Não há como ocultar. Quando a crise toma conta das
nossas vidas, a religiosidade assume uma visibilidade que parece ofuscar-se nos
momentos de opulência e fortuna. A coincidência tem dado a muitos argumento
para defenderem que, sendo assim, a religião (que é identificada, de forma
simplista, com estas manifestações) não é mais do que uma resposta à
necessidade humana de sossego e aquietação, contribuindo para a distração em
relação ao que é a sua identidade, gerando, assim, aquilo a que chamaram
«alienação». Por esta caraterística, defendia-se então que a religião
distanciava o Homem da sua própria identidade e essência, alheando-o do que ele
próprio era. Foi o que entenderam muitos (Feuerbach, Freud, e tantos outros) no
século XIX e continuam a defender tantos outros ainda nos nossos tempos.
Contudo, não há que ceder, tão facilmente, a esta tentadora argumentação.
Em primeiro lugar, importa separar os conceitos
que, sem precisão utilizámos no primeiro parágrafo: os de «religiosidade» e de
«religião». Por religiosidade, deveremos entender todas as manifestações, de
origem popular, que, sem preocupação de rigor e coerência, expressam as
vivências de um determinado povo acerca do sublime e do inominado; são
expressões mais ou menos espontâneas acerca daquilo a que Rudolf Otto chamava o
«santo», e que desperta na humanidade «atitude de temor e tremor». A religião,
por seu turno, sendo uma resposta à interpelação do divino, configura-se de modo
coerente e estruturado, em constante dinamismo de autocorreção. Poderíamos, sem
mais cuidado, dizer que entre a religiosidade e a religião existe uma relação
semelhante à que existe entre o diamante bruto e o polido.
Ora, sendo certo que tal definição nos ajuda a
distinguir, desde já, âmbitos diversos, mantém, porém, a validade da
interrogação inicial. Em situações de crise, não é apenas a religiosidade que
se torna mais «exuberante». Também a religião avoluma a sua presença coletiva.
Tais factos devolvem-nos a pergunta. A que se deve tal fenómeno?
Sou dos que não partilham da resposta que dera o
século XIX e o próprio século XX. A relação entre o crescimento pessoal e
sociológico da religião e as crises não se deve à natureza alienante da
religião, mas pelo contrário, na minha perspetiva, devido ao facto oposto. A
opulência, a fortuna são, sim, a causa da verdadeira alienação humana. A
natureza do homem é intrinsecamente frágil. A fragilidade é um traço definidor
do que é a humanidade. Aliás, «humano» vem de «húmus», terra, tal como «adão»
provém de «adamah» (terra vermelha, fértil), constatações etimológicas que
denunciam a natureza do objeto definido. Quando o ser humano perde esta
consciência é que pensa ser o que não é. Ora, em nosso entender, os momentos de
crise são momentos de devolução de consciência. Na sua etimologia, a crise quer
dizer, precisamente, purificação, tal como o «ouro no crisol».
Bem, mas esta constatação, por si só, não é
suficiente para se depreenderem todas as implicações decorrentes da verificação
do laço existente entre crise e crescimento da religiosidade e da manifestação
religiosa. Importa compreender como, também, num plano pastoral, se observam,
aqui, desafios a ter em conta.
Desafios pastorais
Ao longo da história, a relação entre a «religião
cristã» e a «religiosidade popular» nem sempre foi pacífica. Pelo seu caráter
espontâneo, a religiosidade popular tende a absorver, acriticamente, expressões
estranhas, exóticas e, por vezes, pouco conformadas com o quadro conceptual cristão.
E diante disto, duas atitudes se foram configurando: a da rejeição, pura e
simples; a da «cristianização». Como em tantos âmbitos, a justeza está no
equilíbrio. No caso em estudo, o equilíbrio passa, não apenas por, como sugeria
o Papa Gregório Magno, «ser necessário evitar destruir os templos dos ídolos;
basta eliminar os ídolos e, depois, com água benta, aspergir os templos,
construir altares e colocar relíquias» (ap. Enciclopédia Christos), mas, seguramente, por um trabalho mais lento e dedicado
de formação e criação de tradições capazes de suplantar as marcas idolátricas.
Na verdade, julgo que nem tudo é suscetível de «cristianização», necessitando,
mesmo de ser suplantado. Os sinais de reemergência dos ídolos clássicos
cartomânticos, astrológicos, etc., obrigam a uma reflexão cuidadosa, que
desperte a criatividade cristã e a torne capaz de gerar novos símbolos que unam
a fé cristã à vida real das pessoas do século XXI. Nesta última afirmação,
formulo um programa que tem um pressuposto teológico. A fé cristã estrutura-se
em torno do eixo que é a fé na encarnação que, em termos de conteúdo afirma a
realidade da presença do divino na finitude da história, o que se constitui,
também, como um princípio formal: a fé cristã deve expressar-se em manifestações
concretas. Quando tal não acontece, a religiosidade espontânea, muitas vezes de
origem pagã, ocupa o lugar de uma resposta que resulta da natureza frágil e
incompleta da humanidade, expressão última de uma sede que fala, por si só, que
existe «água», mesmo que não se queira reconhecer. A sede não é, regressando ao
início do nosso texto, uma alienação, mas a manifestação de que há uma nascente
da qual se provém e que, se ausente, deixa um vazio. A religiosidade e a
religião, em tempos de crise mais não são, afinal, do que a afirmação da
natureza intrínseca da humanidade. Estar em crise será, então, a oportunidade
brilhante para o homem se «re-humanizar»!
Luís Silva