para além das evidentes promiscuidades entre os poderes e a tendência cada vez mais acentuada do executivo para legislar a torto e a direito, tantas vezes denunciadas e que, de tanto serem repetidas, já soam a curiosidade de almanaque, há uma mistura de competências cujos resultados são visíveis e recentemente tão repetidos até à saciedade.
Quem legisla sobre a assembleia da república e sobre os deputados e políticos?
A própria assembleia da república e os próprios deputados e políticos! São todos boas pessoas, seguramente, mas, já agora, na condição de professor, gostaria de que me fosse dada a oportunidade de, por um dia, legislar sobre a minha própria profissão. Tenho umas sugestões para moralizar esses malandrecos dos professores!
Enquanto for a própria assembleia a legislar sobre si e os deputados continuarem a ser os legisladores dos seus próprios direitos e deveres, nunca estarão a ser consequentes com o princípio democrático de que dizem ser protectores. É uma questão de coerência. E o povo percebe a incoerência.
Valeria a pena procurar uma solução que moralizasse, segundo a tão propalada ética republicana, os presumidos detentores dos valores da mesma República. De outro modo, a lava do vulcão poderá não ser contida por muito mais tempo.
Luís Silva
Professor
Na verdade, considero que a abstenção resulta de um profundo sentimento de que já não vale a pena e, por isso, denuncia a existência de um vulcão adormecido que, tal como os verdadeiros, se não tiver pequenos géiseres e fumarolas que permitam libertar a energia acumulada, rebentará, mais cedo do que tarde, com uma violência descontrolada. Que o digam as recentes convulsões no Norte de África!
Neste sentido, vale a pena começar por recordar que o que mais conduz à percepção de que não vale a pena é a mentira e a falta de inteligência na interpretação dos sinais que se dão.
Para a convicção de que a mentira está instalada na democracia portuguesa contribui, no meu entendimento, a discrepância entre o que se preconiza como princípios da democracia e o que, de facto, se concretiza.
Na realidade, são apontados como principais marcas da democracia três pilares estruturantes, a saber:
- que o povo é que decide – por isso se lhe chama democracia (demos [povo]+cratia [poder]);
- que a cada eleitor corresponde um voto;
- que os poderes (legislativo, executivo e judicial) são separados (marca que se deve ao iluminado pensador francês do tempo da revolução gaulesa, Montesquieu);
Enunciados deste modo, tais pilares parecem ser a garantia de um regime perfeito, contudo, há deficiências congénitas no nosso sistema que impedem que vejam a luz do dia, o que é notado pelo povo, mesmo que ele não entenda bem o mecanismo que está na base do seu sentimento de que o estão a enganar.
Assim, basta recordar que, para que o povo seja, de facto, quem decide, deve ser-lhe dada a oportunidade de que, da sua decisão, resultem consequências efectivas no órgão de soberania que o representa. Tal parece, no entanto, não se verificar, na medida em que, se alguém entender que nenhum dos candidatos sufragáveis corresponde às suas expectativas, e decidir deixar o voto em branco ou nulo (para evitar que o voto branco seja preenchido criminosamente por alguém presente na mesa de voto), tal decisão não tem nenhuma repercussão na composição do parlamento. Ora, tal conduz a uma noção de que, se não há identificação com nenhum candidato, melhor é não comparecer.
Seria outra a postura se os votos brancos e nulos significassem percentagem correspondente de lugares vazios no parlamento. O povo compareceria e os políticos seriam mais exigentes consigo próprios.
O segundo princípio também não encontra reflexo no nosso sistema eleitoral. Na verdade, o voto de um eleitor de Aveiro, que elege 16 deputados, vale mais do que o de um eleitor de Vila Real, que pode eleger 5 deputados. O sistema é tão oblíquo que o único benefício que poderia advir deste sistema está sumido, na medida em que cada deputado, nas matérias decisivas, está sujeito a disciplina de voto, pelo que não pode representar o círculo eleitoral pelo qual, de forma diferenciada, fora eleito. Acresce a isto uma curiosidade também pouco constatada: um partido pode ter maioria absoluta sem ser eleito pela maioria dos votos válidos (coisa estranha esta, também!) e outro pode ter mais deputados sem ser mais votado… Veja-se, por exemplo, como, nas últimas legislativas, uma diferença de apenas 0,62% entre o CDS e o Bloco de Esquerda significou uma diferença de cinco deputados, na Assembleia da República.
A única solução, para eliminar tamanha confusão pouco democrática, passaria, necessariamente, por acabar, de uma vez, com o sistema misto (de que nada resulta de democraticamente relevante), substituindo-o por um outro em que o cálculo dos deputados fosse feito a partir do total nacional, de acordo com as listas previamente definidas e ordenadas.
