quarta-feira, abril 17, 2013

Religiosidade em tempos de crise



Não há como ocultar. Quando a crise toma conta das nossas vidas, a religiosidade assume uma visibilidade que parece ofuscar-se nos momentos de opulência e fortuna. A coincidência tem dado a muitos argumento para defenderem que, sendo assim, a religião (que é identificada, de forma simplista, com estas manifestações) não é mais do que uma resposta à necessidade humana de sossego e aquietação, contribuindo para a distração em relação ao que é a sua identidade, gerando, assim, aquilo a que chamaram «alienação». Por esta caraterística, defendia-se então que a religião distanciava o Homem da sua própria identidade e essência, alheando-o do que ele próprio era. Foi o que entenderam muitos (Feuerbach, Freud, e tantos outros) no século XIX e continuam a defender tantos outros ainda nos nossos tempos. Contudo, não há que ceder, tão facilmente, a esta tentadora argumentação.
Em primeiro lugar, importa separar os conceitos que, sem precisão utilizámos no primeiro parágrafo: os de «religiosidade» e de «religião». Por religiosidade, deveremos entender todas as manifestações, de origem popular, que, sem preocupação de rigor e coerência, expressam as vivências de um determinado povo acerca do sublime e do inominado; são expressões mais ou menos espontâneas acerca daquilo a que Rudolf Otto chamava o «santo», e que desperta na humanidade «atitude de temor e tremor». A religião, por seu turno, sendo uma resposta à interpelação do divino, configura-se de modo coerente e estruturado, em constante dinamismo de autocorreção. Poderíamos, sem mais cuidado, dizer que entre a religiosidade e a religião existe uma relação semelhante à que existe entre o diamante bruto e o polido.
Ora, sendo certo que tal definição nos ajuda a distinguir, desde já, âmbitos diversos, mantém, porém, a validade da interrogação inicial. Em situações de crise, não é apenas a religiosidade que se torna mais «exuberante». Também a religião avoluma a sua presença coletiva. Tais factos devolvem-nos a pergunta. A que se deve tal fenómeno?
Sou dos que não partilham da resposta que dera o século XIX e o próprio século XX. A relação entre o crescimento pessoal e sociológico da religião e as crises não se deve à natureza alienante da religião, mas pelo contrário, na minha perspetiva, devido ao facto oposto. A opulência, a fortuna são, sim, a causa da verdadeira alienação humana. A natureza do homem é intrinsecamente frágil. A fragilidade é um traço definidor do que é a humanidade. Aliás, «humano» vem de «húmus», terra, tal como «adão» provém de «adamah» (terra vermelha, fértil), constatações etimológicas que denunciam a natureza do objeto definido. Quando o ser humano perde esta consciência é que pensa ser o que não é. Ora, em nosso entender, os momentos de crise são momentos de devolução de consciência. Na sua etimologia, a crise quer dizer, precisamente, purificação, tal como o «ouro no crisol».
Bem, mas esta constatação, por si só, não é suficiente para se depreenderem todas as implicações decorrentes da verificação do laço existente entre crise e crescimento da religiosidade e da manifestação religiosa. Importa compreender como, também, num plano pastoral, se observam, aqui, desafios a ter em conta.

Desafios pastorais

Ao longo da história, a relação entre a «religião cristã» e a «religiosidade popular» nem sempre foi pacífica. Pelo seu caráter espontâneo, a religiosidade popular tende a absorver, acriticamente, expressões estranhas, exóticas e, por vezes, pouco conformadas com o quadro conceptual cristão. E diante disto, duas atitudes se foram configurando: a da rejeição, pura e simples; a da «cristianização». Como em tantos âmbitos, a justeza está no equilíbrio. No caso em estudo, o equilíbrio passa, não apenas por, como sugeria o Papa Gregório Magno, «ser necessário evitar destruir os templos dos ídolos; basta eliminar os ídolos e, depois, com água benta, aspergir os templos, construir altares e colocar relíquias» (ap. Enciclopédia Christos), mas, seguramente, por um trabalho mais lento e dedicado de formação e criação de tradições capazes de suplantar as marcas idolátricas. Na verdade, julgo que nem tudo é suscetível de «cristianização», necessitando, mesmo de ser suplantado. Os sinais de reemergência dos ídolos clássicos cartomânticos, astrológicos, etc., obrigam a uma reflexão cuidadosa, que desperte a criatividade cristã e a torne capaz de gerar novos símbolos que unam a fé cristã à vida real das pessoas do século XXI. Nesta última afirmação, formulo um programa que tem um pressuposto teológico. A fé cristã estrutura-se em torno do eixo que é a fé na encarnação que, em termos de conteúdo afirma a realidade da presença do divino na finitude da história, o que se constitui, também, como um princípio formal: a fé cristã deve expressar-se em manifestações concretas. Quando tal não acontece, a religiosidade espontânea, muitas vezes de origem pagã, ocupa o lugar de uma resposta que resulta da natureza frágil e incompleta da humanidade, expressão última de uma sede que fala, por si só, que existe «água», mesmo que não se queira reconhecer. A sede não é, regressando ao início do nosso texto, uma alienação, mas a manifestação de que há uma nascente da qual se provém e que, se ausente, deixa um vazio. A religiosidade e a religião, em tempos de crise mais não são, afinal, do que a afirmação da natureza intrínseca da humanidade. Estar em crise será, então, a oportunidade brilhante para o homem se «re-humanizar»!

Luís Silva

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