O cristianismo é verdade, é lei, é rito, é tradição, é património, é história, é razão, é sentido, é… É, é tudo isto, mas tudo isto não é, ainda, o cristianismo. Já S. Paulo o exprimia com a clarividência de quem parecia ter vivido os dois mil anos que, entretanto, já percorremos: ainda que saibamos falar a língua dos homens, se não tivermos amor, de nada vale isso. Porque, antes de tudo, o cristianismo é encontro. E, por sê-lo, como diz Tolentino de Mendonça, no seu livro sobre a amizade, «nenhum caminho será longo». O encontro tornará curtas as longas peregrinações de dor e sofrimento, porque o encontro lhes conferirá sentido e rumo.
Mas nós, cristãos, parecemos levar muito tempo a descobrir a essência do que nos diferencia. Como recordava Bento XVI, na sua programática primeira encíclica, «Deus é amor», «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo». E será isto que fascinará, que seduzirá, que, como dizia D. José Policarpo, nas vésperas da eleição do Papa Francisco, transformará a igreja num lugar onde se quer regressar. A tentação tem sido, porém, outra. Carregados por fardos pesados, em vez de seduzidos por tesouros eternos, desejamos impor aos outros a carga que nos esmaga por ainda não termos sido tomados por dentro pela beleza que inebria.
Significará, porém, isto a cedência ao relativismo que tudo aceita e a tudo confere legitimidade?
A beleza do cristianismo advém-lhe de não ceder à tentação de tudo reduzir ao branco e preto que tornaria tão fácil dividir o mundo em bons e maus. Mas esse não é o caminho cristão. Foi, aliás, recusado com a rejeição do maniqueísmo dos primeiros tempos.
Mas como, então, conciliar o amor com a verdade?
A resposta foi sendo burilada com o tempo, mas aprecio de forma particular o senso de Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas, que fez da companhia de Jesus uma fraternidade assente no acolhimento das pessoas e da verdade, sem qualquer contradição. Para ele, havia que ser firme nos princípios, mas tolerantes com as pessoas.
Uma conciliação que pode encontrar a sua nascente na forma como Jesus Cristo se situou diante da mulher adúltera.
A resposta dos mais distraídos parece acabar na afirmação de Jesus que sublinha que, tal como ninguém a condenara, também ele não a condenava. Contudo, o evangelho não acaba aí. «Vai e não tornes a pecar» é a chancela do episódio. O centro não está na regra, nem na lei, nem na moral. Elas não são o ponto de partida, contrariamente ao que poderiam pretender os farisaísmos. Mas elas são o traço de confirmação, contrariamente ao que poderiam pretender os relativistas. Não é a moral o que seduz em Jesus, mas da sedução e do encontro nasce uma nova forma de conduzir a vida.
A nova evangelização, de que se ecoa a necessidade permanente, claudica quando um destes momentos falha: o encontro, por gigantismo da moral; a moral, por cedência ao relativismo. O equilíbrio só poderá encontrar-se no dinamismo jesuíta que reconhecia que o cristão deve ser «firme nos princípios e tolerante com as pessoas». Não a tolerância de quem se julga superior, mas de quem se reconhece irmão na fragilidade, consciente, porém, de que a fragilidade não deve obscurecer o horizonte para que se caminha.
Explicitemos estas ideias.
A moral cristã não é o início da vida cristã. O batizado não é envolvido, pela água, num rolo de leis, mas acolhido no regaço de Cristo. A moral é como que um segundo momento, em resultado deste encontro. Assim deve ocorrer, também, no processo de evangelização. Primeiro, o encontro, pois a partir dele, cada um, ao sentir-se recebido, compreenderá que e como deve mudar a sua vida. Assim ocorreu em tantos e tantos encontros reais relatados nos evangelhos. A novidade do encontro suscita a conversão, como ocorreu com Zaqueu: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (lc 19,9).
Mas os caminhos estão demasiado longos, hoje. Parece não haver tempo. Somos como que consumidos, como diziam os gregos clássicos, pelo deus «crónos» que devora os filhos. Vivemos a nostalgia do futuro que nos atrai como abismo vertiginoso, e não permitimos o encontro. E, como o nosso Deus se fez pequeno e precisa da mediação, sendo que os «mediadores» não permitem que ele se torne presente nas vidas, os nossos contemporâneos sofrem a ausência de Deus. É grande a nossa responsabilidade: a de permitir que se torne possível o encontro. Talvez isto também explique porque parecem andar sumidos os valores maiores. Quem não encontrou o absoluto, deriva num mar sem ventos favoráveis.
Luís Silva
Eugenismo Bioética Educação Teologia Ecumenismo Ciência e Religião Bem-nascido... Mal-nascido...
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal
‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural' Luís Manuel Pereira da Silva* Cerca de duas décadas ...
-
Por mérito da Federação Portuguesa pela Vida, o tema «aborto» voltou a ocupar, momentaneamente, as atenções dos portugueses. Claro que a o...
-
Há uma estratégia de lógica que nos permite identificar a qualidade dos nossos pressupostos: o exercício de os levar até ao absurdo. Se resi...
-
Começaram os jogos olímpicos de Paris. Sou um apreciador do espírito olímpico e do ideal que lhe subjaz. Reconheço no jogo, enquanto m...