Por fim, o terceiro pilar, tantas vezes definido como o garante do sistema democrático: a separação de poderes. Para além das evidentes promiscuidades entre os poderes e a tendência cada vez mais acentuada do executivo para legislar a torto e a direito, tantas vezes denunciadas e que, de tanto serem repetidas, já soam a curiosidade de almanaque, há uma mistura de competências cujos resultados são visíveis e recentemente tão repetidos até à saciedade.
Quem legisla sobre a assembleia da república e sobre os deputados e políticos?
A própria assembleia da república e os próprios deputados e políticos! São todos boas pessoas, seguramente, mas, já agora, na condição de professor, gostaria de que me fosse dada a oportunidade de, por um dia, legislar sobre a minha própria profissão. Tenho umas sugestões para moralizar esses malandrecos dos professores!
Enquanto for a própria assembleia a legislar sobre si e os deputados continuarem a ser os legisladores dos seus próprios direitos e deveres, nunca estarão a ser consequentes com o princípio democrático de que dizem ser protectores. É uma questão de coerência. E o povo percebe a incoerência.
Valeria a pena procurar uma solução que moralizasse, segundo a tão propalada ética republicana, os presumidos detentores dos valores da mesma República. De outro modo, a lava do vulcão poderá não ser contida por muito mais tempo.
Luís Silva
Professor
quinta-feira, janeiro 20, 2011
O que nasceu primeiro: o Estado ou a sociedade?
A interrogação parece distante e teórica. Para muitos, parecerá, mesmo, uma recuperação da redondez da pergunta sobre o ovo ou a galinha. Contudo, não é assim. Da escolha sobre qual a opção que deve ser resposta a esta pergunta resultam visões sobre as funções, direitos e deveres do Estado muito distintas e com consequências profundas nas vidas individuais e colectivas.
Os Estados colectivistas de matriz marxista e os de matriz fascista sempre entenderam que o Estado é prévio, anterior, à sociedade. Sendo assim, ao Estado (seja em nome de um povo pouco menos do abstracto, nos regimes colectivistas, ou em nome do chefe que concentra o ideal nacional) cabia definir os direitos e deveres do cidadão, assim como as suas liberdades.
Por oposição a este modelo, as democracias preconizam que, por a sociedade e, antes mesmo dela, a pessoa, ser detentora de direitos intrínsecos, ao Estado cabe reconhecer e assegurar esses mesmos direitos.
Portugal, ao longo da sua já quase milenária história de sociedade organizada como nação e como Estado, assistiu, em largos momentos à tentação de sucumbir a visões totalitárias que inverteram o sentido da resposta, pervertendo a natureza do Estado e, com essa perversão, a própria sociedade e dignidade das pessoas.
Os tiques totalitários não são longínquos e podem emergir sempre que uma crise mais intensa faz sumir a força dos ideais. Circunstâncias como a que vivemos, em que o pão pode escassear, fazem emergir tentações totalitárias para as quais é preciso estar muito atento. A doutrina social da Igreja, neste tempo que decorreu desde o primeiro grande documento sobre estas matérias, em 1891 (com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII), vem procurando salvaguardar a necessidade de respeito para com os direitos intrínsecos da pessoa humana e das estruturas intermédias da sociedade. Esta salvaguarda, que ganha honras de princípio doutrinal a partir da Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI, sustentando que, quando uma estrutura mais próxima da sociedade pode assegurar uma resposta, ela não deve ser assumida por uma instância superior, sob pena de poder incorrer em injustiça grave. A este princípio foi atribuída a designação de «subsidiariedade» e é um dos valores estruturantes da organização da União Europeia, como sempre sustentou o grande presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors. Quando o Estado se arvora no direito de substituir, de forma discricionária, a sociedade e as suas iniciativas, mesmo que não tenha o rótulo, está a comportar-se como um Estado Totalitário. Tal tentação pode ser sumida em argumentos de ordem economicista ou de uma suposta igualdade de oportunidades que se comporta como simples fachada ideológica, mas não corresponderá, efectivamente, a uma prática justa.
Vale a pena recordar as palavras de alguém que viveu subjugado a um regime que se considerava detentor de todo o saber e do conhecimento do que era melhor para os cidadãos: Vaclav Havel, que foi vítima do regime colectivista leninista-estalinista, mas que, após a queda da URSS e da influência deste regime nos países do Pacto de Varsóvia, veio a tornar-se o primeiro presidente da República Checa, em 1992. Diz Vaclav Havel, num discurso de 1990, pouco tempo após a queda do muro de Berlim e do regime a ele associado:
«O regime anterior – armado com a sua ideologia arrogante e intolerante – reduzia o homem a uma força de produção e a natureza a um instrumento de produção, pondo assim em causa a própria substância e as relações entre ambos, e reduzindo pessoas talentosas e autónomas, que trabalhavam com competência no próprio país, a porcas e parafusos de uma máquina monstruosa, barulhenta e mal-cheirosa, cujo verdadeiro sentido ninguém compreende bem. […] Não nos deixemos enganar: nem o melhor governo do mundo, nem o melhor parlamento e o melhor presidente conseguem fazer grande coisa sozinhos. Seria um erro esperar que fossem eles a resolver tudo. A liberdade e a democracia exigem participação, e portanto responsabilizam-nos a todos.»
