terça-feira, janeiro 24, 2012

Vidas de aluguer?

Enquanto uns se distraem com lojas de conveniência, outros fazem o seu trabalho, na sombra. De forma pouco clara e até obscurantista – para usar linguagem tão cara a quem julga deter o privilégio do pensamento iluminado –, emergem propostas de legalização da maternidade de substituição, vulgarmente designada como «barriga de aluguer», eufemismos que confundem e desviam a atenção do que é central nesta discussão.

Neste caso, como nas questões em que está em causa a vida humana e a sua dignidade, importa encontrar princípios que garantam a justa aplicação do direito, distinguindo o fundamental do acessório, por forma a procurar o maior bem e o bem comum.

A pergunta primeira a que é preciso responder será, pois, a de saber se um filho é um direito ou um dever, retirando da resposta todas as implicações.

Mesmo que se queira evitar tal interrogação, o quadro legal português, e o das democracias que se reconhecem na declaração dos direitos humanos, não deixa margem para dúvidas: as leis supõem o princípio de que os filhos se constituem como um dever para os pais e não como um direito seu, que os reduziria a um objecto como outros que se possuem. É assim que os Estados, em nome do referido princípio, se outorgam o direito de impedir, suspender ou condicionar o exercício da paternidade, quando os filhos não são respeitados em si mesmos ou são instrumentalizados e negligenciados pelos seus pais.

No plano formal, é esta uma primeira razão para termos as maiores reservas em relação à maternidade de substituição.

A este motivo, porém, acresce outro que também não podemos deixar de considerar.

O pensamento ocidental demorou a tomar consciência de uma obviedade, mas ela tornou-se incontornável: o ser humano é um todo marcado pelas suas vivências corpóreas. O que se vive, em cada momento do desenvolvimento pessoal, deixa marcas indeléveis, torna-se vivência que se faz experiência. É este um grande contributo do pensamento fenomenológico. O que se passa durante o período da gravidez não pode, pois, ser indiferente, nem irrelevante, para a formação da personalidade e da identidade individual. Somos muito mais do que um código genético em desenvolvimento e, por isso, a «mãe» de substituição é mãe, na medida em que deixa marcas tanto ou mais profundas do que as que resultam da genética. Somos o que vivemos com as características que temos e as circunstâncias que nos são proporcionadas. Este princípio não é, apenas, efectivo, factual e ético. É, também, jurídico. Como pode ser indiferente ao gerado aquela que gera? Como resolve o Estado o conflito que, obrigatoriamente, se vai gerar, em resultado da afectividade que se estabelece entre filho e «mãe de aluguer»? Como se resolverá o conflito que ocorrerá quando a gravidez correr mal e a «mãe biológica» entender que a culpa é da «mãe de aluguer»? Não basta responder que a lei salvaguardará, pois a própria lei que permite a conflitualidade é ela a causadora daquilo que se propõe sanar.

Mais ainda. Poderia contrapor-se que ser mãe e ser pai é matéria de afecto, apenas, e fruto de decisão. Assim o pretende a antropologia cultural, quando, presa a um relativismo que tudo confunde, acaba, a certa altura, por não distinguir as fronteiras entre o humano e o animal. Mas regressemos ao argumento principal.
Muitos argumentam que, afinal, a «barriga de aluguer» é, apenas, uma réplica do que já se garante, quando se permite a adopção. Ora, nada mais confuso e impreciso. Na verdade, com a adopção, estamos a encontrar soluções de remedeio para algo que correu mal. Com a barriga de aluguer, estamos nós próprios a criar um problema antes de ele existir. Dito de outro modo. Quando se parte para a adopção, há unanimidade em considerar que o ideal seria que a criança estivesse no seio da família biológica e que a família biológica coincidisse com a família de afecto. Ora, com a criança que é resultado de «barriga de aluguer», é o próprio Estado que a impede de nascer na sua família biológica, separando, de forma artificial, a família biológica da família de afecto. O próprio Estado trai o princípio a que aceitou submeter-se: o de respeitar que a criança é um dever dos pais e não um seu direito.

Se aceitarmos que os filhos possam ser objecto de experimentalismo técnico e jurídico, estaremos a trair o reconhecimento dos direitos mais fundamentais da criança: a de não ser objeto ou instrumento ao serviço das afectividades dos adultos.

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