Os tempos de urgência podem distrair do que é
importante. É um dilema sempre difícil de solucionar. O de saber se se deve
acudir à emergência de um momento, se continuar a manter o olhar largo e longo
para o horizonte.
É uma tensão que o Cristianismo desafia a que não
se diminua, quer por se adormecer no sonho de um mundo melhor (que não faria de
nós senão puros utópicos, distraídos do hoje), quer por se atolar na lama do
agora. A tensão tem de se manter. Continuar de mãos enfarinhadas na história,
mas com a certeza de se estar a construir algo melhor.
Vêm estas palavras a propósito das dificuldades por
que passam os portugueses, nesta hora, em que a necessidade de garantir a
correspondência às imposições que nos estabelecem os credores faz, em cada dia,
mais vítimas, quer pelo desemprego, quer pela impossibilidade de corresponder
aos compromissos pessoais assumidos ao longo de vidas.
Julgo que a tensão acima enunciada deve definir a
resposta, nesta hora.
Por um lado, criando respostas que permitam suprir
as necessidades imediatas. Um desafio a que as comunidades cristãs não podem
virar a face. Urge a mobilização de todas as estruturas de fraternidade que
permitam assegurar que nenhuma família soçobre à crise porque ninguém deu mão.
Como dizia Churchill, numa célebre carta de 1901 a um deputado compatriota,
«não há grande glória num Império que consegue dominar os mares e não consegue
tratar os seus esgotos». A Portugal nem o domínio dos mares resta, hoje. Mas,
de que valerá corresponder aos seus compromissos se os seus filhos sucumbirem?
Contudo, a urgência da resposta não pode distrair
de uma leitura em profundidade que a todos deve interrogar. A crise que vivemos
é, antes de mais, uma crise de insolidariedade. A muitos pareceu, ao longo de
décadas (talvez séculos, até!) que o que era de todos era para o maior
benefício dos que disso se sabiam aproveitar. Quando, na verdade, o que é de
todos a todos deve servir e por todos deve ser tratado com carinho e dedicação.
Sejam bens, sejam lugares de poder ou serviço, sejam, ainda, os devidos
impostos. O próprio nome de «imposto» deveria, em definitivo ser banido e
substituído pela ideia de «tributo», mais consentânea com a ideia de repartir,
dividir, porque o bem de que beneficiamos resulta do contributo (com+tributo)
de todos. A riqueza que se possui não é um bem absoluto, mas um empréstimo,
quer dos que nos precederam, quer dos nossos contemporâneos, quer, ainda, dos
vindouros. A doutrina social da Igreja sempre afirmou que o direito à posse era
um bem, contudo subsidiário do princípio do destino universal dos bens.
Possuir, de forma injusta, desproporcionada em relação à pobreza envolvente é inumano
e deve ser problematizado e gerido, de modo a assegurar a mais ajustada
distribuição.
Ora, para o Estado poder gerir esta distribuição da
riqueza deve fazê-lo de modo a gerar confiança. Deve criar mecanismos que não
traiam a confiança dos cidadãos que querem e devem querer participar da
construção de uma sociedade mais justa. Na verdade, a interrogação que a todos
assalta, nesta hora em que a todos se pede que participem no reequilíbrio das
contas públicas (que a todos devem dizer respeito), é a de saber se, após a
participação num tal desiderato nacional, o que a todos diz respeito não beneficiará
a apenas alguns. Uma dúvida que o Estado tudo deve fazer para que se extinga.
Uma exigência que se configura, em Portugal, no apelo a que o sistema judicial
seja, de facto, cego por não ser de primeira ou de segunda, de acordo com o
nível económico ou social; uma exigência que se estrutura no apelo a que os
decisores políticos também participem no esforço de todos, para o que muito
ajudaria que a legislação sobre os cargos políticos fosse feita por uma
estrutura (um senado? tribunais especiais para tal criados?) diversa da
assembleia da república, de modo a eliminar a sombra de que quem legisla sobre
si mesmo tenderá a beneficiar-se nas decisões.
Mas outros desafios se colocam, ao fazer-se a
leitura das causas desta crise. Quantos portugueses continuam a olhar para o
Estado como uma entidade estranha, alheia à sua vida, confundindo-o com o
governo? Uma confusão que gera o desabafo de que não se pretende pagar mais
impostos por se estar farto desta ou daquela governação. A causa do desabafo
não é contudo, exclusivamente causada pela incapacidade de distinguir. Também
os próprios decisores políticos têm favorecido, ao longo dos tempos, a
convicção de que governar é governar-se. Urge, assim, uma nova atitude:
- de quem elege, compreendendo que o Estado é formado
por todos e a todos diz respeito, pedindo-se, por isso, maior responsabilidade,
no momento de escolher quem deve dirigir os destinos dos bens que a todos dizem
respeito;
- de quem é escolhido, colocando no centro da ação
política o bem comum, que deve centrar-se na pessoa humana. Os bens acumulados
devem servir esta e não servir-se dela.
Se crise é, como a etimologia pretende dizer, um
momento de purificação, mesmo que doloroso como o do ouro que se purifica no
crisol, esta pode ser uma hora de desafio e crescimento. Se para trás não
deixarmos ninguém e a todos soubermos incluir na abertura de um horizonte de
melhor futuro. É a hora da ética e da moral. A hora dos valores que respeitam a
dignidade dos mais frágeis. Se não for assim, de que serve existir Estado?
Luís Silva