O perigo está à espreita: importa estar atento e não seguir a voz das sereias que encantam aos ouvidos mais distraídos.
Luís Silva - professor
Os Estados colectivistas de matriz marxista e os de matriz fascista sempre entenderam que o Estado é prévio, anterior, à sociedade. Sendo assim, ao Estado (seja em nome de um povo pouco menos do abstracto, nos regimes colectivistas, ou em nome do chefe que concentra o ideal nacional) cabia definir os direitos e deveres do cidadão, assim como as suas liberdades.
Por oposição a este modelo, as democracias preconizam que, por a sociedade e, antes mesmo dela, a pessoa, ser detentora de direitos intrínsecos, ao Estado cabe reconhecer e assegurar esses mesmos direitos.
Portugal, ao longo da sua já quase milenária história de sociedade organizada como nação e como Estado, assistiu, em largos momentos à tentação de sucumbir a visões totalitárias que inverteram o sentido da resposta, pervertendo a natureza do Estado e, com essa perversão, a própria sociedade e dignidade das pessoas.
Os tiques totalitários não são longínquos e podem emergir sempre que uma crise mais intensa faz sumir a força dos ideais. Circunstâncias como a que vivemos, em que o pão pode escassear, fazem emergir tentações totalitárias para as quais é preciso estar muito atento. A doutrina social da Igreja, neste tempo que decorreu desde o primeiro grande documento sobre estas matérias, em 1891 (com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII), vem procurando salvaguardar a necessidade de respeito para com os direitos intrínsecos da pessoa humana e das estruturas intermédias da sociedade. Esta salvaguarda, que ganha honras de princípio doutrinal a partir da Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI, sustentando que, quando uma estrutura mais próxima da sociedade pode assegurar uma resposta, ela não deve ser assumida por uma instância superior, sob pena de poder incorrer em injustiça grave. A este princípio foi atribuída a designação de «subsidiariedade» e é um dos valores estruturantes da organização da União Europeia, como sempre sustentou o grande presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors. Quando o Estado se arvora no direito de substituir, de forma discricionária, a sociedade e as suas iniciativas, mesmo que não tenha o rótulo, está a comportar-se como um Estado Totalitário. Tal tentação pode ser sumida em argumentos de ordem economicista ou de uma suposta igualdade de oportunidades que se comporta como simples fachada ideológica, mas não corresponderá, efectivamente, a uma prática justa.
Vale a pena recordar as palavras de alguém que viveu subjugado a um regime que se considerava detentor de todo o saber e do conhecimento do que era melhor para os cidadãos: Vaclav Havel, que foi vítima do regime colectivista leninista-estalinista, mas que, após a queda da URSS e da influência deste regime nos países do Pacto de Varsóvia, veio a tornar-se o primeiro presidente da República Checa, em 1992. Diz Vaclav Havel, num discurso de 1990, pouco tempo após a queda do muro de Berlim e do regime a ele associado:
«O regime anterior – armado com a sua ideologia arrogante e intolerante – reduzia o homem a uma força de produção e a natureza a um instrumento de produção, pondo assim em causa a própria substância e as relações entre ambos, e reduzindo pessoas talentosas e autónomas, que trabalhavam com competência no próprio país, a porcas e parafusos de uma máquina monstruosa, barulhenta e mal-cheirosa, cujo verdadeiro sentido ninguém compreende bem. […] Não nos deixemos enganar: nem o melhor governo do mundo, nem o melhor parlamento e o melhor presidente conseguem fazer grande coisa sozinhos. Seria um erro esperar que fossem eles a resolver tudo. A liberdade e a democracia exigem participação, e portanto responsabilizam-nos a todos.»
O perigo está à espreita: importa estar atento e não seguir a voz das sereias que encantam aos ouvidos mais distraídos.
Luís Silva - professor
Subscrever:
Mensagens (Atom)
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva* Cerca de duas décadas ...
-
Por mérito da Federação Portuguesa pela Vida, o tema «aborto» voltou a ocupar, momentaneamente, as atenções dos portugueses. Claro que a o...
-
Há uma estratégia de lógica que nos permite identificar a qualidade dos nossos pressupostos: o exercício de os levar até ao absurdo. Se resi...
-
Começaram os jogos olímpicos de Paris. Sou um apreciador do espírito olímpico e do ideal que lhe subjaz. Reconheço no jogo, enquanto m...