Se nos dedicássemos a perguntar que dimensão da Jesus Cristo se sublinha, com a celebração do Natal, as vozes seriam quase unânimes em considerar que esta reforça a sua humanidade, diante dos riscos de docetismo ou de gnosticismo que sempre tentam a fantasia religiosa menos cuidadosa. Contudo, a história não parece confirmar esta leitura, como muito bem recorda o reconhecido divulgador da exegese bíblica, Ariel Alvarez Valdés, num dos seus livros dedicados aos enigmas da Bíblia.
Na verdade, é de todos sabido que a grande festa cristã é e sempre foi a Páscoa, ocupando a centralidade da liturgia, desde os primeiros tempos do cristianismo. Teremos de aguardar pelo século IV para ver fixada a festa da natividade do Senhor, na época de Papa Júlio I (que pontificou entre 337 e 352). E as circunstâncias em que tal se operou é que nos obrigam a corrigir a convicção acima denunciada. Na verdade, o pontificado de Júlio I decorre em pleno período de propagação da heresias arianas, promovidas por Ário, um Bispo do Norte de África, nascido no território da actual Líbia, em meados do século III, que defendia que Jesus Cristo não era Deus, por ser impossível a Deus gerar um filho, tendo sido apenas adoptado por Deus. Estes traços eram reforçados pelas teses adopcionistas e subordinacionistas de que Ário dependia, que afirmavam que esta quase-divindade de Jesus Cristo lhe era conferida apenas por ocasião da sua ressurreição.
Perante um tal quadro, a sabedoria da Igreja vislumbrou a necessidade de sublinhar que a unicidade de Jesus Cristo não se manifestara, apenas, após a ressurreição, mas estivera presente desde o primeiro momento.
Neste contexto, após tentativas anteriores de fixar a data do nascimento do Filho de Deus em momentos como 20 de Abril (S. Clemente de Alexandria), 6 de Janeiro (S. Epifânio) ou outros, ainda, a Igreja do tempo de Júlio I, pretendendo fazer a recepção das definições de Niceia (concílio que ocorrera em 325), tomou como data a de uma festa levada por Aureliano para Roma, no século III, dedicada ao «sol não vencido», «sol invicto», vincando, deste modo, que, desde a infância, a divindade de Jesus estava presente.
A pedagogia evidenciada pela Igreja, em todo este percurso, é particularmente actual e desafiante. Vivemos tempos de novos adopcionismos, que pretendem reduzir Jesus Cristo à dimensão de um herói, esgotando os humanos no rasteiro horizonte da cronologia, tornando vãs a fé e a esperança. Tempos que interpelam a que se fixem nas agendas comuns as datas que permitam continuar a dizer que ainda não vale tudo, porque algo maior há que buscar.
Luís Silva
(Publicado no Correio do Vouga)
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