quarta-feira, janeiro 16, 2013

A ousadia de não desanimar



Os tempos de urgência podem distrair do que é importante. É um dilema sempre difícil de solucionar. O de saber se se deve acudir à emergência de um momento, se continuar a manter o olhar largo e longo para o horizonte.
É uma tensão que o Cristianismo desafia a que não se diminua, quer por se adormecer no sonho de um mundo melhor (que não faria de nós senão puros utópicos, distraídos do hoje), quer por se atolar na lama do agora. A tensão tem de se manter. Continuar de mãos enfarinhadas na história, mas com a certeza de se estar a construir algo melhor.
Vêm estas palavras a propósito das dificuldades por que passam os portugueses, nesta hora, em que a necessidade de garantir a correspondência às imposições que nos estabelecem os credores faz, em cada dia, mais vítimas, quer pelo desemprego, quer pela impossibilidade de corresponder aos compromissos pessoais assumidos ao longo de vidas.
Julgo que a tensão acima enunciada deve definir a resposta, nesta hora.
Por um lado, criando respostas que permitam suprir as necessidades imediatas. Um desafio a que as comunidades cristãs não podem virar a face. Urge a mobilização de todas as estruturas de fraternidade que permitam assegurar que nenhuma família soçobre à crise porque ninguém deu mão. Como dizia Churchill, numa célebre carta de 1901 a um deputado compatriota, «não há grande glória num Império que consegue dominar os mares e não consegue tratar os seus esgotos». A Portugal nem o domínio dos mares resta, hoje. Mas, de que valerá corresponder aos seus compromissos se os seus filhos sucumbirem?
Contudo, a urgência da resposta não pode distrair de uma leitura em profundidade que a todos deve interrogar. A crise que vivemos é, antes de mais, uma crise de insolidariedade. A muitos pareceu, ao longo de décadas (talvez séculos, até!) que o que era de todos era para o maior benefício dos que disso se sabiam aproveitar. Quando, na verdade, o que é de todos a todos deve servir e por todos deve ser tratado com carinho e dedicação. Sejam bens, sejam lugares de poder ou serviço, sejam, ainda, os devidos impostos. O próprio nome de «imposto» deveria, em definitivo ser banido e substituído pela ideia de «tributo», mais consentânea com a ideia de repartir, dividir, porque o bem de que beneficiamos resulta do contributo (com+tributo) de todos. A riqueza que se possui não é um bem absoluto, mas um empréstimo, quer dos que nos precederam, quer dos nossos contemporâneos, quer, ainda, dos vindouros. A doutrina social da Igreja sempre afirmou que o direito à posse era um bem, contudo subsidiário do princípio do destino universal dos bens. Possuir, de forma injusta, desproporcionada em relação à pobreza envolvente é inumano e deve ser problematizado e gerido, de modo a assegurar a mais ajustada distribuição.
Ora, para o Estado poder gerir esta distribuição da riqueza deve fazê-lo de modo a gerar confiança. Deve criar mecanismos que não traiam a confiança dos cidadãos que querem e devem querer participar da construção de uma sociedade mais justa. Na verdade, a interrogação que a todos assalta, nesta hora em que a todos se pede que participem no reequilíbrio das contas públicas (que a todos devem dizer respeito), é a de saber se, após a participação num tal desiderato nacional, o que a todos diz respeito não beneficiará a apenas alguns. Uma dúvida que o Estado tudo deve fazer para que se extinga. Uma exigência que se configura, em Portugal, no apelo a que o sistema judicial seja, de facto, cego por não ser de primeira ou de segunda, de acordo com o nível económico ou social; uma exigência que se estrutura no apelo a que os decisores políticos também participem no esforço de todos, para o que muito ajudaria que a legislação sobre os cargos políticos fosse feita por uma estrutura (um senado? tribunais especiais para tal criados?) diversa da assembleia da república, de modo a eliminar a sombra de que quem legisla sobre si mesmo tenderá a beneficiar-se nas decisões.
Mas outros desafios se colocam, ao fazer-se a leitura das causas desta crise. Quantos portugueses continuam a olhar para o Estado como uma entidade estranha, alheia à sua vida, confundindo-o com o governo? Uma confusão que gera o desabafo de que não se pretende pagar mais impostos por se estar farto desta ou daquela governação. A causa do desabafo não é contudo, exclusivamente causada pela incapacidade de distinguir. Também os próprios decisores políticos têm favorecido, ao longo dos tempos, a convicção de que governar é governar-se. Urge, assim, uma nova atitude:
- de quem elege, compreendendo que o Estado é formado por todos e a todos diz respeito, pedindo-se, por isso, maior responsabilidade, no momento de escolher quem deve dirigir os destinos dos bens que a todos dizem respeito;
- de quem é escolhido, colocando no centro da ação política o bem comum, que deve centrar-se na pessoa humana. Os bens acumulados devem servir esta e não servir-se dela.
Se crise é, como a etimologia pretende dizer, um momento de purificação, mesmo que doloroso como o do ouro que se purifica no crisol, esta pode ser uma hora de desafio e crescimento. Se para trás não deixarmos ninguém e a todos soubermos incluir na abertura de um horizonte de melhor futuro. É a hora da ética e da moral. A hora dos valores que respeitam a dignidade dos mais frágeis. Se não for assim, de que serve existir Estado?


Luís Silva

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