Um dos termos fundamentais de toda a teologia
cristã é o de «graça». Graça poderia ser considerada como que a adjetivação de
toda a ação divina; definida como gratuita, sem ser devida a qualquer mérito. Apesar
desta centralidade da graça, tendemos a ver os núcleos da fé cristã num registo
em que a ação divina parece ir a reboque de motivos que parecem colocar a
iniciativa divina em segundo plano. Assim aconteceu, ao longo da história, com
a interpretação da encarnação de Jesus Cristo. Uma linha teológica, que teve em
S. Anselmo o seu máximo expoente, designada como «hamartiocentrismo», colocou
no centro de toda a ação divina a reparação do mal feito pelo pecado. A ação de
Deus, neste quadro, parecia dever-se, não a iniciativa sua, mas à necessidade
de corrigir o que o pecado destruíra. A graça parecia ficar subjugada à força
do pecado. O pecado tornava a ação de Deus um dever e não um desígnio de amor.
Mais ainda; esta linha de interpretação, que ainda continua muito presente em
alguma reflexão cristã, a ação criadora parecia um acontecimento diverso do
processo salvífico, como se criar não fosse, já por si, manifestação amorosa de
Deus e, por isso, salvação. Na conceção hamartiocêntrica, um era o processo
criador, outro o processo salvífico, reduzido à dimensão de redenção. Bem certo
que muitos e grandes nomes da teologia se situaram neste registo, porém, a
dinâmica bíblica situa-nos noutro quadro. Na verdade, particularmente desde o
momento do exílio babilónico, o povo bíblico toma consciência de que o Deus da
salvação é, simultaneamente, o Deus criador.
Devemos ao beato e teólogo Duns Scoto, franciscano
dos séculos XIII-XIV, reconhecido como «doutor subtil», a pertinência de situar
o acento onde sempre deveria ter estado. Não é ao pecado que se deve a ação
salvífica de Deus. A encarnação, como expressão máxima da bondade de Deus, não
é devida ao pecado, mas ao enorme amor de Deus, que expressa, deste modo ímpar,
a gratuitidade da sua ação. Duns Scoto chega a supor que, mesmo que o pecado
não tivesse sido originado, desde que o homem é humano, a encarnação continuava
a fazer sentido, pois a sua motivação não é, primeiramente, a redenção, mas a
manifestação da salvação definitiva que é a participação do amor de Deus.
Esta reflexão pode afigurar-se, para muitos, como
uma subtileza teológica, porém, as suas implicações são enormes, se tivermos em
conta que a práxis, a ação da Igreja denuncia convicções teológicas. O centro
da sua ação deve ser o anúncio do amor de Deus, antes de ser uma proposta moral,
mesmo que tal se depreenda. É, aliás, este o registo da perspetiva da moral
paulina, designada como moral do indicativo. A moral é um segundo momento, pois
o primeiro é o anúncio. Uma tarefa que nem sempre esteve clara, na ação missionária
da Igreja, como é bem visível nos relatos da dificuldade com que se depararam
os missionários, no século XIX, quando se encontraram perante tribos onde não
era clara a noção de «culpa». Porque o centro estava no pecado, o desafio
parecia intransponível e o anúncio impossível. Mas, se o centro estivesse no
anúncio do amor de Deus, tal dificuldade deixava de fazer sentido.
Este é o centro onde deve colocar-se, em cada
Natal, a contemplação do presépio. Ali, não se expressa, primeiramente, um
remendo de Deus, mas a iniciativa absoluta do amor que não é exigido por nada.
Assim deverá entender-se o adágio paulino de que «onde abundou o pecado,
superabundou a graça»., não como quem constata que foi ao pecado que se deveu a
força da graça, mas, sim como quem verifica que, antes do pecado, a graça já o
era como tal: gratuita. Dizem-no, de modo claro, os místicos: não é por nos
sentirmos pecadores que nos aproximamos de Deus, mas antes, perante a grandeza
e gratuitidade do amor de Deus que nos sentimos pequenos e frágeis, pecadores.
Se este for o centro, o Natal renovará, em cada um,
no hoje da celebração, o reconhecimento de que, como criaturas de Deus-Amor,
fomos feitos para o amor. E quando o amor não é o código genético da nossa
natureza e ação, então, desumanizámo-nos.
Luís Manuel Silva